Victor Fraga e Valnei Nunes, diretores do documentário, investigaram a longa tradição de golpes de estado no Brasil e na América-Latina, sob participação de grandes grupos de mídia

Imagem extraída da capa do documentário “A Fantástica Fábrica de Golpes”. Foto: Reprodução

Por Lenine Guevara

Há 9 anos me preocupo todos os dias com o Brasil. Nesse momento, estamos em estado matemático, contando os dias e divulgando números. Em menos de uma semana, podemos conquistar a presidência e o restabelecimento da democracia plena no país. Sem dúvida, estamos diante da eleição mais importante em um ciclo de extremo desgaste para a população, que enfrenta instabilidade social e política, fome e precariedade.

A 9 dias da eleição, o julgamento das pedaladas fiscais, que justificou o impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, foi arquivado, um dia após o documentário “A Fantástica Fábrica de Golpes” de Victor Fraga e Valnei Nunes, ser disponibilizado no YouTube, gratuitamente por 72h – período agora estendido até 2 de outubro.

Os dois jornalistas brasileiros vivem no Reino Unido e investigaram uma longa tradição de golpes de estado no Brasil e na América-Latina, sob participação de grandes grupos de mídia que foram decisivos para o impeachment de 2016, a prisão política do ex-presidente Lula, a ascensão de Bolsonaro e da extrema-direita no país.

“A Fantástica Fábrica de Golpes” faz referência explícita ao documentário inglês “Muito Além do Cidadão Kane” (1993), que denunciou o grupo Globo por sua participação no golpe e no regime militar e por eleger como inimigas, as vozes progressistas e populares da democracia brasileira. Ainda denuncia que o saldo dessa parceria foi sair do regime militar como uma gigante detentora de propriedade cruzada e de efetiva influência nos lares brasileiros, desde o jornal, à TV aberta, ao Rádio e a revista até mais recentemente à produtora de filmes, canal de streaming fechado, site e redes sociais.

No filme podemos acompanhar esse avanço do grupo Globo como detentor de todos os meios e modos de comunicação até o ano de 2019. A narrativa remonta desde 1913 com a perseguição ao samba e à participação do então Jornal “O Globo” na história da primeira música gravada no gênero musical: “Pelo Telefone”, composição de Donga gravada em 1917.

No desenvolvimento da narrativa, os jornalistas trazem um contraponto que enriquece o documentário ao tratar sobre o grupo Globo: no ponto de vista político observam a existência de um padrão conservador no jornalismo informativo, ao passo que na produção de conteúdos ficcionais e documentais para TV e filmes, um perfil mais progressista e sintonizado com a contemporaneidade.

A montagem do documentário é minuciosa, valendo-se de registros de jornais e da reprodução de fatos em animação, entrecortados por entrevistas de personalidades de notório saber e reconhecimento nacional, bem como posicionamento de esquerda.

Chamou a atenção o diálogo com personalidades que, assim como Dilma Rousseff, foram perseguidas, violentadas em seus direitos, altamente expostas e investigadas pelas grandes mídias, que bailaram ao mesmo ritmo do exército de produtores de fake news na internet. Nessa avenida, personalidades como Chico Buarque, Jean Wyllys, Márcia Tiburi e Glenn Greenwald, me convidaram a repensar momentos agudos desse processo, por marcarem representações de campos inteiros que foram atacados durante esses anos. A partir daqui, esboço os gatilhos e efeitos de elaboração, ao assistir ao documentário e escrever essa coluna de opinião.

Dilma Rousseff respondeu por sua defesa durante quase 13h no dia 29 de agosto de 2016. A sua defesa, ao contrário da sessão do impeachment, não teve cobertura da TV Globo. Foto: Gustavo Lima / Câmara dos Deputados / Divulgação

Era final de 2014 e eu passava de ônibus na rua Joana Angélica em Salvador quando avistei um telão de bar, geralmente exposto ao futebol, contendo o Jornal Nacional da rede Globo de Televisão. Preocupada com as notícias e bombardeios ligados à Petrobrás, tive a impressão de que a política havia se espetacularizado. Desde que me lembrava por gente, o Jornal Nacional tinha uma estética diferente, uma função na casa do trabalhador que, ao chegar depois das 18h, tomava um banho e ia jantar com o Bonner. A narrativa visual tinha um clima escurecido e as notícias eram dadas em tom monossilábico pelos apresentadores, para se mostrarem portadores da imparcialidade. Ou seja, era o momento de sono da sesta para milhões de brasileiros. Entre esse estado de descanso para um telão em um local de animação, me parecia que sua função havia mudado drasticamente. A nova novela brasileira se tornou a política, com peripécias infinitas e desmedido conteúdo de histórias. O cenário tornou-se mais moderno, as opiniões e posições dos apresentadores foram ficando mais marcadas.

