“Bye bye Brasil” é um filme que transparece ser apenas um road movie sobre mudanças pessoais, mas o que ele focaliza são mudanças sociais que estão ocorrendo diante de nossos olhos e não damos devida atenção

Foto: Divulgação

Por Ben Hur Nogueira

“Para vigo me voy”

No final dos anos 1970 tivemos um experimentalismo fílmico único no cinema nacional. Tivemos filmes brasileiros sobre problemas reais de nosso cotidiano, estórias universais contadas à nossa maneira. A anistia política de 1977 permitiu os veículos de comunicação parcialmente terem seu retorno cultural. Para quem sobreviveu aos famigerados anos de chumbo, o pior havia passado. Houve um amadurecimento artístico-cultural antológico no âmbito cinematográfico e dramaturgo. Não eram mais estórias sobre problemas universais, eram estórias de problemas universais contadas à nossa maneira por cineastas autorais. Nesse cenário costumo categorizar um grupo de películas nacionais como uma sequência cronológica cinematográfica  que representa bem esse período canônico do cinema nacional. Esses  filmes são como se fossem filmes-irmãos, ou seja, filmes lançados na mesma época com propósitos similares, algo muito usual no cinema. 

Esses filmes são: “Bye bye Brasil”, “Dona flor e seus dois maridos” e “Xica da Silva”. São filmes lançados durante o mesmo período de tempo (1976-1980), onde temos dois  cineastas maduros retratando problemas nacionais com visões que já carregavam desde suas épocas experimentais do cinema novo. Cada filme destes carrega consigo individualmente um desejo de expor problemas sociais em um espectro autoral, o que torna cada um desses filmes obras primas que necessitam de ser revisitadas no cinema brasileiro.

“Xica da Silva” lançado também em 1976  foi o grande precursor desse movimento cinematográfico nacional. Na trama, temas como racismo, liberdade sexual e resistência poderiam facilmente serem dramatizados de maneira estereotipada como ocorre em obras da teledramaturgia como “A escrava Isaura” de 1976 onde a figura do white savior impera e decerto predomina, mas graças ao talento de Cacá Diegues (cara que já-já falaremos), essa película torna-se um deboche contra ao privilégio de senhores de engenho ao retratar como que a sociedade escravagista lidou para o sucesso de uma escrava cuja alforria foi-lhe garantida. “Xica da Silva” assim como esses filmes tem como propósito transfigurar a ideia de como vemos personagens pretos no cinema brasileiro. Cacá Diegues, seu realizador não impôs em nenhum momento quaisquer tipo de estereótipo cultural que estávamos habituados na televisão, mas ao invés disso, nos introduziu excepcionalmente ao protagonismo preto que já tínhamos tido o privilégio de assistir preteritamente em sua obra cinema-novista “Ganga Zumba”.

“Dona flor e seus dois maridos” de Luiz Carlos Barreto lançado em 1976 para mim decerto é um grito de liberdade contra anos de repressão. A resposta da competência cinematográfica de vários artistas consagrados que trabalharam na produção do longa favoreceu a consistência das mensagens que a película queria desenvolver. Ademais, dois fatores me chamam a atenção do longa. O primeiro fator concerne algo simplório: a personagem principal (Sonia Braga) lidando com estigmas baseados em uma sociedade sexista e como ela lida com isso introspectivamente. O segundo fator reflete como ambos filmes abordam a sexualidade da personagem que precisa enfrentar uma sociedade que vê sua coragem como algo subversivo e promíscuo. “A flor da pele” de Chico Buarque é representada três vezes na película simbolizando os sentimentos dúbios de Dona Flor referente ao seu modo de ver o mundo. 

Por fim “Bye bye Brasil” de Carlos Diegues lançado em 1980 que sempre que classificado é tido como um road movie cômico e de fato é um road movie (filme que se passa na estrada) mas diferente de qualquer road movie que já estamos habituados como “Central do Brasil”, ”Pequena Miss Sunshine” entre outros, aqui não temos uma trama que se baseia em um amadurecimento de personagens como um road movie costuma propor sempre que materializado, mas pelo contrário, o filme nos propõe a visitar um Brasil que desconhecemos, um país melancólico e cheio de problemas sociais que são ou abafados pela mídia ou simplesmente esquecidos. 

