Peça teatral “A Mulher Monstro”, de José Neto Barbosa (PE). Foto: Reprodução

Por Lenine Guevara

A censura às artes e à cultura parecem ter sido um instrumento que nutriu a promessa bolsonarista de revogação de direitos sociais e a regulação comportamental, incidindo diretamente sobre as linguagens e grupos que defendem e são a diferença e a diversidade no país. O filme “Quem tem medo?” de Dellani Lima, Henrique Zanono e Ricardo Alves estreia dia 4 de agosto nos cinemas e traz importantes testemunhos sobre casos de censura às artes que tomaram dimensão nacional. O documentário retrata a escalada de criminalização a obras artísticas, festivais e exposições via atos policiais, processos judiciais, cancelamentos institucionais e atos de parlamentares, incitada por grupos conservadores que passaram a mapear e explorar a narrativa contra as artes e a cultura.

O documentário “Quem tem medo?” narra casos de censura a obras artísticas, palestras e exposições, dialogando com autores das obras, os impactos pessoais e os danos coletivos da censura. O documentário posiciona a escalada contra as artes e cultura no pós-golpe da presidenta Dilma Rousseff, por meio de casos emblemáticos, que foram síntese de mais de duzentas e vinte ações de censura, mapeadas pelo movimento Mobile e citadas na ficha técnica final do documentário.

Performance “DNA de Dan”, de Maikon K (PR). Foto: Reprodução

Podemos acompanhar ações policiais, de câmaras legislativas e grupos conservadores que perseguiram obras como: “DNA de Dan”, de Maikon K ( 2017); a exposição Queermuseu (2017); a obra “O Bicho” de Wagner Schwartz (2017); o espetáculo “A Mulher Monstro” de José Neto Barbosa (2017); a palestra de Judith Butler (2017); a peça teatral “O evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu” com Renata Carvalho (2017); a peça “Caranguejo Overdrive” de Aquela Cia de Teatro (2019); o caso de depredação da sede do “Porta dos Fundos” (2019); a perseguição do Secretário Especial de Cultura do governo Bolsonaro, Roberto Alvim, à peça “Res Pública 2023” dos grupos Thata de Teatro e Motosserra Perfumada (2019); e, por fim, ao caso marcante do pronunciamento de Roberto Alvim repetindo o discurso de Goebbels, ministro da propaganda de Adolf Hitler (2020). 

O pico de ações persecutórias e a sequência de criminalizações que aparecem até os dias atuais aos artistas, teve grave repercussão nacional no segundo semestre de 2017. Até este ano, o caso mais conhecido de judicialização das artes desde a redemocratização do Brasil não tinha a censura ao foco, mas as questões de direitos de patrimônio e mercado imobiliário:  o processo entre o Teatro Oficina Uzyna Uzona de José Celso Martinez e o grupo Silvio Santos que disputam o terreno Parque Rio Bixiga. Os empreendimentos propostos para o entorno do teatro pelo grupo Silvio Santos, desmontariam toda a razão pela qual esse teatro, construído pela arquiteta Lina Bo Bardi, foi tombado e marcou a história da cenografia no mundo: o seu diálogo vivo com o entorno do bairro e com a paisagem como condição física e estrutural da construção do prédio. No percurso de 37 anos na justiça, parecia impossível que o desígnio do grupo Silvio Santos de construir torres gigantescas no terreno, prosperasse. No entanto, em uma reviravolta, após as casas legislativas de São Paulo penderem pela preservação do patrimônio, em 26 de outubro de 2017, o grupo Silvio Santos ganhou parcialmente a ação contra a preservação do terreno do Parque Rio Bixiga, que circunda o Teatro Oficina Uzyna Uzona, para a construção de duas torres de 100m2, que não dialogam com o teatro, passando por cima do ato de tombamento. 

Naquela última semana de outubro de 2017, houve também censura à segunda apresentação do espetáculo “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” no Festival Internacional de Artes Cênicas (FIAC) em Salvador-BA, que teve de realocar a apresentação para o Goethe Institut, ao ser proibido de apresentar em equipamento público do Estado, em ação movida pelo deputado estadual Pastor Sargento Isidório.

“O evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu”, adaptação dirigida por Natalia Mallo (SP),
com a atriz Renata Carvalho. Foto: Divulgação

Ainda naquela mesma semana de outubro, houve a proibição do show de Caetano Veloso na ocupação do MTST em São Bernardo do Campo, como também a articulação do Movimento Brasil Livre (MBL) contra a palestra de Judith Butler no SESC Pompeia, em São Paulo. Mas, porque essa semana foi tão marcante? 

Os eventos mais incendiários que antecederam essa avalanche foram a suspensão da exposição Queermuseu em Porto Alegre pelo Banco Santander e a exibição da performance “O Bicho”, pelo dançarino e coreógrafo Wagner Schwartz no MAM de São Paulo, em setembro daquele ano. Como podemos compreender no filme “Quem tem medo?”, a crítica construída em redes sociais do MBL e amplificada por deputados e senadores da bancada evangélica e conservadores, vinculou ambos os eventos como conteúdos de apologia à pedofilia.

