Foto: Jaap Buitendij / Divulgação Warner Bros

Por Bruno Tiozo*

Setenta anos antes do bebê Harry (trigêmeos Saunders) ser marcado com um raio na testa por Você-Sabe-Quem (Richard Bremmer), havia outra famosa figura maligna a ser combatida, Grindelwald (Jamie Campbell Bower e Michael Byrne), que apareceu em carne, osso e memórias, em “Relíquias da Morte Parte 1”, de 2010, e que foi brevemente citado no início de tudo, ainda em “Pedra Filosofal”, de 2001, como oponente de outrora, do todo poderoso Alvo Dumbledore (Richard Harris). Esse é o contexto de expansão da história do mundo mágico, nada gratuito, mas aprofundado em algo já existente, coerente e relevante para a trama que foi consolidada nos cinemas ao longo de uma década.

Lançado em 2016, o primeiro capítulo, “Onde Habitam”, se passa na Nova York de 1920. O título pode até ser interpretado como referência a Credence Barebone (Ezra Miller), o órfão criado como não mágico, cuja opressão sofrida para esconder seus poderes o faz desenvolver uma criatura de trevas, habitando o seu interior, um obscuro, que explode em momentos de fúria, destruindo tudo ao redor. Até então, Grindelwald (Colin Farrell e Johnny Depp) era apenas uma ameaça no ar, assim como Lord Voldemort em “Pedra Filosofal”.

Indicado a dois Oscars, a Academia reconheceu, finalmente, os méritos de uma produção dessa franquia, concedendo a ela o seu primeiro prêmio, por figurino. Mesmo elogiado pela crítica e tendo conquistado o público, nem um dos “Harry Potter” obteve o mesmo sucesso, dentre as doze vezes em que concorreu à estatueta, em seis diferentes categorias.

Assim como em “Cálice de Fogo”, de 2005, é no ótimo episódio seguinte, “Os Crimes de Grindelwald”, de 2018, que o antagonista mostra a que veio, angariar seguidores para uma reforma política de supremacia bruxa perante as demais espécies, na Paris de 1927. Infelizmente, essa proposta não foi bem digerida pela audiência, que demonstrou nas bilheterias um desempenho aquém do almejado pelos estúdios.

Num tom de conspiração política, tal qual “A Ordem da Fênix”, de 2007 e “Relíquias da Morte Parte 1”, de 2010, “Os Segredos de Dumbledore” se passa entre Berlim e Butão, por volta de 1935, onde ocorrem, respectivamente, a campanha e o processo eleitoral para o novo chefe supremo da Confederação Internacional dos Bruxos, cargo disputado pela brasileira Vicência Santos (Maria Fernanda Cândido), o chinês Liu Tao (Dave Wong) e o húngaro Gellert Grindelwald (Mads Mikkelsen). Enquanto isso, Alvo Dumbledore (Jude Law) recruta seus aliados numa missão secreta, que envolve uma criatura fantástica primordial, para tentarem impedir a vitória do extremista criminoso ao pleito.

Com o mundo assolado pela pandemia de Covid-19, a produção foi drasticamente afetada. A montagem final desse filme demonstra isso. Ora é bem trabalhada, ora parece ter sido feita às pressas. A abertura corta do céu para o interior de um ônibus, sem a típica transição de elementos que conversem entre si. Há também uma cena com Grindelwald, de rápidos cortes sequenciais em imagens similares, que não parece fazer muito sentido.

Durante a quarentena, se intensificou o julgamento moral, de parte do público, quanto a acusações de agressões físicas, contra  Johnny Depp. Por coincidência, a polêmica envolvendo o ator e Amber Heard teve um nov capítulo com julgamento realizado na semana em que estreia este filme. Pressionada e, zelando pela própria imagem, a Warner Bros acabou substituindo no papel de Grindelwald, pelo dinamarquês Mads Mikkelsen, de aptidão igualmente inquestionável e nacionalidade até mais próxima à do vilão.

Ainda que a caracterização anterior de Gellert fosse bem marcante, não há explicação na história para a significativa mudança nessa nova encarnação, o que é uma pena, pela perda da oportunidade de encaixar aí algum argumento mágico mirabolante, mas que também não interfere em nada no entendimento de quem é a nova pessoa do elenco. Aliás, já que a personagem foi interpretada por tanta gente, é curioso imaginar que mais alguém pudesse assumi-la no futuro e que houvesse um esclarecimento, regado de encantamentos, da causa disso.

Como se essa substituiçãoo bastasse, a própria criadora da série, J. K. Rowling também foi amplamente criticada nas redes ao se manifestar contra pautas da população trans, acarretando a adição de Steve Kloves como roteirista, junto a ela, para que suas ideias tivessem um direcionamento mais palatável, além de distanciar um pouco autor de obra e obra de polêmicas. Até então, Kloves havia roteirizado apenas os “Harry Potter”, à exceção do quinto. Os “Animais Fantásticos” haviam ficado a cargo exclusivo de Rowling. O próximo alvo dessa tribuna não oficial tem sido Ezra Miller, preso e solto dias antes da première do filme, por perturbação da paz em locais públicos. Mas, esse caso, ao futuro pertence.

Usando como parâmetro a linguagem dos longas anteriores, era esperado alguma espécie de flashback ilustrativo em pontos cruciais do enredo, o que, no fim, foi resolvido em simples e frustrantes monólogos, como Dumbledore se recordando do passado em meras frases soltas. O arco de Credence, que teve tanta exposição e especulação desde 2016, acabou se resolvendo de forma tímida e sem carga dramática.

