Foto: Canal Saúde

Um dos desdobramentos do movimento da reforma sanitária, o Canal Saúde nasce em 1994 com o objetivo de disseminar um conceito ampliado de saúde, que deve ser entendido como algo mais do que simplesmente a ausência de doença. Outra missão dessa programação de TV gerida pela Fundação Oswaldo Cruz é contribuir para o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS). O Canal mantém uma programação diária das 7hs às 24hs e qualquer residência no Brasil que tenha uma antena parabólica pode sintonizar. Além disso, desde 2016, o canal constitui uma das multiprogramações da TV Brasil em São Paulo, no Distrito Federal e no Grande Rio de Janeiro. Sua programação pode ser assistida pela Internet em tempo real com a televisão, veja aqui mais detalhes.

Sua grade é constituída por programas de parceiros do campo público (tvs comunitárias, universitárias, legislativas e educativas), além de colocar no ar oito produções próprias e duas coproduções. Uma delas é o Curta Agroecologia (acesse aqui), realizado em parceria com a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). Com algumas produções premiadas, a parceria visa dar voz e multiplicar experiências que promovam o desenvolvimento sustentável, o fortalecimento da agricultura familiar e tantas outras atividades do movimento. A programação geral do canal trata de políticas públicas, cidadania, tratamentos, atualidades, comportamento, tecnologia, meio ambiente e sustentabilidade, literatura etc.

Para falar sobre o Canal Saúde e direito à comunicação, conversamos com a jornalista Márcia Corrêa e Castro, que é a atual coordenadora do projeto. Com mestrado e doutorado em educação pela PUC-Rio, ela também é professora e, dentre outras atuações, foi uma das representantes do poder público entre os delegados eleitos para a I Conferência Nacional de Comunicação. Na entrevista, ela fala sobre a importância da diversidade das narrativas nos meios de comunicação, da agroecologia na promoção à saúde e da dificuldade de os governos desenvolverem políticas públicas para o setor. Na sua opinião, é preciso se apropriar das atuais ferramentas tecnológicas, mas sempre com cuidado em relação ao controle e poder dos grandes conglomerados de comunicação.

Qual a importância do debate sobre o direito à comunicação?

O direito à comunicação ainda é uma coisa muito difusa na sociedade brasileira, que as pessoas não materializam muito bem. É diferente do direito à saúde e educação, porque por mais que esses direitos sejam violados é muito claro para todos a necessidade deles. Inclusive há uma unanimidade discursiva de que saúde e educação são direitos. Já o direito à  comunicação é muito confundido com o acesso a qualquer informação, então enquanto vende jornal na banca, telejornais e programas passam na televisão, rádio toca, as pessoas acham que o seu direito está garantido. Só que esse direito vai além disso, inclui também produzir e veicular informação. Se uma dessas vias está impedida, se existe alguém que não tem voz, o direito à comunicação não está sendo atendido.

Quando dou aula costumo dizer que o fato de a Globo, a Folha, o Estadão, as revistas, a mídia hegemônica em geral fazer uma comunicação enviesada, ou seja, comprometida com determinados interesses da sociedade, não é um problema desde que dentro de determinados limites. As pessoas têm o direito de se comunicar para defender seus interesses, sobretudo veículos impressos, que são empresas exclusivamente privadas. O problema é que outros segmentos da sociedade não têm a mesma oportunidade. Ou seja, não têm acesso ao espaço midiático. No caso da agroecologia, por exemplo, o problema não é ter os comerciais do Agro é pop, Agro é Tec, Agro é tudo. O problema é que não haja um espaço correspondente para vocalizar o discurso da agroecologia. Se cada cidadão e cidadão tivessem acesso igualitário aos diferentes discursos presentes na sociedade, aí sim, poderíamos dizer que haveria liberdade para cada um formular seu ponto de vista.    Não é o que acontece. O que vemos são determinados discursos serem repetidos e disseminados a exaustão, até que alcancem o patamar de “verdade” absoluta.

Foto: arquivo

E qual o papel do Canal Saúde neste contexto?

