Texto publicado originalmente por Raphael Pati e Luana Patriolino no Correio Braziliense

A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) revelou, na última semana, uma piora dos indicadores de fome e insegurança alimentar, no Brasil. De acordo com o “O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI)”, 70,3 milhões de pessoas estavam, em 2022, em estado de insegurança alimentar moderada e 21,1 milhões de pessoas no país, em 2022, em insegurança alimentar grave — caracterizado por estado de fome.

Por meio do levantamento, a FAO detectou que, no último triênio 2020 /22, houve um crescimento de 122 milhões de pessoas, a mais, que passam fome, no mundo, em relação ao triênio 2017/19. Para 2030, estima-se que 590 milhões, ainda, passarão dias inteiros sem comer. No Brasil, mais de um terço da população, ainda, sofre de insegurança alimentar grave ou moderada, ou seja, perdem, ao menos, uma das três refeições diárias básicas.

Ao Correio, o ex-ministro Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome do Brasil e ex-diretor-geral da FAO, José Graziano, destacou os impactos da pandemia de Covid-19 na mesa dos brasileiros. Idealizador do ‘Fome Zero’, no primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ele afirma que o Brasil precisa de um programa “versão 2.0”, para retirar, mais uma vez, o país do mapa da fome. Leia a entrevista a seguir.

Como o senhor avalia os dados sobre o aumento da fome no Brasil e no mundo?

De fato, os dados da pesquisa Sofi surpreenderam. A nível mundial, houve uma certa estabilidade nos números, né? Houve um crescimento, em 2020, e, em 2021, com a pandemia, principalmente. E, depois, em 2022, com uma certa retomada das atividades econômicas, que não chegou a reduzir, mas apresentou uma estabilidade da fome no mundo.

Por que houve essa estabilidade?

Não houve redução da fome, em 2022, porque foi um ano muito agitado. Começou com a guerra na Ucrânia e tem, aí, a aceleração, nos primeiros meses, dos alimentos e da energia e isso, de alguma maneira, vamos dizer, minou a recuperação econômica que estava em curso. Então, não foi um ano bom para a economia mundial, porque a fome continuou.

E o cenário no Brasil?

Por aqui, houve uma explosão da fome. Chegamos a 70 milhões, na estimativa da FAO, do número de pessoas passando fome. É um número jamais alcançado. Nós trabalhávamos, no Instituto Fome Zero, com a miséria na faixa de 65 milhões, entre as pessoas com insegurança alimentar moderada e grave. Isso, em relação ao começo de 2022, significa que, ao longo do ano passado, entre março e dezembro, houve pelo menos 5 milhões a mais de pessoas. É um número muito alto de pessoas que passam fome, em miséria absoluta.

Quais as razões práticas para esse movimento repentino?

Ainda estamos procurando entender as razões desse movimento. Porque foi um ano eleitoral, houve um aumento de gastos públicos, houve um aumento do valor na transferência do Auxílio Brasil. Então, a expectativa era que, pelo menos, não houvesse um aumento da fome no Brasil, em relação ao início de 2022. Mas não foi isso que os dados da FAO mostraram.

O senhor avalia que a guerra da Ucrânia ainda impacta muito nesse cenário?

Em uma situação de guerra, tudo muda muito rápido. Em uma semana, mostra uma tendência de redução; depois, tem uma contraofensiva, aumenta, e etc. E existem, de parte a parte, ameaças todos os dias, praticamente. Tanto a Ucrânia quanto a Rússia afetam o Brasil. Não pelo lado da produção agrícola, em si, o Brasil não é consumidor significativo de nenhum produto exportado pela Ucrânia. Mas temos a dependência dos fertilizantes. O Brasil importa fertilizantes da Rússia, da Ucrânia e de toda essa região. Essa dependência foi, prontamente, equacionada, ainda em 2022, por uma visita da, então, ministra da agricultura, à Rússia, e celebrou alguns acordos de fornecimento. Aparentemente, o Brasil não tem problemas com ameaças de ficar sem fertilizantes. Resumindo: o impacto, para nós, é sobre os mercados; sobre o dólar e sobre a especulação financeira nos mercados internacionais. Isso é o que afeta a nossa exportação, basicamente, mais do que os mercados internos.