Outro monólogo discutível é o ouvido no início pelo alívio cômico Jacob Kowalski (Dan Fogler), acerca de sua jornada, como se ele não estivesse ciente do que viveu até aqui. Mais a diante, ele ainda protagoniza uma cena de humor bastante desconexa com o seu entorno, diferente da hilária cena da prisão, com Teseu Scamander (Callum Turner), que dá a pitada de leveza no momento ideal, sendo importante para os fatos seguintes. Esses recursos de roteiro evidenciam escolhas problemáticas, levando a crer que, talvez, não tenha sido uma boa ideia partilhar o roteiro entre J. K. e Steve. As facilidades narrativas acrescentadas por ele acabaram sugerindo uma poda muito agressiva à mente criativa da principal responsável pela obra.

Os produtores chegaram a apelar um bocado à nostalgia, com excessivas aparições do castelo de Hogwarts, como quando Dumbledore exibe um mapa tridimensional à sua equipe, no salão principal. Uma ostentação dispensável do poder dos efeitos visuais. No entanto, deve-se considerar que a tecnologia é excelentemente empregada nos demais instantes, sempre um deleite aos olhos. Os bichos encantados são graciosos e os feitiços em batalhas estão mais interessantes do que nunca, com o uso de objetos tomando vida, de forma deslumbrante, em contraposição às luzes e fumaças de sempre. Os duelos estão ainda mais fluidos e dinâmicos, todos bem coreografados. Visualmente, tudo é magnífico, dos figurinos ao design de produção cenográfica, com destaque à equipe do brasileiro Eduardo Lima.

No entanto, a fotografia escura de George Richmond não explora essa riqueza à altura. Philippe Rousselot era mais competente nisso. Outro membro da equipe que não esteve tão criativo, foi o compositor James Newton Howard, que abusou das partituras originais de John Williams, para os filmes de 2001 a 2004, e deixou sua trilha sonora passar batida em momentos climáticos. Quatro compositores diferentes passaram por “Harry Potter”. Portanto, pode ser a hora de Howard passar a batuta a diante.

David Yates também foi o quarto profissional de sua área a adentrar o mundo mágico. Ele tem dirigido esses filmes desde “Ordem da Fênix”, de 2007. Apesar de começar a demonstrar estar no modo automático, o diretor ainda consegue extrair boas atuações dos artistas, com destaque ao protagonista Eddie Redmayne e seu comedido Newt Scamander, o pesquisador das criaturas mágicas, cujo título do livro publicado e lido por Harry, no futuro, é homônimo a essa saga: “Animais Fantásticos”. A Lally Hicks de Jessica Williams é carismática, inteligente e estilosa, ocupando melhor o espaço antes pertencente a Tina Goldstein (Katherine Waterston). Já a Vicência de Maria Fernanda Cândido tem mais peso pela atmosfera que a ronda, do que por ação prática em tela. São momentos breves, mas fortes o suficiente para o Brasil se animar ao se ver representado num blockbuster de visibilidade global.

Oliver Masucci, o Ulrich Nielsen da série Dark, entrega um interessante Vogel, cheio de nuances, tal qual o apaixonado e desiludido Alvo Dumbledore do incrível Jude Law, que abafa segredos de seu estranho irmão, Aberforth (Richard Coyle). Uma visão realista do ser humano, bem desenhada pela autora, que não define as personalidades criadas de forma maniqueísta, mas pondera que, dentro de cada um, sempre há algo tanto positivo, quanto negativo. Que ela mesma também seja melhor lida com esse cuidado, daqui um tempo.

Nota-se uma cautela para que essa nova etapa da franquia jamais ofusque a anterior, que se mantém como principal. Fantastic Beasts, no original, soaria melhor traduzida para Bestas, Monstros ou Criaturas Fantásticas, de modo a abranger os peculiares indivíduos antropomórficos. Eles traçam, de algum modo, a linha que conecta os previstos cinco episódios cinematográficos, mas logicamente nãoo o foco, visto que animações japonesas dos anos noventa esgotaram possibilidades de catalogação de seres mitológicos, além de que isso não levaria nada a lugar nenhum.

Pode-se dizer que a saga Animais Fantásticos é uma espécie de sequência indireta da franquia Harry Potter. Os dois enredos não só têm um vínculo expressivo, como o atual continua avançando na ideia de acompanhamento do desenvolvimento de magos, agora após a conclusão dos estudos em magia, já em suas atividades profissionais. Porém, já que o menino bruxo contribuiu o suficiente para o mundo, derrotando o Lorde das Trevas e não precisa ter a imagem desgastada, o passado do universo mágico é que é explorado, com novas personagens, justificando assim a prequela.

Uma jornada com outros jovens aprendizes em magia soaria repetitivo, não acrescentaria nada ao cânone e, certamente, não teria o mesmo impacto, ao competir com o que foi muito bem contado ao longo de oito filmes, de 2001 a 2011. É compreensível, então, a escolha da autora da série de se distanciar da óbvia revisitação dos mesmos ambientes, e partir do recorte temporal da ascensão e queda de um grande vilão para o momento histórico de outro. Fazendo alusão à popularização do fascismo durante a segunda guerra mundial, essa metáfora entretém e cumpre um importante papel didático num período em que o mundo é ameaçado pela volta das trevas do passado.

Bruno Tiozo é designer de Interiores, publicitário e crítico de cinema.