O Canal Saúde não é um canal público, porque para ser pressupõe algum nível de controle social, a gente precisaria ter um conselho editorial ou curador que permitisse que a sociedade civil e algumas entidades além da Fiocruz pudessem opinar sobre a nossa grade, abordagem, etc. Mas o Canal Saúde se pretende um canal público, então buscamos dar voz ao maior número possível de segmentos sociais. Claro que o Ministro da Saúde fala nele, mas queremos que o pessoal da agroecologia, quem batalha pela democratização da comunicação, etc, também fale. Tentamos garantir espaços equânimes para vários setores. O desafio é que não temos a visibilidade que um veículo hegemônico tem. Apesar de ser um canal mantido com recursos do governo, o próprio sistema e a ausência de política pública de comunicação não permitem que esses canais (Tv Escola, Tv Brasil, etc) tenham a mesma visibilidade e espaço que canais controlados por empresas privadas. Aliás, é sempre bom lembrar que nenhum canal de TV ou rádio é 100% privado. Todos são concessões públicas, e deveriam agir partindo dessa premissa.

Nas diretrizes do canal constam a educação e a saúde como principais pilares. Como surgiu a aproximação com a agroecologia dentro desse escopo?

O SUS de um modo geral tem um entendimento de saúde que vai muito além da ausência de doença, é um conceito ainda mais amplo que a prevenção no sentido da promoção à saúde. Para uma pessoa estar saudável não basta não estar doente ou vacinada, ela precisa ter acesso a um meio ambiente adequado, educação, emprego, renda, lazer, cultura, etc. Ao garantir esse conjunto de direitos é possível dizer que uma pessoa está tendo uma vida em que ela possa tirar proveito pleno do seu potencial enquanto ser humano. E a agroecologia sempre apareceu como uma preocupação, embora antes não tivesse esse nome, com a presença da segurança alimentar, do meio ambiente, etc. O canal surge em 1994, então o termo que ainda está em disputa não era tão disseminado e era algo muito longe do horizonte da mídia em geral. Em 1996 já fazíamos programas sobre agricultura familiar e segurança alimentar, então sempre teve essa preocupação.

Mas a agroecologia aparece com mais força a partir do programa Comunidade em Cena, que está na nossa grade, onde tentamos mostrar experiências de promoção da saúde desenvolvidas por atores da sociedade civil. Percebemos que eram olhares sempre muito urbanos e a nossa maior audiência está nas periferias e interior das cidades, então precisávamos falar com o público que não está nos grandes centros. Buscamos a parceria com a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e o processo foi tão rico que acabamos criando em 2012 um programa específico para isso: o Curta Agroecologia, que no início estava dentro do Comunidade em Cena e ganhou uma janela própria depois..

Você pode dar alguns exemplos sobre esse projeto ter sido assim tão exitoso?

Ele apresenta experiências bem sucedidas de agroecologia, que no nosso entendimento são de promoção da saúde. Tem o cultivo de frutas sem agrotóxicos na Chapada do Apodi (RN) em meio a um território que vê o uso intensivo dessas substâncias no entorno. Tem o vídeo Coragem é um dom, de um casal de senhores que moram no sertão e conseguem conviver com a seca criando cabras a partir de várias tecnologias. São experiências muito interessantes e esperamos que a veiculação do programa contribua para multiplicar esses modelos. São documentários belíssimos, vários receberam prêmios, inclusive o Vídeo Med 2018, que é um festival de vídeos sobre a promoção da saúde.

Qual a sua avaliação sobre a abordagem dos meios de comunicação a respeito da agroecologia?

É bem difícil alguém falar de agroecologia na mídia hegemônica. Lembro de um programa na tv por assinatura gravado num território de agroecologia e em nenhum momento usaram esse termo. Sempre utilizam a palavra orgânico. Isso decorre de todo um processo de exclusão dessa pauta, porque não vai ao encontro dos interesses de quem mantém essas mídias. Já melhorou bastante, mas ainda temos um longo caminho a percorrer. De um modo geral os próprios jornalistas não conhecem o termo, não sabem a diferença entre orgânico e agroecológico. Mesmo no Canal Saúde percebemos isso e tentamos corrigir.

Há também uma questão de linguagem, que envolve a agroecologia e os orgânicos.