O senhor avalia que a persistência da fome, no Brasil, está mais relacionada aos efeitos, ainda,
da pandemia ou à falta de políticas públicas?

Não há dúvida de que a pandemia afetou muito. Mas vou lembrar duas coisas. Primeiro, o Brasil já tinha entrado no mapa da fome antes da pandemia. Então, a situação já era grave, em 2019, com os dados do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], mostrando que o Brasil tinha retornado ao mapa da fome. A entrada da pandemia piorou, muito, a situação, que foi agravada pela falta de políticas públicas. O governo anterior não tinha o combate à fome como prioridade. Não era um dos seus temas de preocupação. O governo anterior, primeiro, extinguiu o Bolsa Família e criou o Auxílio Emergencial. Depois, acabou o Auxílio Emergencial, no segundo semestre de 2020, para, novamente, criar, em 2021, um novo programa chamado Auxílio Brasil. Assim, complicou bastante a eficiência desses programas.

E qual a sua percepção sobre o agro no Brasil, hoje?

O agro deu um salto extraordinário, nesses últimos anos. Tivemos um aumento da produção, em todos os segmentos, seja na pecuária, seja na produção de grãos. E não nos resta dúvida dessa performance do lado produtivo extraordinário. Isso traz uma contribuição muito grande para a alimentação. Há um barateamento da alimentação, ao longo do tempo. Comparados há uns 20 anos, os produtos, hoje, apesar de toda a inflação, são, relativamente, mais baratos do que eram, anteriormente.

Mas, então, o que aconteceu para não vermos esse barateamento nas prateleiras?

O que aconteceu foi que o poder aquisitivo não acompanhou isso. Por quê? Porque os salários não cresceram. Então, nós tivemos, pelo lado da demanda, os salários, praticamente, congelados. Os reajustes salariais, no período, foram, principalmente, a partir de 2015, com o governo de Michel Temer, sistematicamente, abaixo da inflação. Houve uma perda do poder aquisitivo dos trabalhadores, de modo geral. Isso reduz o poder de compra da população. Quando você reduz o poder de compra, ou você é assalariado, quando você reduz o seu salário, em termos reais, onde é que você comprime? Você não pode comprimir no aluguel, você não pode comprimir nas despesas gerais de transporte, de luz. De todas essas despesas, a mais provável de você comprimir é na alimentação. Em vez de comer picanha, você passa a comer um bife de contrafilé ou, então, de coxão duro. E, depois, passa para a carne moída. Depois, você tira isso também. Assim, vão progredir nos ajustes.

E para os mais pobres?

Em uma família pobre, esse ajuste é, ainda, mais radical. Ela, primeiro, deixa de fazer três refeições ao dia. Isso é muito comum, infelizmente. Então, passa-se a tomar um cafezinho, literalmente, de manhã, se tira o almoço ou a janta e substitui por um caldinho. Quer dizer, esses ajustes típicos da população de baixa renda vão afetar, primeiro, em uma insegurança alimentar leve. Aí, você tira a qualidade do produto, mas, depois, você começa a cortar uma das refeições e, finalmente, se torna grave quando se passa, pelo menos, um dia sem comer. O que surpreende, no caso brasileiro, é o número de pessoas que passaram a não comer nada.

Também há a preocupação com a desnutrição nas crianças…

Tivemos um problema grave com a redução da qualidade da merenda escolar. O congelamento dos valores da merenda escolar levou as escolas a ajustarem a merenda desse mesmo jeito. Primeiro, diminuindo a qualidade dos produtos, reduzindo frutas, verduras e legumes, que são mais caros, e deixando só os produtos básicos, melaços. O impacto para o público infantil é ainda pior, ainda mais porque quem passa fome, com essa idade, carrega uma série de problemas, para o resto da vida, e isso impacta o desenvolvimento motor, para não falar do intelectual. Uma criança com fome, na escola, não aprende.

