Ave Terrena Alves é atriz, escritora e um dos ícones da representatividade trans no mundo artístico. Em SP, sua dramaturgia leva aos palcos o intenso legado de violência da ditadura civil-militar de 1964 sobre os corpos transgêneros.

Ave Terrena Alves em Uiaras de SP City. Foto: Luciana Bati.

As ditaduras militares da segunda metade do século XX na América do Sul foram consequência de um plano de domínio e controle do continente implementado pelos Estados Unidos através da CIA que se chamou “Operação Condor”. A estratégia visou no treinamento e posterior empoderamento dos militares mais fanáticos com a ideologia conservadora de direita. A consequência disto foram regimes de terror, perseguição ideológica e política, e logo crimes de lesa humanidade.

Considera-se crime de lesa humanidade todo ato de perseguição e atentado à vida de qualquer cidadão por motivos ideológicos, religiosos, racistas e/ou de gênero e orientação sexual. Um crime de lesa humanidade não prescreve nunca, foi assim que Argentina conseguiu abrir os processos contra os militares responsáveis pelos assassinatos de políticos, intelectuais e artistas por parte da liderança militar da ditadura que assolou aquele país durante o período de entre 1976-1982.

Através dos anos e das lutas dos coletivos LGBTQI dos países implicados na Operação Condor, soubemos que o alvo desses regimes também foram essas comunidades, com especial ímpeto nas travestis. As comissões de verdade dos diferentes países revelaram que no Chile, Argentina, Paraguai, Uruguai, Bolívia e Brasil, as ditaduras perseguiram, sequestraram, torturaram, estupraram e até assassinaram travestis, dentro de um plano de “purificação” do tipo de sociedade que a sua ideologia conservadora fazia lhes crer que devia se impor nas suas nações.

Foi preciso o passo de muitos anos para que algo floresça de toda essa barbárie. A peça “As três Uiaras de SP City”, poderia se dizer, é um maravilhoso resultado dessa escuridão humana que assolou o Brasil em particular. A sua autora, Ave Terrena Alves, é também um florescer enquanto artista e enquanto ser pensante e afetivo da nossa era.

Nu Ave, peça teatral na Virada Cena Trans. Em cena com Verônica Valenttino e Malka Bijelli. Foto: Alessandra Nohvais.

Ave Terrena Alves é escritora, atriz, dramaturga, roteirista, poeta, diretora e performer, com um vasto, vasto currículo de atuação nessas áreas. Ela é a autora da peça “As três Uiaras de SP City”, montada com o grupo Laboratório de Técnica Dramática e inspirada nos relatórios da Comissão da Verdade. Uma peça transtemporal que gira em torno de Miella e Cínthia (interpretadas pelas atrizes trans Danna Lisboa e Verônica Valenttino), que moram em SP City e trabalham em salões de cabeleireiro, fazem programa e performam em boates. A dupla decide fazer um show musical e, para viabilizar a infraestrutura da apresentação, entram em contato com Valéria, que é militante feminista. No entanto, a Operação Rondão, comandada pelo delegado Rochetti, agrava a já violenta realidade das travestis, mulheres trans e prostitutas da região, com prisões e agressões.

A Mídia Ninja realizou uma entrevista com um dos maiores ícones da representatividade trans dentro do mundo da arte, e, por que não, da politica contemporânea.

Ave Terrena e a importância do teatro:

Penso que na verdade existem muitos tipos diferentes de teatro coexistindo numa mesma época, assim como existem pessoas que vão ao teatro por diferentes motivos. Tem pessoas que vão ao teatro para se entreter, para passar o tempo ou até para consumir um produto. Como diria Brecht, o teatro precisa divertir, de certa maneira, não no sentido só de dar risadas, no sentido de despertar um contato, uma relação direta como o público.