“Bye bye Brasil” é uma película lançada na época da Anistia brasileira onde ecoavam-se gritos por uma liberdade que buscávamos durante muito tempo. São tantos temas que o filme se propõe a se dedicar que fica até difícil achar que o filme é uma mera comédia do final dos anos 1970 sendo que na verdade, “Bye bye Brasil” é um filme que utiliza de sua comédia para expor problemas sociais através do carisma de seus personagens. Quem supõe que “Bye bye Brasil” é um filme sobre uma trupe circense atravessando o Brasil não prestou atenção no que o diretor propôs, ou simplesmente não compreendeu o sentido que o país estava mudando durante a reta final da ditadura. “Bye bye Brasil” é uma película sobre sonhos em um país que se recusa sonhar. São tantos sonhos que o filme aborda diretamente e indiretamente: uma vida melhor, empregabilidade, reconhecimento, autoestima, mas o sonho que mais chama a atenção quando se assiste “Bye bye Brasil” é o sonho da democratização, não apenas uma democratização constitucional, mas uma democratização que também priorize aqueles que não tem voz, uma democratização que dá a certeza de que um país-continente como o nosso pode ser cheio de talentos, sonhos e acima de tudo esperança.

Em outras palavras, “Bye bye Brasil” é uma película que transparece ser apenas um road movie sobre mudanças pessoais, mas o que o filme decerto focaliza são mudanças sociais que estão ocorrendo diante de nossos olhos e não damos devida atenção. O projeto de democratização de “Bye bye Brasil” ocupa principalmente o olhar franco e sensível que Cacá Diegues transmite de maneira objetiva, a democratização que o filme vinha buscando era a democracia que o povo começava a pedir durante o fim da ditadura.

Sua sinopse é sobre uma trupe circense viajando pelo brasil nos anos finais da ditadura militar. Aqui, Ciço, um sertanejo sem perspectivas se oferece junto de sua esposa para trabalhar com a trupe após esta performar na sua cidade. A trupe aceita e logo eles viajam pela região norte do Brasil buscando audiências.

De antemão, é lícito ressaltar o amadurecimento da sapiência fílmica de Cacá Diegues aqui. A maneira que ele lida com os personagens é quase que impecável. A trupe formada por Lorde Cigano (José Wilker), Salomé (Betty Faria) e Andorinha (Príncipe Nabor) demonstra uma habilidade do Cacá em trabalhar com vários personagens ao mesmo tempo, ao mesmo tempo que temos naturezas e personalidades distintas. Lorde Cigano por exemplo, o líder da trupe, utiliza de sua lábia social para estimular audiências para assistirem suas performances, Salomé, a dançarina, demonstra uma extravagância e independência com uma personalidade extremamente forte, algo que Cacá sempre faz com suas personagens principais, como foi o caso de “Xica da Silva” (1976) e “Dandara” (do filme Quilombo de 1985) ambas interpretadas pela Zezé Motta. Andorinha por fim é um homem fisicamente forte, mudo e sua personalidade não chega a ser explorada, mas sua importância é de suma necessidade para o clímax da trama que já falaremos.

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Logo no começo do filme ao parar num restaurante de beira de estrada, Lorde Cigano se depara com um velho conhecido seu que lhe informa sobre Altamira, uma cidade brasileira localizada no Pará que passa a ser um desejo obsessivo do Lorde Cigano que subitamente passa a tratar essa cidade como uma espécie de utopia urbana, onde ele terá todos os tipos de fartura profissional, segundo os detalhes obtidos por seu conhecido no restaurante. O filme utiliza desse desejo como uma válvula de escape que critica as propagandas governamentais dos anos 1970 do milagre econômico. A utopia desejada pelo Lorde Cigano vira seu subterfúgio mental, ele mentaliza a cidade como uma esperança de prosperidade pessoal.

A película ainda lida com fatores muito bem minuciosos escolhidos por Cacá: às interações do velho e do novo. Uma cena que esboça bem isso é uma das cenas mais famosas da película, onde a trupe percebe ao chegar em uma cidade onde costumavam arrecadar muito com suas performances que a televisão está roubando sua clientela através da exibição de telenovelas. A edição do filme nesse ponto foi meticulosamente genial nessa parte do filme, já que ao chegar na cidade, somos brevemente interceptados para cortes abruptos de antenas televisivas mas não informados sobre o sentido delas até compreendermos que a TV tinha chegado na cidade impossibilitando a trupe de arrecadar tanto quanto faziam no passado. Enraivado, Lorde resolve destruir a única televisão da cidade causando em uma expulsão obrigatória e amigável dele e da trupe. Essa sequência esboça como o velho e o novo lidam com a transformação cotidiana. Em uma cidade tão pacata a única alegria daquele povo sôfrego era de assistir televisão cotidianamente na praça, gente reunida como se fosse um subterfúgio de suas dores. A Caravana Holiday inconscientemente transborda a ideia de uma democratização já que priorizam sempre suas performances em ambientes que são distantes das grandes capitais e sobretudo fora do eixo midiático, mas as coisas começam a mudar quando passam a visitar cidades e notam que não são tão comerciáveis quanto outrora e percebem que estão perdendo seu espaço para a televisão. 