Como o senhor avalia o trabalho do ministro Wellington Dias à frente da pasta do Desenvolvimento, Assistência Social, Família e Combate à Fome?

Ele tem muita experiência. Era o governador do Piauí, quando implantamos o Fome Zero, e foi lá, naquele estado, em Acauã, em Guaribas, que começamos o programa. Dias é muito experimentado e é o homem que pode conduzir o Brasil a sair, novamente, do mapa da fome. Tenho certeza disso.

O Brasil precisa de outro ‘Fome Zero’?

Acho que o Brasil precisa de um Fome Zero 2.0. Porque, hoje, nós não temos só o problema dos que não comem. Temos, junto à fome, uma epidemia de obesidade — que resulta do comer mal. Infelizmente, os dados da FAO mostram isso, também. O Brasil é vice-campeão da América do Sul em obesidade. Só ficamos atrás da Argentina. Esse problema da obesidade, principalmente da obesidade infantil, é algo que compromete essa geração no futuro.

O senhor tem afirmado que sair do mapa da fome, hoje, está mais difícil do que há 20 anos. Por quê?

Por conta da pandemia que enfrentamos, ainda, e os seus resquícios. Outro motivo é que a miséria não é mais aquela miséria rural, do início dos anos 2000. A fome, hoje, está nas grandes metrópoles: está em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Brasília… Além disso, a miséria, nas cidades, não é só da fome. É da moradia — veja o número de pessoas na rua —, é da droga, é da violência. É muito mais difícil que um programa de transferência de renda tenha a eficiência que tinha antes. Com o Cartão Fome Zero, que deu origem ao Bolsa Família, fizemos vários estudos e a média de gasto da família, no cartão, era de mais de 90% para alimentos. Todo o dinheiro que você transferia à mulher, que recebia o dinheiro, era gasto em alimentos para os filhos da família. Atualmente, o cartão continua indo para a mulher, mas ela tem que dividir com o aluguel, com o transporte, com o material escolar, de modo que eu não sei, não tem um dado atualizado sobre isso, mas eu acho que menos de 50% do valor da transferência de renda vai para comprar alimentos.

Como o senhor avalia o discurso e a atuação do governo Lula contra a fome? Há muitas diferenças em relação ao primeiro mandato?

São muitas diferenças. A primeira grande diferença é que, em 2003, apenas o Lula estava convencido, e alguma assessoria mais próxima dele (entre a qual eu me incluía) que a fome era o nosso grande problema. Muita gente estava pensando em outras coisas. Agora, o Executivo está em torno dessa questão da fome. É um apoio uníssono de que esse é um problema que nós temos que enfrentar e resolvê-lo o mais rápido possível, porque temos a consciência de que, se não resolvermos esse problema, não resolvemos os outros, como o da educação e o da saúde, por exemplo.

O que o senhor destacaria durante a sua gestão na FAO?

Quando eu cheguei na FAO, nos anos 2000, o mundo já produzia um excesso de alimentos. Tinha alimentos sobrando. Não precisava dedicar toda a atenção da FAO à produção agrícola. Tinha que melhorar o consumo e os hábitos do consumidor. A origem da FAO foi a primeira grande mudança que eu tratei de implementar. A segunda mudança era incluir o tema do clima. Nós já estávamos percebendo que a alimentação sofria, muito, com o clima, não só pelas secas, principalmente, na África, mas também porque o clima afeta a qualidade do produto que você consome. Estávamos começando a consumir produtos de pior qualidade. E uma terceira mudança que eu fiz foi descentralizar. A FAO era muito romana, muito centralizada na sua sede, em Roma, na Itália. Demos mais autonomia não só aos países, mas também às oficinas regionais que têm, hoje, uma atuação muito maior do que tinham, anteriormente.

Publicado originalmente no Correio Braziliense