No terreno das redes sociais, ninguém esquece um dos primeiros casos de tentativa de linchamento público que ocorreu com Chico Buarque em 2015, quando o artista foi atacado na saída de um restaurante no Rio de Janeiro, por ser petista e defender Lula. Foi um dos primeiros casos que ficaram comuns daqueles tempos pra cá, em que as milícias digitais e os conservadores passaram a disputar a cultura nas redes sociais e a estética das ruas, de maneira truculenta e odiosa, implantando em parte da população, uma raiva aos artistas e a tudo o que estava aí, representado pelo PT. Um feito que rompia uma aura comum que nos unia como brasileiros, porque, quem não respeitava Chico Buarque, até então? Nós já éramos a geração da filha na famosa canção “Jorge Maravilha”: “Você não gosta de mim, mas sua filha gosta”.

Inesquecível também a cena de Jean Wyllys dando uma cusparada na cara de Bolsonaro durante a sessão de votação do impeachment da presidenta na câmara dos deputados, em 17 de abril de 2016. O show de horror foi televisionado na íntegra, como bem marca o documentário, e pudemos assistir a sessão em que 367 parlamentares justificaram seu voto pelo impeachment em histriônica euforia, ao afirmar estarem votando “pela minha família, por Deus e pelo Brasil”. Depois daquele dia, o Show da Xuxa foi reatualizado na pior das imagens possíveis:

Um beijo pra mamãe, pro papai e especialmente para Ustra

O ponto alto e decisivo para o atrito entre os dois parlamentares foi Jair Bolsonaro dedicar seu voto ao torturador de Dilma Rousseff na ditadura militar, o coronel Brilhante Ustra. Como fica explícito no depoimento de Jean Wyllys em “A Fantástica Fábrica de Golpes”, desde sua chegada ao parlamento, Bolsonaro fez dele seu antagonista. Após a vitória da presidência em 2018, Wyllys resolveu largar o cargo de deputado federal e se exilar na França, devido às constantes ameaças de morte a si e à sua família. Operava aí a quebra de uma segunda camada de respeito que não víamos romper desde a redemocratização do Brasil: o ataque direto a parlamentares e a morte da vereadora Marielle Franco.

“Os cegos” de Desvio Coletivo, no Distrito Federal, dia 25 de agosto de 2016,
em que se iniciou o julgamento do impeachment contra Dilma Rousseff. Foto: Mídia NINJA

Alvo de ataques frequentes, a filósofa e escritora Márcia Tiburi também se exilou na França, após a eleição de 2018, em novembro daquele ano, devido à ameaça de massacre por grupos da extrema direita. Tiburi representa a linha de frente ao criticar a extrema-direita brasileira, quanto à atividade lucrativa que a cultura do ódio rendeu com a monetização nas redes sociais, a constante produção de conteúdo para as mídias, o acesso ao parlamento e ocupação de cargos públicos por grupos que estavam no centro das hostilizações a artistas, políticos, comunicadores e influenciadores, alegando “corrupção”. Esses grupos passaram também a perseguir todos os campos de estudo ligados às humanidades, à filosofia e aos direitos sociais até 2018.

Nada mais rentável do que uma revanche no país do futebol e que havia perdido de 7 a 1

Depois dessa virada eleitoral, tornou-se ainda mais séria a perseguição à educação e ao conhecimento, porque a incidência da extrema-direita, apoiada pelo presidente da república passou a ser a negação da própria ciência, como os movimentos antivacina. Parece que foi só aí que o grupo Globo resolveu parar de surfar na terceira onda antidemocrática que atacava a própria ciência e a educação.

Até ali, os párias da nação passaram das artes e cultura, aos parlamentares da esquerda, aos direitos e ciências sociais, à ciência e à própria atividade jornalística. Opa, pediu pra parar, parou!

Em 2019, o conto preferido de 5 anos de narrativa jornalística, ou seja, a criminalização do maior partido de esquerda da América-Latina, também perderia seu encanto e não se sustentaria diante da perda do protagonista da justiça e herói eleito, o então Ministro da Justiça, Sérgio Moro.

