Por Ben Hur Nogueira

Minha primeira experiência com Tony Tornado aconteceu quando eu tinha assistido “Pixote, a lei do mais fraco”, filme dirigido por Hector Babenco, lançado em 1981, onde ele interpreta um anti-herói que fornece para as crianças de rua um emprego como comparsas de seus afazeres ilegais e que acima de tudo busca respeito no meio que trabalha e se comporta. Ademais, a presença de Tony Tornado provocava naquela época, algo que a cultura norte-americana já buscava desde “Native son”, livro norte-americano lançado em 1940 sobre um garoto preto cheio de contradições e envolvido em inúmeras situações que remetem eventualmente sua classe e cor e o movimento “Blaxploitation”, que foi um movimento resistente de cineastas pretos norte-americanos que buscavam fazer filmes sobre a cultura afro-americana lançados diretamente para o público afro-americano em geral.

A presença de Tony em um filme brasileiro lançado em um cenário pós-ditadura, era de um homem preto sem qualquer tipo de estereótipos inerentes à sua cor, um homem preto repleto de garra e vontade, era de um homem cidadão, um tipo de papel artístico que raramente foi dado ao Tony durante a sua trajetória, mas que mesmo assim, para mim, Tony não era apenas o que a imprensa colonialista durante muito tempo tentou nos convencer, quiçá a ideia de que Tony era um ator esquecido que merecia apenas o reconhecimento fatídico de ser jurado de televisão voluntário ou aparecer em algum programa de fim de ano onde supostamente o homenageariam. Tony é maior que isso, Tony é um tornado impetuoso, é uma pantera negra silenciosa e sábia, que sabe a hora de preservar o momento certo da inércia, onde o inimigo aparenta ser superior e quando deve mostrar toda a sua força. Para mim, este é Tony.

Para uma grande alegria particular, Tony foi o grande homenageado da 18ª edição do Festival de Cinema de Ouro Preto, CineOP para os íntimos. Um festival de cinema gratuito que ocorre todos os anos na cidade mineira de Ouro Preto-MG, cidade onde resido e estudo.

Na última quinta-feira, dia 23 de junho, tive o prazer imensurável de acompanhar a posse de Tony recebendo seu prêmio diante do público, algo que o marcou profundamente e que durante seu discurso, duas frases me chamaram atenção: “Não ganhei muitos prêmios durante a minha vida”, o que remete o fator crucial da luta de Tony contra o preconceito racial e a presença de pessoas pretas na mídia e “o negro só precisa de uma chance”, uma frase que já havia escutado mas me chamou mais atenção naquele momento. Parecia uma fala de empoderamento ou uma fala inspiracional, contudo, o cantor, compositor e ator maximizava justamente a falta de chance para pessoas pretas em geral em empregos de destaque e a influência desta circunstância avassaladoramente nas vidas negras em geral. Esta última frase soou como um pedido, um aviso prévio e esperançoso e claro, a audiência recebeu com receptividade todas as suas falas.

Na mesma noite do prêmio, o cineasta e músico Gabriel Martins tocava com sua banda Diplomattas, várias canções referentes ao movimento negro brasileiro e em suma, antes da entrega do prêmio ao Tony Tornado, foi tocado dois dos maiores sucessos de Tony: “BR-3” e “Se Jesus fosse um homem de cor” enquanto o telão atrás da banda, realçava a neblina singela que cobria todos como uma onda oriunda de Iemanjá. Foi neste momento onde eu tinha me prometido algo, “eu hei de conseguir uma foto com Gabriel Martins e com Tony”. Para mim, não era apenas a foto em si, mas o momento próximo de quem eu particularmente admirava e esperava apenas um simples sorriso no rosto após uma mensagem de carinho e agradecimento.

Atravessei todos da audiência e corri para o fundo palco onde consegui tirar uma foto com Gabriel Martins que nesta altura, após a entrega do prêmio, recolhia seus instrumentos. A foto foi imediata, humildemente desceu do palco e com um sorriso no rosto que eu apenas via de fotos de festivais de cinema, tiramos nossa foto juntos. Foi ao tirar a foto com ele que resolvi tentar algo mais extremo, tirar uma foto com Tony, que já estava sentado ao lado do seu filho.

Me apressei junto da minha câmera e finalmente, depois de anos vendo ele através de um televisor, com os olhos repletos d’água, segurei sua mão e disse: “Obrigado por existir Tony, você é uma referência pra mim”, e ele singelamente com sua mão, me respondeu: “Muito obrigado!”. Parecia algo inesquecível, algo que jamais terminaria. Era felizmente, o primeiro dia daquele festival de cinema.

