Foto: Laura Murta

Por Laura Murta

Casas entre bananeiras
Mulheres entre laranjeiras
Pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar… as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.
(Carlos Drummond de Andrade)

Era assim… devagar, tudo tão simples, tão previsível, tão bom! A vida sem pressa, um dia de cada vez, sem sobressalto, a vida nos Gerais, no Vale… Assim como diz o poema do Drummond, a vida na Comunidade Geraizeira do Lamarão, no Vale das Cancelas, Distrito de Grão Mogol, Norte de Minas Gerais. Região na mira dos chineses, da Mineradora Sul Americana de Metais S/A – SAM que denomina o projeto do qual pouco ou quase nada se sabe de Projeto Bloco 8, que pretende explorar as jazidas de minério de ferro de, pelo menos, 11 comunidades tradicionais, como a do Lamarão, localizadas na área do empreendimento. Entre os poucos dados divulgados pela multinacional, estão o investimento de 2,1 bilhões de dólares e a produção estimada de 30 milhões de toneladas de pellet feed (base úmida) por ano.

Há um ano, o estado de Minas Gerais e o Brasil ganharam os noticiários internacionais com o rompimento da barragem de rejeitos do Córrego do Feijão, em Brumadinho, de propriedade da Vale. As notícias chegaram também na tranquila comunidade do Lamarão. Todos sabem foram 270 mortos, 11 pessoas ainda estão desaparecidas, corpos soterrados num mar de lama que matou o Rio Paroapeba e seguiu um caminho de morte e destruição até o Vale do São Francisco.

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Apesar de toda a simplicidade, o geraizeiro João de Librina, morador do Lamarão, entende a gravidade do que é viver tão próximo a uma barragem. Seu João, em seus 70 anos de vida e muita sabedoria, entende e sofre como os moradores de Barão de Cocais, Macacos e tantas outras comunidades que vivem dormindo com um inimigo como uma barragem de rejeitos. O que dizer então, para esse sertanejo sobre a possibilidade de ver o lugar em que nasceu, se criou, criou filhos, netos, dá espaço para a segunda maior barragem de rejeito de minério de ferro do mundo? E mais, a água, bem tão valioso, tão escasso no semiárido mineiro, ser usado para empurrar o minério de ferro da região até o Porto de Ilhéus, no Sul da Bahia?

“Só de pensar nessas coisas, eu perdo (sic) o sono e meu coração açulera (sic)”, diz Dona Geralda, assim como o seu João, uma vida inteira no mesmo lugar, vivendo do mesmo jeito, feliz assim, sem pressa, sem ganância.

O Projeto Bloco 8 teve sua origem no antigo Projeto Vale do Rio Pardo, composto por uma área de mineração e uma usina de tratamento de minério. Em 2016, o IBAMA, rejeitou o projeto por inviabilidade ambiental. O parecer técnico que embasou a decisão destacava os riscos às comunidades e ao meio ambiente. O órgão responsável pelo licenciamento, na época, entendeu que o projeto resultaria na geração de volume muito grande de rejeitos, evidenciando a escolha tecnológica incompatível com as técnicas mais modernas de mineração, que buscam minimizar a dependência de barragens de rejeitos. Para a implantação do projeto pelo menos 11 comunidades serão destruídas e os impactos serão sentidos ao longo da bacia do Rio Jequitinhonha e do Rio Pardo.

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O parecer dos técnicos do IBAMA corrobora o que diz a sabedoria e a experiência dos geirazeiros. Os povos e comunidades tradicionais são os guardiões das águas e da natureza. Todas as águas são uma só em permanente movimento e transformação. A água é uma entidade viva e os povos e comunidades tradicionais vivem em profunda unidade com ela e tudo o que as atinge, todos os ataques e ameaças que sofre, repercute na existência dessas comunidades, em seus corpos e mentes.