A obra de Schwartz era apresentada desde 2015 no Brasil e em diversos países no mundo. Na história criada por movimentos conservadores, a situação artística de expor um homem nu em atitude passiva na galeria, que se colocava à mercê da vontade do público para ser manipulado foi veiculada à pedofilia, pelo acontecido de uma criança, acompanhada por sua mãe, entrar na proposta de manipular o corpo do artista e tocar em seu pé.

“O Bicho”, de Wagner Schwartz (BR/FR). Foto: Reprodução

A obra é inspirada na série “Bichos” de Ligia Clark, uma das artistas mais renomadas da arte contemporânea. A série “Bichos” traz objetos manipuláveis que marcaram a arte relacional no país. A obra só acontece com a participação do público, reconfigurando o valor do objeto artístico para a interação viva e presente com os objetos. A releitura de Schwartz, trazendo para o corpo humano essa instância de objeto a ser estudado em sua forma e possibilidade de movimento, retira a conotação sexual do corpo nu, reconfigurando o próprio estatuto da nudez. Na leitura imposta pelos veículos que debateram amplamente o problema da nudez na arte como fator que pode gerar confusão e incitar a sexualização infantil por adultos, os próprios agentes da ação, a criança e sua mãe, foram criminalizados, acusados de “apalpar” um homem nu, retirando completamente a cena fotografada que vazou na internet, do contexto da proposta. 

Não é de qualquer sorte que essas narrativas nutriram as mais famosas fake news espalhadas durante o processo eleitoral de 2018, pois essas giraram em torno de tabus sociais, amplamente discutidos a partir de casos de censuras a obras artísticas e ataque aos avanços de direitos sociais ligados às mulheres, aos indígenas, negros e a toda ordem pública e trabalhista.

A receita bolsonarista foi se utilizar de tabus em torno do corpo e da sexualidade como plataforma eleitoral para a remodelação das políticas públicas, com enxurradas de conteúdos que distorciam a realidade e beiravam a insanidade, como a famosa “mamadeira de piroca”. 

Na narrativa montada, esses casos serviram de exemplo para comprovar a “degeneração” dos tempos e uma espécie de salvação que só viria com a conservação máxima de valores. A plataforma bolsonarista ganhou em cima da guerra cultural forjada nos anos anteriores. Logo eleito, o presidente cumpriu as promessas de campanha de perseguir e desmantelar os setores sociais e culturais que se rebelaram contra o golpe imposto à ex-presidenta Dilma Rousseff e um de seus primeiros atos foi abolir o Ministério da Cultura.

Mas, no meio do desgoverno tinha uma pandemia. 

Espetáculo Res Pública 2023, dos grupos Thata de Teatro (RJ) e Motosserra Perfumada (SP). Foto: Reprodução

A estreia do filme “Quem tem medo?” nos cinemas representa o contraditório da vitória bolsonarista, por tornar os casos de censura às artes mais conhecidos a público, compondo um processo de reabertura para as pautas que desafiaram o estado político atual do país. Uma estreia que parece mais possível depois de tantos embates, atrasos e censuras também a filmes brasileiros. Nos últimos anos, diversos atos de censura a filmes atravessaram o caminho para o encontro com a nossa história, mas ao mesmo tempo renderam maior conhecimento do público. Obras como “Marighella” que só veio a estrear ano passado, e, “Medida Provisória” que teve a licença de exibição sem resposta da ANCINE por meses a fio, renderam mais bilheteria e um maior desejo de encontro da sociedade com seus conteúdos. É esse o efeito desejado para o documentário “Quem tem medo?”, dado o peso histórico que essas censuras artísticas representaram para o país.

A maré está virando e precisamos encontrar esse futuro de liberdade que virá e que já está no horizonte. Vemos isso no modo como a opinião pública vai progredindo, devido ao posicionamento e à luta do campo artístico-cultural. A pauta da cultura nunca esteve tão presente na fala de parlamentares das casas legislativas, que votaram em quase totalidade a favor das leis Aldir Blanc (2020), Aldir Blanc 2 e Paulo Gustavo (2022) e, aprenderam a defender a cultura como um bem permanente e cotidiano na vida dos brasileiros, derrubando os vetos do presidente Bolsonaro em todas as sessões das leis. De outro lado, no terreno judicial e mercantil, o Teatro Oficina Uzina Uzona recuperou o fôlego na disputa pelo Parque Rio Bixiga. Em  sentença publicada em 31 de dezembro de 2021, o Tribunal de Justiça de São Paulo proibiu a prefeitura da cidade de liberar a construção da obra. 

Nessa onda que está virando pela permanente luta, coragem e enfrentamento à cultura do ódio, precisamos estar “atentos e fortes”, porque a aposta é o revés e o campo artístico-cultural, a plataforma direta para o revanchismo eleitoral.