O documentário relembra um dado importante: ainda que houvesse uma relação truculenta de Bolsonaro a todo e qualquer jornalista (porque também se elegeu com a plataforma de que não era vinculado a nada que estava aí, ou seja, não tinha ligação com a Globo), a empresa recebeu do governo federal 63% a mais de verba em 2019, em comparação aos anos anteriores.

Isso quer dizer que, no primeiro semestre de 2019 as relações entre governo e o grupo iam bem politicamente. Aliás, mais que isso, parece que cumpriam à risca a ostensiva crítica de que o retorno do PT poderia ameaçar a liberdade de expressão.

A história contada e recontada era sobre um PT comunista que retornaria ao poder e usaria os veículos de comunicação para proferir suas ideologias e ainda obrigaria a passarem pronunciamentos de seus líderes. Ao fazer isso, transformariam a mídia brasileira, e por isso, o Brasil, em uma Cuba e Venezuela, onde constantemente os membros do governo tem voz marcante. Olha o tipo de lógica… repeti-la escrevendo já é constatar um factoide.

Foto promocional para venda da fantasia da ala de manifestante do impeachment de Dilma
com pato inflável pela escola Paraíso de Tuiuti, campeã de 2018, no desfile do Rio de Janeiro. Foto: Reprodução

Pois bem, diferentemente da geração que já nasceu no governo Lula e Dilma e não conhece os frutos da mudança em suas vidas, eu lembro muito bem de seus governos. Raríssimos momentos em que víamos o pronunciamento presidencial na televisão aberta era assim:

“Interrompemos a programação para o pronunciamento do presidente da república.”

Isso valia também para seus ministros, que eram entrevistados em suas atividades, mas não faziam parte do dia a dia do brasileiro. Um dos fatores que mais me desesperou no ano de 2019 foi ver basicamente todos os dias o ministro da justiça Sérgio Moro e também da economia, Paulo Guedes, sendo os protagonistas do Jornal Hoje na TV Globo. O canal passou a ser porta voz direto de uma política que ainda não havia sido aprovada e estava em fase de processamento: o pacote anti-crime e a judicialização oficial da política brasileira. Ou seja, antes mesmo de passar pelas casas legislativas, a opinião pública já era delimitada pela narrativa jornalística.

Capítulo à parte que caberia coluna específica, mas que apenas caiu, porque caiu o rei de espadas, devido ao furo jornalístico de Glenn Greenwald para o The Intercept. A “Vaza Jato” comprovou, através de horas de áudios gravados, a parcialidade do TRF4 nos julgamentos da Lava Jato e a perseguição ao ex-presidente Lula, preso político que em 2018, mesmo após 4 anos de perseguição midiática de ódio ao PT, seguia com mais intenções de voto do que Bolsonaro e os demais candidatos naquela eleição.

No entanto, mesmo diante da prova de voz nos áudios do ex-juiz Sérgio Moro e Deltan Dallagnol confirmando o conluio, foram meses de investigação e exposição da vida de Glenn Greenwald, de sua família e sexualidade e de maior interesse na proveniência dos áudios do que em seu conteúdo. O negacionismo se agudizou ainda mais entre os brasileiros que acreditaram no heroísmo de Moro.

Ouroboros, a cobra infinita, a serpente que come o próprio rabo seja, no meio do caminho tinha uma pandemia e não teve como o grupo Globo politicamente dar as costas para o público que consome seus produtos não jornalísticos para sempre.

Como no diagnóstico impecável dos jornalistas Victor Fraga e Valnei Nunes: não havia mais como insistir na estética dos grupos que batiam panela, vestidos de pato verde amarelo, quando a fome passou a pautar o lar dos brasileiros e as panelas se voltaram inevitavelmente a um governo incontrolável e explicitamente genocida.

“A Fantástica Fábrica de Golpes” toca nesses que são golpes também à cultura progressista, às artes, à ocupação política, à voz da diversidade, à mudança geracional, ao avanço dos direitos sociais e à própria democracia. A um investimento narrativo que assegurou 9 anos de preocupações em minha vida, pré, durante e pós impeachment.

Assim como as personalidades entrevistadas no documentário, fica evidente, ao se aproximar desse pleito de 2022, como a maior parte do Brasil sangrou com a guerra política, midiática, jurídica e simbólica criada desde 2013/14 e como tudo que a gente quer é não pensar todos os dias no presidente da república.

Contagem regressiva.