O segundo dia foi marcante pela estreia do filme “Lupicínio Rodrigues: confissões de um sofredor”, um documentário singelo, lindo e atraente, porventura, extremamente autoral do cineasta Alfredo Manevy sobre a vida do sambista gaúcho Lupicínio, autor de clássicos como “Nervos de aço” e “Felicidade” que foi interpretada por cantores como Caetano Veloso e Adriana Calcanhotto. Foi no segundo dia que fui marcado pela representatividade preta daquele festival, o intuito era maximizar elementos afro-brasileiros e privilegiar aqueles artistas que outrora haviam sido aviltados publicamente apesar de seu talento enigmático.

O terceiro dia, sábado, foi ainda mais incrível que os dias anteriores. Eu esperava, ansiosamente no Centro de Convenções, pela chegada do cineasta mineiro André Novais, um dos grandes cineastas de sua geração e consequentemente um grande influenciador do novo cinema negro brasileiro, que junto de cineastas como Adirley Queiroz, Juliana Antunes e Gabriel Martins, marcam a retomada do maior movimento de representatividade preta no cinema brasileiro desde Zózimo Bull.

Ben Hur registra seu encontro com os cineastas Gabriel Martins (esq) e André Novais (dir). Foto: Divulgação

André foi responsável por um debate inesquecível sobre a preservação de filmes na era hodierna, sobre a consciência nacional e sobre memória, junto de grandes nomes do cinema brasileiro moderno como Cavi Borges e Rodrigo de Oliveira. Não obstante, naquela mesma noite foi exibido o filme “Rainha diaba” dirigido por Antônio Carlos da Fontoura que foi aplaudido de pé pelos telespectadores no final de sua exibição. O fim da noite foi marcado, augustamente, por uma performance imortal do rapper Rincon Sapiência, que contagiou todos com seu encanto e sua autoria.

Paradoxalmente, domingo havia sido extremamente útil para mim, pois assisti um filme que aguardava um longo tempo: “Diálogos com Ruth de Souza”, um documentário sensível sobre uma das maiores artistas brasileiras que especificamente, havia sido esquecida por parte da mídia devido à sua cor de pele. A película da cineasta Juliana Vicente, traz debates como o feminismo negro, representatividade e paralelos da história de Ruth de Souza com lendas afro-brasileiras. Para mim, consequentemente, uma das cenas que mais marcou-me, foi uma cena logo no começo do filme, onde é mostrado um registro oficial do último navio negreiro legal que chegou ao Brasil em 1852, 100 anos depois, em 1952, Ruth seria indicada com o prêmio Leão de Ouro no Festival de Veneza de melhor atriz pelo filme “Sinhá Moça”, que por apenas dois votos não faturou o prêmio. Uma vitória do cinema brasileiro que foi amplamente esquecida pela mídia que não preservou o talento de Ruth, nunca dando-a papéis de destaque.

Domingo no seu fim antológico, foi marcado por uma apresentação marcante da sambista Leci Brandão, que contagiou todos do festival com músicas cheias de compatibilidade social e ideais sobre o racismo.

Ben Hur conhece as cantoras Leci Brandão (esq) e Jup do Bairro (dir). Foto: Divulgação

O festival de cinema de Ouro Preto marcou minha vida como cinéfilo e consequentemente como pessoa preta que busca sempre desestigmatizar debates frívolos de narrativas que sempre, por algum motivo, impedem a pessoa preta de se auto-conscientizar sobre os malefícios do preconceito racial no Brasil.

Uma das grandes vitórias deste festival foi, de maneira natural, trabalhar com temas sérios como o preconceito racial e não explorar a famosa narrativa do “White savior” que surge sempre como uma desculpa, escusando-se da livre culpa do racismo. O festival privilegiou narrativas pretas e buscou através de maneira genial, a reparação cultural que o povo preto brasileiro merece, sem quaisquer pressões ou perguntas desnecessárias que buscam evitar falar de problemas sérios do nosso Brasil, confesso, que me senti honrado de ter sido parte dos telespectadores deste festival que marcou não somente a mim, mas todo povo preto brasileiro, Axé.

Em memória de Maria Geralda, mulher que me influenciou através dos livros nunca deixar de sonhar em um dia me tornar um escritor.