Vendo programas antigos na TV, quando a agroecologia já estava forte, o pessoal só usava o termo orgânico, que é um certo nicho também. A gente fez uma oficina recentemente com os nossos profissionais e muita gente não entendia a diferença. Na saúde tem programas que costumam falar faça exercício, se alimente bem, durma 8 horas por dia, etc, em que se considera o aspecto individual da saúde. O orgânico faz isso, está preocupado com o que você bota no prato. Mas quando se fala de promoção da saúde é considerada a dimensão coletiva, que é impossível com uma cidade poluída, sem emprego, com medo de violência, etc. Mesmo que você se alimente bem, a saúde vai depender desses aspectos coletivos. É necessário que exista uma série de políticas para promover a saúde, e essa é a diferença do orgânico para o agroecológico. Ver como as coisas estão sendo distribuídas, o sistema produtivo está organizado, tem a ver se o alimento na sua casa é saudável ou não.

Foto: Canal Saúde

É uma questão de conflito de interesse entre mercado e o bem comum, nesse aspecto?

A comunicação no Brasil é essencialmente mantida e sustentada com dinheiro privado, apesar de ter começado com rádios comunitárias. Assim que ela se massifica passa a contar com dinheiro privado. Nós fomos constituir nossa primeira emissora de TV pública apenas em 2008. Em outros países do mundo a comunicação pública é uma realidade. Os EUA têm emissoras públicas e comunitárias de televisão, assim como países da Europa e o Japão. No Brasil temos uma confusão muito grande entre público e estatal.

Ocorreram algumas conferências municipais e estaduais, que culminaram na Nacional com um documento de propostas, que acabou sendo engavetado. O governo Temer também logo que entrou já tomou medidas na EBC, como você vê essa questão de governo e políticas de comunicação?

Esse documento era um projeto para um marco regulatório para a comunicação no Brasil, que foi conduzido à época pelo ministro Franklin Martins, só que nunca saiu do papel. Há uma dificuldade muito grande de conduzir essa pauta de comunicação. Toda mudança de governo no Brasil, desde o governo Collor, duplica ou triplica o número de concessões distribuídas. As rádios e tvs têm sido utilizadas como moeda de troca para apoio político, então essa ausência de compreensão do que seja o direito humano à comunicação está em todos os setores da sociedade. Inclusive entre os tomadores de decisão no governo ou no legislativo, e acaba sendo reduzido a uma ferramenta de cooptação ou propaganda política. Por mais que tentem sucatear a saúde e o SUS esteja sendo desmontado, existe uma cerimônia discursiva quando se fala de saúde. Na comunicação não, ela é vista como uma mercadoria, moeda de troca, e é usada independente de ser um direito. A comunicação como direito nunca foi abraçada por nenhum governo.

As tecnologias atuais não mudam um pouco esse cenário, como a comunicação indígena atual, embora a hegemonia permaneça a mesma?

É inegável que as novas tecnologias de comunicação criaram espaços que não haviam antes. Hoje o problema nem é mais o acesso aos veículos, já que qualquer pessoa pode produzir um conteúdo e jogá-lo no youtube. A questão agora é a relevância. Como achar o conteúdo do seu interesse no mar de informação da Internet? Além disso, persiste o problema do acesso.  De acordo com dados de 2019 do Comitê Gestor da internet no Brasil, mais da metade da população acessa a Internet por meio exclusivo de celulares. A maior parte desses aparelhos é pré-pago com planos de dados que têm, em média, 1 MB, o que não dá pra ver uma live ou filme no Netflix. Alguns planos de dados oferecem o livre acesso às redes sociais. Claro que ter acesso a redes sociais é melhor do que não ter acesso a nada. Mas é importante compreender que isso aprisiona os usuários mais pobres entre os muros das redes sociais, que se transformam na sua principal, senão única, fonte de informação. Obviamente, eles se tornam mais vulneráveis às fake news e outras formas de desinformação. As pessoas ficam se alimentando de manchetes sem poder checar as informações.

É importante que os movimentos sociais se apropriem dessas ferramentas, mas é muito perigoso acreditar que elas vão resolver o nosso problema. Há toda uma lógica nas redes sociais que controla quem tem acesso a qual informação. Os algoritmos tendem a mostrar postagens sobre temas sobre os quais você já manifestou interesse. Quem não conhece a agroecologia vai continuar sem conhecer, porque não vai chegar a esse tema através de redes sociais. Claro que tem as exceções que confirmam a regra, mas de um modo geral do ponto de vista sistêmico é assim. Defendo enquanto comunicadora que os movimentos se apropriem dessas ferramentas, mas continuem investindo na relação com outros veículos. Pensar estratégias que casem várias possibilidades de disseminar informação, ajuda a tirar proveito da comunicação de fato.