Empreendimentos deletérios como a mineração colocam em risco o leito dos rios, suas nascentes, as matas ciliares, lençóis freáticos, fauna, flora, desequilibra, exaure e mata, homem, bicho e tudo ao seu redor. Interrompe o modo de vida, o jeito de ser e estar no mundo, de pessoas como João de Librina, Dona Geralda, Maria Idalina. É para além do que entendemos como lugar geográfico, mas lugar onde estão as referências pessoais e o sistema de valores que direcionam as diferentes formas de perceber e constituir a paisagem e o espaço geográfico. Trata-se, na realidade, de espacialidades carregadas de laços afetivos com os quais desenvolvemos ao longo de nossas vidas na convivência com o lugar e com os outros. O conceito de lugar assume um caráter subjetivo, uma vez que cada indivíduo já traz uma experiência direta com seu espaço, com o seu lugar, houve um profundo envolvimento com o local para adquirir tal pertencimento.

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É disto que estamos falando. Do desejo e do direito de estar e permanecer onde estão, nasceram e enterraram seus mortos. Foi para ouvir essas pessoas que o Arcebispo da Arquidiocese de Montes Claros, dom João Justino, esteve, acompanhado pela deputada Leninha Souza (PT/MG), presidenta da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia, reunidos com as comunidades tradicionais do Vale das Cancelas, em reunião realizada na escola da comunidade do Lamarão, no último domingo (7) de março.

Dom João Justino mostrou-se comprometido com a luta das famílias e, sobretudo, recordou as orientações do Papa Francisco quanto à importância da Ecologia Integral e a urgente necessidade de lutarmos em defesa de nossa casa comum. “Estamos vivendo um momento extremamente importante para a nossa reflexão, especialmente no tempo em que, vivendo a quaresma, somos orientados pela Campanha da Fraternidade desse ano à tarefa de aplicarmos o tema: Viu, sentiu compaixão e cuidou dele. Fraternidade e vida: dom e compromisso. Eis o compromisso, com a vida, vida em plenitude”.

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A deputada Leninha destacou que segue em luta no parlamento contra o projeto de morte da SAM. Ressaltando que, por hora, o processo de licenciamento está suspenso por liminar, mas a mineradora segue visitando prefeituras, parlamentares e outras entidades no intuído de buscar e, até mesmo, cooptar apoio para a retomada do processo. “Não é esse o modelo de desenvolvimento em que acreditamos. Não podemos esquecer os dois crimes recentes em Minas Gerais, o da SAMARCO, em Mariana e, o da Vale, em Brumadinho. Não podemos ficar reféns de um modelo que mata homem e natureza. De um modelo de desenvolvimento que retira as populações tradicionais dos seus territórios”.

O processo de especulação e privatização de nossa natureza é secular. Fomos forjados, há 300 anos, a partir da exploração das minas de ouro. Sem que houvesse um pacto ou uma divisão de tarefas, coube aos Gerais alimentar as Minas e assim seguimos, servindo as Minas.

Minérios, recursos hídricos, fertilidade do solo e força física dos trabalhadores, são exauridos em Minas Gerais e drenados para o mercado mundial, configurando a posição subordinada do Brasil e do estado de Minas na Divisão Internacional do
Trabalho.

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O cenário da mineração nos últimos anos confere o seu rápido crescimento em termos produtivos. De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Mineração (2011), a partir do ano 2000, a procura maior por minerais, principalmente pelo elevado índice de crescimento mundial, incluindo países como a China, impulsionou o valor da Produção Mineral Brasileira – PMB. No período 2001/2011 o valor da PMB teve crescimento de 550%, saindo de US$ 7,7 bilhões para US$ 50 bilhões.

Foi nesse clima de guerra, de Davi contra Golias, que nos encontramos, num domingo de chuva, que enche de esperança os corpos cansados, as mãos calejadas dos que vivem no sertão, com homens, mulheres, crianças em Lamarão. Gente simples, gente forte, que nos faz pensar no dom e no compromisso de lutar.