Fazer cinema no Brasil é uma prática repleta de desafios. Sendo uma pessoa LGBTQIAPN+, as dificuldades são ainda maiores. Se você for uma pessoa da letra L, nem se fala. Com o objetivo de conquistar mais espaços e construir uma comunidade criativa e respeitada, as cineastas Alexia Araujo e Ana Cavazzana estão à frente de dois projetos muito importantes para a comunidade lésbica: o BEE Lesbian Film Festival, primeiro festival de cinema lésbico brasileiro; e o Festival Multicultural de Visibilidade Lésbica, evento com diversas atividades que aconteceu no último final de semana, em São Paulo.

Alexia Araujo é graduada em Animação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), possui especialização em Design e História da Arte e é mestranda de Design na área de Mídia na UFSC. Foi professora universitária, professora de roteiro e atualmente trabalha com produção cultural. É diretora, roteirista e animadora. Seu curta-metragem mais recente, “Ausência”, foi selecionado em mais de 70 festivais em todos os continentes e premiado em alguns deles. É criadora do AnimaQUEER, festival de animação queer.

Realizadora, diretora e roteirista ítalo-brasileira, Ana Cavazzana é licenciada em Artes Cênicas e Cinema. Trabalha há mais de 25 anos no audiovisual, sendo responsável por várias publicações e institucionais ao redor do mundo. Possui diversos curtas autorais, que se encontram em competição em mais de 160 festivais pelo mundo, incluindo o “Duas”. Seus filmes já ganharam mais de 12 prêmios internacionais.

Neste Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, a Cine NINJA bateu um papo com as cineastas acerca de seus projetos voltados à comunidade lésbica, com foco no Festival Multicultural de Visibilidade Lésbica, que marcou as celebrações do mês.

Conte um pouco sobre o processo de idealização do BEE – Festival Multicultural de Visibilidade Lésbica. Por que fazer um evento desta natureza?

Ana: O festival foi idealizado por nós a partir do BEE Film Festival. Por causa do festival de cinema, começamos um contato com o Centro Cultural da Diversidade e propusemos uma variação multicultural do que tínhamos feito. Eu e a Alexia pensamos no que gostaríamos de ver, qual a programação ideal que teria num festival pra celebrar a nossa sexualidade. Assim, criamos o festival multicultural.

Alexia: Desde o início a proposta principal foi dar visibilidade para artistas e empreendedoras lésbicas, além de representatividade em todas as áreas para o público que poderia participar do festival. É importante que a nossa comunidade se sinta acolhida e contemplada por projetos e pessoas. E não existia data melhor pra realizar esse projeto senão em agosto, onde temos os dias do orgulho e da visibilidade lésbica.

No ano passado vocês também realizaram a primeira edição do BEE Lesbian Film Festival. Como foi a experiência?

Alexia: O BEE Lesbian foi o primeiro festival de cinema lésbico do Brasil. Eu e a Ana somos cineastas e todos os nossos projetos têm protagonismo lésbico. Nos circuitos de festivais de cinema que passamos, pudemos perceber que os filmes lésbicos eram uma gritante minoria, isso quando eles ainda faziam parte das seleções. Pensando nisso, resolvemos criar nosso próprio festival focado só em filmes lésbicos, dessa forma esses trabalhos teriam o espaço que mereciam e nossa comunidade seria contemplada (…) Recebemos inscrição de filmes de 14 países diferentes e de diversas culturas, e foi muito rico perceber como é retratada essa sexualidade nos diferentes lugares. Inclusive, o filme vencedor da categoria de Melhor filme internacional foi um curta de Israel, onde a religião da protagonista é peça importante da problemática abordada no filme.

Ana: Foi e é, até agora, um projeto independente. A primeira edição foi realizada mesmo sem apoio ou patrocínio. Nós duas fizemos sozinhas todas as funções pra colocar no mundo o festival, desde a elaboração do projeto até a mostra e premiação dos filmes selecionados. Foi online, porque não conseguimos espaço físico. Criamos a página nas redes sociais, fizemos as postagens, os certificados de premiação, legendamos os filmes não falados em língua portuguesa, etc. Foi uma experiência muito boa! Recebemos feedback de muitas mulheres que assistiram aos filmes, o público ficou super engajado e no final tudo valeu a pena.

Quais são as dificuldades em realizar eventos como estes?

Ana: Acho que a principal dificuldade é a falta de patrocínio. Nós temos muita vontade de realizar esses projetos, mas infelizmente ainda temos algumas barreiras por conta do foco deles.

Alexia: O nosso público-alvo é bem específico, é uma minoria, e por isso mesmo deve ser representada em projetos também específicos.

Sobre o Festival Multicultural de Visibilidade Lésbica, qual o saldo vocês tiraram do evento? Como foi a recepção do público?

