Foto: Rafael Novak

Por Gabriel Gutierrez

O rock como gênero musical nasceu da fusão do blues acelerado e da música country no sul dos Estados Unidos dos anos 1950. Seus primeiros grandes artistas foram Little Richard, um pastor selvagem ao piano e Chuck Berry, um guitar hero pioneiro que coroou a guitarra como a suprema protagonista do rock. Mas estes nomes, assim como os de Fats Domino e Bo Didley, viviam na mal chamada democracia estadunidense, que convivia à época sem maiores constrangimentos com a segregação racial do regime Jim Crow. Num contexto delirante em que se chama de terra da liberdade um país orgulhoso de seu apartheid racista, o rock precisou mudar para se adaptar ao interesse de uma audiência juvenil branca, o que, a partir de então, formatou toda a sua trajetória como cultura musical.

Mais de cinquenta anos depois, no Grammy de 2022, só houve um artista negro indicado às categorias relacionadas a este gênero musical: o Black Puma. Duo de rock soul psicodélico formado pelo afro-americano Eric Burton e por Adrian Quesada (de origem mexicana), o Black Puma foi indicado neste ano nas categorias de Melhor Performance de Rock e Melhor Álbum de Rock. A banda já havia sido indicada em 2020, como Artista Revelação, e 2021, como Gravação do Ano, Álbum do Ano e Melhor Performance Tradicional Americana.

O Black Puma é fruto do encontro entre o cantor e compositor Burton com o produtor e guitarrista Quesada. O primeiro cresceu performando na igreja – como James Brown, John Coltrane, Mahalia Jackson – e vivia de fazer músicas nas ruas de Austin, no Texas. O segundo era membro da banda de funk latino Grupo Fantasma, que já havia conquistado um Grammy em 2010. Da alquimia musical gestada pela parceria entre os dois, nasceu o Black Puma, em 2017, e um disco homônimo, em 2019. Baseada no carisma e energia incansável de Burton e no talento da dupla para a composição, a música da banda propõe um diálogo expressivo entre o folk rock de Bob Dylan e Neil Young e os universos musicais de Otis Redding, Wilson Picket, Al Green, e mais Marvin, Aretha etc.

Mas parece que a Academia que concede os prêmios do Grammy não se emocionou muito com esta proposta estética e resolveu dar todos os gramofones dourados da noite de novo para o Foo Fighters. O prêmio de heavy metal foi para o Dream Theater, e o Black Puma, assim como o Deftones, banda do cantor de origem mexicana/indígena/chinesa, Chino Moreno, o outro artista não branco da disputa, saíram de mãos abanando.

Foto: Rafael Novak

Talvez as personalidades da indústria da música dos EUA que escolhem os vencedores do prêmio tenham perdido a percepção sobre os elos que constituíram a história do rock ao longo do tempo. Talvez desconheçam a desbravadora guitarrista Sister Rosetta Tharpe. Ou tenham esquecido que os Rolling Stones e os Beatles começaram suas carreiras imitando o blues elétrico urbano de Muddy Waters e Howlin’ Wolf. Talvez ignorem que o jazz foi a grande fonte de inspiração para o Black Sabbath criar seu rock pesado numa cidade operária da Inglaterra dos anos 1960.

Talvez não se lembrem mais da cigania libidinosa e revolucionária de Jimi Hendrix e de como sua reinvenção da guitarra favoreceu o surgimento de um fora-de-série como Slash. Talvez não tenham tido a oportunidade de conhecer o Bad Brains, o Thin Lizzy, o Death e o Living Colour. E talvez estejam de ouvidos fechados para o TV on the Radio, assim como estão para o Black Puma. E repare que nem falei dos brasileiros, como os Inocentes, o Macaco Bong, o Black Pantera ou o espetacular afropunk do Metá Metá, comandado pela Juçara Marçal.

Mas o único a perder com todos esses esquecimentos é o próprio rock. Um gênero musical que nasceu rebelde e inquieto do blues insubmisso. Repleto de energia e disposição para assustar a caretice da família, da igreja e do governo, como uma fúria juvenil indócil contra tudo que limita o desejo. Mas que, com o tempo, foi se tornando um velho reacionário, como Elvis Presley, um republicano que criticava o pacifismo dos hippies e bradava hipocrisias sobre a guerra às drogas nos EUA. Parece que está na hora do rock reconectar-se com o melhor da sua história para voltar a falar em alto e bom som o que os tiozões racistas e conservadores não querem escutar.

Gabriel Gutierrez é jornalista, cientista político e pesquisador de música.