Mesmo quando o teatro trata temas pesados, de atualidade política, desde minha visão, o teatro precisa divertir, para ter assim um contato real, e não só mental, com o público. Tem pessoas que vão ao teatro para se sentirem reconhecidas, e aí que a questão da representatividade entra muito forte. E quando a gente fala principalmente das pessoas trans, tem uma busca por um lugar de auto reconhecimento que nunca antes teve. Toda a tradição artística e cultural não abarca de uma maneira aprofundada e complexa o que tem a ver com o mundo trans. Muitas vezes a forma de tratar a problemática é estereotipada e rasa.

O lugar do corpo trans no teatro

Ir ao teatro também permite uma construção de laços e relações que fortalecem e reúnem diversas trajetórias e permitem uma outra possibilidade de mundo, uma outra possibilidade de sociedade, menos desigual, menos messiânica, que dependa menos de heróis e abra a possibilidade para formas de vida em coletividade.

Esse, para mim, é o grande poder definitivo do teatro, o encontro para a construção de coletividades.

A transformação que o teatro provoca não é unívoca. Quando a gente apresenta uma peça, é a gente que também se transforma. Eu escrevi uma peça que se chama “O Corpo que o Rio Levou”, que a gente apresentou em alguns assentamentos e ocupações de lutas por moradia. E ao apresentar essa peça com os integrantes desses movimentos políticos, nós nos transformamos profundamente porque a peça teve que mudar.

Então eu destaco a importância do teatro não circular só nos espaços convencionais do centros urbanos. Ele deve se irrigar também por outros lugares, porque ai sim ele tem um potencial de construção política bem importante. Devemos estar ao mesmo tempo nos espaços convencionais e nos não convencionais. O teatro ainda é muito elitista, muito restritivo.

O teatro é um compartilhar de presenças, e num mundo cada vez mais virtual e desmaterializado, estar num lugar compartilhando presenças já é em si uma possibilidade revolucionária. Para transcender, para criar interfaces entre as linguagens digitais e as linguagens do corpo.

Hoje em dia está cada vez mais difícil fazer teatro, seguindo as articulações tradicionais de fazer teatro. E sendo que, como agentes intelectuais, estamos cada vez mais sendo desconsiderados, ainda é mais difícil. Mas a gente não deita, a gente segue em frente. Então eu acho que a potencialidade política hoje do teatro é a de valorizar a presença num mundo cada vez mais virtualizado. E a partir dessa presença, criar desdobramentos.

Happening “Segunda Queda”, no SESC Avenida Paulista. Em cena com Verônica Valenttino. Foto: Alessandra Nohvais.

A pessoa que vai no teatro e é atravessada por uma peça, ela leva essa experiência para o seu mundo próprio, espalhando essa nova sensibilidade de várias formas. E não falo só de peças que tratam de conteúdos ideológicos específicos. Estou falando de qualquer tipo de atravessamento que aconteça com uma pessoa.

A cultura tem essa capacidade de propor pautas de formas não convencional dentro da política. Hoje em dia com a crise generalizada e o avanço do autoritarismo, do racismo, da misoginia e da LGBTfobia, fica muito difícil propor pautas políticas nos espaços institucionais. As pautas que dominam o ambiente político hoje são bem empobrecidas e rasas. Então a cultura pode enriquecer os debates quando as instituições os empobrecem.

Por exemplo os slams, as peças de teatro, os saraus, exibições de filmes. Tudo isso é uma possibilidade de a gente lançar as nossas pautas. Criar um ambiente e que elas possam ser debatidas e conseguirmos aprofundar realmente nessas questões.

Sobre representatividades:

Nós travestis, pessoas trans, como um todo, estamos questionando aquilo que se chama de transfake. Como muitas vezes, a vida de uma travesti, de um homem ou mulher trans, como pessoa não binária, interessa como programação dentro do mundo do teatro. Uma peça que trate dessas questões pode despertar interesse. Mas nos temos questionado que somos sujeitas e sujeitos, e que podemos contar nossas próprias histórias pelos nossos próprios pontos de vista, com nossos corpos presentes. Com as nossas ideias sendo debatidas. Para que esses temas não sejam apresentados de forma rasa ou estereotipada, o que, no fim das contas, faz que a sociedade nos veja como pessoas sempre marginalizadas, sempre desgraçadas, sempre objetificadas sexualmente.