Alexia: O feedback do Centro Cultural da Diversidade e da Secretaria de Cultura de SP foram muito positivos. Mesmo com muita chuva e frio nos dois dias de evento, tivemos, na nossa primeira edição, aproximadamente 700 pessoas, sendo que o público majoritário foi de mulheres lésbicas. Apoiamos projetos sustentáveis, por isso, nossa divulgação foi 100% digital, e talvez por isso não tenhamos atingido tantas pessoas quanto gostaríamos, mas acima de quantidade, tivemos qualidade, com muito aproveitamento em toda a programação. Tivemos relatos de mulheres que aprenderam muito com os temas tratados, mulheres que falaram que nunca tiveram contato com determinados assuntos abordados no festival, e também tivemos feedback de mulheres surdas que foram contempladas porque nos asseguramos de ter acessibilidade durante toda a programação.

Nas nossas redes sociais, o público engajou todas as nossa publicações, sempre interessadas nos horários, animadas com o festival, etc. Também recebemos muitas menções de pessoas que estavam no festival e compartilharam nas suas redes onde estavam. Pra garantir o acesso do maior número de pessoas possível, fizemos o festival 100% gratuito.

Ana: Pra nós foi importante representar todas as lésbicas, independente de etnia, religião e classe social. Uma das nossas preocupações foi incluir lésbicas pretas para participar de todas as rodas de conversa, e além disso, todas as participantes da programação, inclusive as integrantes da equipe técnica – como assistentes de produção, técnicas de luz e som, captadora de imagens, etc – deveriam cumprir o pré-requisito de ser lésbicas. Dessa forma, priorizamos profissionais da nossa comunidade para fazer parte do projeto.

Ana Cavazzana e Alexia Araujo. Foto: Arquivo Pessoal

Na programação, tiveram diversos debates acerca de temas sobre a comunidade lésbica. Como foram esses encontros?

Ana: Priorizamos convidar mulheres lésbicas que retratassem as vivências lésbicas em seus trabalhos, e que também militassem pelos direitos lésbicos em suas áreas. No primeiro dia, tivemos roda de conversa sobre maternidade com mães lésbicas, onde algumas participantes levaram seus filhos para o evento. Tivemos também uma roda sobre o Levante do Ferros Bar com mulheres que vivenciaram esse importante momento para a visibilidade lésbica nacional. Outra roda de conversa importantíssima foi sobre envelhecimento lésbico, com destaque da participação de Heliana Hemetério, historiadora e ativista.

Eu e a Alexia participamos de uma roda de conversa sobre representatividade lésbica no cinema nacional junto com Julia Regis e Maria Maya, onde expusemos nossas experiências, projetos e dificuldades. No segundo dia, tivemos uma palestra da ilustradora Jenifer Prince, que trabalha apenas com ilustrações de lésbicas, e por fim tivemos uma roda sobre webseries lésbicas, com atrizes e diretoras. Tentamos, com essa programação, trazer não só entretenimento, mas também reflexões sobre nossas vivências e identidades.

Vocês, enquanto lésbicas e cineastas, e realizadoras de eventos com esse recorte, qual é a importância de materializar estes projetos?

Alexia: Existem lésbicas de destaque em diversas áreas, inclusive na cultura, e nosso objetivo é dar visibilidade a essas mulheres que muitas vezes não são reconhecidas, e dessa forma também promover representatividade para tantas outras que têm sonhos e objetivos e muitas vezes se sentem desencorajadas por não ter referências.

Em muitos festivais que analisamos, inclusive nos de foco Queer, pudemos perceber que a porcentagem de lésbicas nas programações é muito pequena se comparada com as outras identidades da comunidade LGBTQIA+. Por isso queremos cada vez mais dar voz e protagonismo a essas mulheres.

Quais são os próximos passos e projetos de vocês?

Alexia: Com relação ao festival de cinema, estamos planejando uma segunda edição que pode começar no final deste ano. Estamos em busca de apoio e patrocínio para realizar uma edição presencial e com maior alcance, mas independente disso, teremos pelo menos uma segunda edição online.

Como roteiristas, estamos sempre escrevendo novas histórias com protagonismo lésbico, e lutando para conseguir produzir esses filmes, sempre de olho em editais e leis de incentivo. Além dos projetos de produção, eu também dou aulas de roteiro cinematográfico, e a Ana dá aulas de artes cênicas com foco em interpretação para teatro e cinema. Uma outra preocupação minha é levar a representatividade lésbica para a animação, que é minha área de formação e é um gênero que percebo ser tão carente de protagonismo, e que foi tema do meu último trabalho audiovisual.

Ana: Sobre o BEE Multicultural, esperamos ter patrocínio para fazer deste um projeto anual, sempre no mês da visibilidade, e tentando incluir cada vez mais áreas e pessoas, tais como teatro, literatura, artes visuais, oficinas, workshops, e outros.

Também iremos gravar meu primeiro longa-metragem, na Bahia, que foi escrito e será dirigido por mim e fala sobre poliamor. Nos projetos sempre buscamos compor a equipe com pessoas pertencentes a minorias, como pessoas LGBTQIA+, mulheres, negros e indígenas. Acredito que é um passo importante pra dar oportunidade a profissionais que muitas vezes não tem. É assim que temos feito nos nossos últimos trabalhos, e é assim que pretendemos continuar.

Cartazes dos filmes “Ausência” e “Duas”. Foto: Divulgação