Uma das sequências mais tocantes da película em termos da democratização de veículos artísticos é uma sequência onde a Caravana se depara com uma cidade pacata e ao chegar lá nota que o ambiente cultural mais imperante costumava ser um cinema de um velho senhor (Jofre Soares) que nota que o cinema provido por um velho projetor não é tão lucrável quanto antes e resolve dar a Caravana a chance de algum lucro. A sequência em si é curta, mas vemos nela que antes da televisão, os projetores de cinema costumavam imperar em salas de cinema sertanejas como diz o personagem interpretado por Jofre Soares, mas deste momento em diante, vemos que o projecionistas mal consegue lucrar como antes e passa oferecer apenas comida como pagamento de entrada para uma das sessões. Por curiosidade, o filme que é projetado é “O ébrio”, uma das maiores bilheterias nacionais de todos os tempos.

O filme lida com a chegada do novo e os desafios enfrentados pelo modus operandi que enxergamos as coisas. A película não chega a ser episódica, mas tem várias sub-tramas entrelaçadas. Ciço se apaixona desesperadamente por Salomé, deixando sua esposa(que inclusive está grávida) de lado. Lorde Cigano se demonstra suscetível a vícios e ações impulsivas sempre confiando em seu instinto o que faz ele sempre passar por situações intricadas. A própria maneira como ele fetichiza seu desejo pela cidade de Altamira demonstra sua necessidade suscetível a ter novas motivações vivenciadas. Ao mesmo tempo que isso cria nele uma máscara que explora sua persona que tem sempre planos na mente, demonstra uma necessidade que ele lida cotidianamente de passar por algo novo sem deixar o velho de lado.

Antes de chegar a Altamira, a trupe se depara com um grupo nativo brasileiro que foi deslocado de sua tribo por militares que estavam construindo uma rodovia e para ampliar a via, sua tribo foi deslocada do seu lugar de origem que os pertencia. Desse momento em diante a película toma um outro rumo que particularmente não esperávamos. A película não se torna dramática mas ao mesmo tempo lida com questões sérias que poderiam se perder na proposta na mão de um diretor que não sabe como conduzir uma estória, mas graças a maturidade fílmica de Cacá Diegues e do talento do elenco, temos uma condução madura da estória ao mesmo tempo que o humor é usado para difundir o drama de cada personagem ao mesmo tempo que a película lida com seus desejos mais oníricos. 

A tribo passa a acompanhar a Caravana para a cidade de Altamira, durante o trajeto temos possivelmente uma das cenas mais maduras do filme. Dasdô (esposa de Ciço) é perguntada por dois membros da tribo se ela sabe quem era o presidente do Brasil e ela responde que não sabe. Neste momento da estória temos duas ações ocorrendo paralelamente: O fato que os brasileiros ainda não elegiam presidentes naquela época e as influências causadas pelo êxodo rural ou os choques culturais que os membros da tribo sentiam ao interagir com uma sociedade que não tinham tanta habituação. O filme lida de maneira explícita ainda com temas como o genocídio nativo-nacional durante a ditadura e como empresas de cidades ribeirinhas (onde não existe tanta fiscalização) contratam nativos brasileiros de maneira laboriosa para aumentar o fluxo de produção e enriquecer mais ao mesmo tempo que a região Norte do Brasil passa a ficar aquém da deflorestação em massa e da destruição de seu patrimônio feito por grandes industrias financiadas pelos militares.

