Foto: Mídia NINJA


Por Mayara Alves

A sociedade em que vivemos é heteronormativa, supõem que todo integrante é heterossexual, essa é a sexualidade mais correta e de mais valor perante os olhos da maioria. Dessa forma, a normatividade também é ser branco e cisgênero (se identificar como sexo designado ao nascer).

Com essa percepção da sociedade, ultimamente vem se falando da Teoria do Estresse de Minoria, que derivou da Teoria Geral do Estresse e tem como objetivo explicar os efeitos do estresse social para a saúde mental de minorias sexuais (Ramos, Mozer de Miranda; 2023). Ou seja, um homem branco cisgênero heterossexual vai ser atravessado pelos estresses gerais da sociedade, como capitalismo, sexismo, pressões sociais etc. Porém uma mulher preta lésbica cisgênero, além de ser atravessada pelos estresses gerais, será atravessada pelo machismo, racismo e preconceito contra diversidade sexual, e esses marcadores lhe trarão outros impactos.

Esses conceitos iniciais são importantes para que o Setembro Amarelo (mês destinado à prevenção do suicídio no Brasil) seja visto de outra forma, não somente como o mês em que nos preocupamos em compartilhar coisas sobre “amor à vida” nas redes sociais, mas o mês em que repensamos nossos atos enquanto agentes da sociedade. Claro, não tem como saber qual é o gatilho da pessoa que vai cruzar seu caminho, mas é possível conhecer melhor o mundo em que vivemos e repensar se estamos contribuindo com o bem ou mal-estar social.

É muito difícil encontrar estatísticas sobre mulheres lésbicas (mais ainda sobre lésbicas pretas), por conta de nossa existência ser algo ainda desvalorizado, já que colocar o “L” no início na sigla, ao contrário da ideia, não sanou a invisibilidade. Há alguns anos um grupo de pesquisa carioca escreveu o “Dossiê sobre Lesbocídio no Brasil” (de 2014 a 2017), de onde retiro alguns números sobre suicídio de mulheres lésbicas.

● Elas têm majoritariamente entre 20 e 24 anos, em 38% dos casos;
● 73% das vítimas eram lésbicas feminilizadas (que expressam feminilidade padrão), contra 27% lésbicas desfem (que não expressam feminilidade padrão);
● Lésbicas brancas acumulam 67% dos casos, contra 33% das pretas;
● Brancas feminilizadas são 49% dos casos, seguidas de 24% pretas feminilizadas, 18% brancas desfem, 9% pretas desfem.

Por mais que as pesquisadoras tenham conseguido dados interessantes, preciso ressaltar as palavras delas em relação à ausência de informação: “se a notícia não existe e se os dados não existem, não há provas […]”. Ou seja, como podemos tomar as providências cabíveis se o problema não é conhecido?

Mesmo não tendo acesso a muitos dados sobre o assunto, conhecemos causas de adoecimento mental que podem levar uma pessoa a perder o interesse pela vida. Normalmente, essas causas se resumem a depressão e/ou ansiedade, como se a vítima de repente fosse pega por uma onda de tristeza incorrigível. Sim, tristeza profunda é um dos sintomas da depressão, porém pouco se fala sobre as vivências que podem trazer esse sentimento: os chamados gatilhos.

Dessa forma, unindo as estatísticas com a Teoria de Estresse de Minoria, amplio a análise elaborada no dossiê, que traz a hipótese de que as lésbicas feminilizadas são maiores vítimas porque ao contrário de lésbicas desfem, elas não sofreram por desviarem da norma até terem que assumir sua sexualidade, e é nesse momento que entram em contato com a sociedade opressora que até então não conheciam. Nessa mesma perspectiva, trago o contexto de raça, um traço que, ao contrário da sexualidade, não conseguimos esconder, portanto desde que nascemos temos que lidar com o fato de não fazer parte do padrão.

Como psicóloga preta, uma das perguntas que faço a clientes pretas é: “quando você percebeu que era preta?”. Pode parecer uma pergunta boba, mas é nesse momento que se resgata o primeiro contato com o racismo. O preconceito é tão sutil e velado que normalmente faz com que só tenhamos noção da diferença étnica na vida adulta, mesmo passando uma infância inteira ouvindo que temos uma “beleza exótica”. Infelizmente, é nessa infância inocente que começa a se criar uma couraça, uma casca que inconscientemente aparece como proteção e faz com que se naturalize a dor das situações de racismo. Já dizia Whitney Houston: “mulheres pretas vivem cansadas”. E como não estariam? Já que elas têm que segurar o peso de esconder até de si mesmas seu sofrimento.

A naturalização de injúrias raciais e preconceitos contra diversidade sexual (LGBTfobia) é extremamente comum, e é o que pode colocar mulheres pretas e desfem no fim das escalas estatísticas. No contexto racial, quase nunca de forma consciente, escondem o sofrimento e como mulheres desfem são associadas ao masculino, que supostamente é o sexo forte, ironizando “lésbicas pretas desfem são fortes e lidam melhor com as adversidades”.

Uma vez ouvi que “as pessoas não querem não ser preconceituosas, elas só não querem parecer que são”. O que quero dizer trazendo essa frase é que as pessoas não estão preocupadas em não contribuir para os estigmas que fortalecem o adoecimento mental de uma lésbica preta, só não querem parecer perante a sociedade que são preconceituosas.

Por fim, o art. 122 do Código Penal diz que “induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça” se caracteriza crime (de 2 a 6 anos de reclusão). Assim, junto às reflexões expostas neste texto, espero ter conseguido te fazer pensar nas ações criminosas da nossa sociedade e que, ao tapar os olhos, somos coniventes.