Quando uma pessoa trans é representada de forma estereotipada na televisão ou em qualquer linguagem artística, isso acaba sendo responsável pela transfobia e até os assassinatos dessas pessoas. Parece exagero, mas é a verdade. Enquanto não estivermos dignamente representadas, não seremos consideradas seres humanas, sempre teremos que explicar quem nós somos mesmo antes de falar da nossa afetividade.

Quando eu vejo esse teatro moderno falar das “minorias”, eu penso que de “minorias” de não têm nada. Se você pega todas as mulheres, você tem mais da metade da população. Se você pegar a população negra o número também é esse. E se você considerar a população LGBT (pensando também naqueles que não se assumem, que permanecem dentro do armário) também estaríamos falando de uma maioria.

E às vezes também temos o problema de que as curadorias que se interessam por peças que falam sobre as problemáticas das trans, querem ver uma obra higienizada, suavizadada. Acaba que as peças que passam pelas curadorias são pouco aprofundadas nas temáticas do mundo trans.

Às vezes parece que a diversidade acaba sendo mais um produto que se vende, quando na verdade a diversidade é uma realidade.

Se você olha para o Brasil, ele é um país ricamente diverso e essa diversidade não está contemplada nas produções artísticas. A cultura, a arte, elas deveriam ser um reflexo da realidade, não só um lugar para refletir sobre o mundo.

Peças Indicadas pela Ave Terrena Alves para assistirmos esse ano:

Black Brecht (coletivo Legítima Defesa)
Lalodês (capulanas)
Gota d’água preta (direção de jé Oliveira)
Perrengue da lona preta (trupe lona preta)
Buraquinhos (dramaturgia de Jhonny salaberg)
Carne (kiwi Cia de teatro)
Domínio público (com Renata Carvalho em cena)
Dezuó – breviário das águas (dramaturgia de Rudinei Borges e direção de Patrícia Gifford)

Agenda da artista:

FIT (Festival Internacional de Teatro de Rio Preto):
05 de julho às 00h no Espaço Graneleiro: performance ENVELHECER-ME TRAVA?, concebida e atuada por Aretha Sadick, música de Uma Pessoa, figurino de Maria Letícia Manauara, e direção minha. (no espaço Graneleiro)

Dia 10/07 participa às 14h no Shopping Azul – Rodoviária, da mesa “PRODUZIR ENCRUZILHADAS: Corpos da Exceção”, com Aramburo, do KiknTeaatr (da Bolívia) e Va-Bene Fiatsi (de Gana), ainda em Rio Preto pelo FIT.

Dias 11 e 12/07 será apresentada a peça Lugar da Chuva, de autoria da Ave, no SESC Rio Preto às 19h, tb pelo FIT (direção: Otávio Oscar, elenco: Wellington Dias e Raphael Brito, vídeos: Luciana Ramin, direção de arte: Daniele Desierrê).

No segundo semestre:
-Orientando o Núcleo de Texto e Cena na ELT (Escola Livre de Teatro de Santo André)
-Na pesquisa sobre a memória da ditadura civil-militar com meu grupo, o Laboratório de Técnica Dramática (LABTD), agora pra escrever e produzir “Os Barbantes Vermelho e Azul”, sobre as mulheres que entraram na clandestinidade e as pessoas trans que viveram invisíveis durante esse período
– O longa em que atuou, com direção de Eliane Caffé, Carla Caffé e Bero Amaral, que por enquanto se chama “Tlazolteótl”, vai estrear. Atuou com a Preta Ferreira, que está presa arbitrariamente por ser liderança do movimento de luta por moradia
– Proximamente vai publicar um livro de poesia, sem nome definido ainda.
Juan Manuel P. Domínguez é jornalista, escritor e cineasta baseado no Brasil.