Ao chegar em Altamira, a Trupe percebe que a utopia antanho dita já não é mais existente devido a exposição em massa de atos de deflorestação nas florestas limítrofes e pelo genocídio que ocorre com povos nativos brasileiros na região e para piorar a situação da trupe na localização, Lorde Cigano perde o caminhão da caravana após perder uma aposta onde Andorinha perde uma quebra de braço. Paralelamente, a tribo da qual a trupe ofereceu carona aceitam uma proposta de trabalhar em uma fábrica de papel de uma fábrica financiada por empresários. O clímax da película é estabelecido pouco tempo depois com Ciço, sua esposa e filha indo para Brasília participando de um projeto social governamental criado para alocar migrantes em conjuntos habitacionais criados pelo governo de outrora (majoritariamente para empregá-los em atividades laboriosas) e juntos criam um negócio familiar que estimula migrantes de regiões nordestinas que foram para Brasília trabalhar, a trabalharem com arte de sua terra, um desejo de trabalhar com arte  que inconscientemente Ciço aparenta ter herdado de seu tempo com a Caravana Holliday. Pouco tempo depois, vemos Lorde Cigano e Salomé visitando Ciço em seu novo negócio familiar em Brasília com um novo caminhão recheado de dançarinas tocando “Brazil”, canção originalmente composta por Ary Barroso nesta canção sendo cantada por Frank Sinatra. Ao observar Ciço, a trupe apresenta sua nova Caravana conquistada após alguns meses depois de se verem pela última vez. Lorde Cigano e Salomé oferecem para Ciço uma vaga na nova caravana, porém este, ao se deparar com as responsabilidades do novo ambiente, com seu novo negócio e percebendo que sua família precisa dele, resolve recusar a proposta. A trupe compreende, se despede e vai embora e Lorde Cigano, com sua frase icônica: ”Para Vigo me voy” é capaz de fazer o sol nascer na estrada, terminando a película.

“Bye Bye Brasil” é uma película brasileira sobre o desejo onírico da população brasileira de ter seu ambiente democratizado, seja culturalmente ou democraticamente, lançado em um momento onde já havia uma mobilização social para o fim da repressão da ditadura militar e o filme de maneira cômica mas precisa, exemplifica sua natureza através de um gênero onde se explora muito o comportamento humano (road movie) para favorecer sua mensagem de maneira concisa ao mesmo tempo que critica o comportamento governamental durante a ditadura militar. É um filme sobre passagens do velho e do novo, não é sobre estagnação, mas sobre ser adaptativo. É uma película sobre a maneira que o novo vem ao mesmo tempo que o velho precisa se adaptar. A Caravana Holiday percebe que a Televisão vem roubando seu espaço cultural nas cidades pacatas, o que ao mesmo tempo que justifica a democratização do acesso televisivo, vemos que a trupe precisa se readaptar ao novo cenário que já não os favorece como antes. O mesmo ocorre para o cenário brasileiro de outrora quando o filme foi gravado, onde a ditadura militar ainda coexistia com a população nacional, mas as transformações culturais demonstraram que ainda que víamos um cenário longe de ser um cenário constitucional, vimos bem de longe uma luz no fim do túnel. Aqui na película, o genocídio nativo-brasileiro é massivo e demonstra que o governo daquela época favorecia empreiteiras e garimpeiros estrangeiros  para abrir estradas, rodovias e fornecer fábricas laboriosas, algo que vimos no Brasil do século vinte e um no desgoverno passado. 

“Bye bye Brasil” diferentemente de quaisquer quintessencial road movie, não oferece um amadurecimento para os personagens em tela, mas oferece um amadurecimento de um país que já estava dando sinais que o governo militar já não tinha mais poder como nos anos de chumbo. É um filme sobre sonhos, um filme onde sonhos oníricos de ver a praia pela primeira vez, de ser famoso, de ganhar a vida, acessa o ambiente desse filme de maneira telúrica, como se mesmo materializado através de metáforas, fosse ainda uma película sobre esperanças e sobre resiliência. É um filme sobre mudanças do nosso cotidiano, e Cacá não demonstrava preguiça em sair da zona de conforto cinematográfica para transmitir sua visão de maneira direta sobre a complexidade dos personagens.

A última mensagem que a película mostra é uma mensagem positiva para as próximas gerações dada pelo próprio Cacá onde aparece na tela: ”Para o povo brasileiro do século XXI”, como se fosse uma carta dentro de uma garrafa sendo jogada em um rio cuja margem nos levaria a democracia no dia seguinte, o que de fato ocorreu. “Bye bye Brasil” é uma película sobre a entrada do Brasil para uma nova etapa de nossa história, a despedida desse país que estamos acostumados nos demonstra força ao mesmo tempo que devemos estar de olhos atentos. 

Em memória de José Wilker,

Para Cacá Diegues,

Para meus pais Márcio e Juthay,

Para minha irmã Camila,

Para o povo brasileiro do século XXII.