Por Alexandre Cunha

Até que ponto um trauma pode moldar e mudar nossas vidas? Com uma delicadeza ímpar, o documentário “A Neve Entre Nós” é uma bela observação do comportamento humano diante das adversidades. O filme – integrante da grade do festival É Tudo Verdade 2024 – acompanha o exílio da família de Inés Noueched à Suécia, em 1974, devido à ditadura militar que assolou o Uruguai durante mais de uma década. 

À época, com 11 anos, Inés era a mais velha das três filhas do casal María Dolores Escande e Juan José Noueched; ambos pertenciam ao Movimento de Liberação Nacional – Tupamaros (MLN-T), grupo guerrilheiro de resistência às forças ditatoriais. Juan José foi preso e ficou no país sul-americano; as filhas se refugiaram em Kiruna, no Norte da Suécia, para logo se estabelecerem, de fato, na capital Estocolmo. Através das cartas trocadas entre o pai e – principalmente – Inés, o documentário dirigido por Pablo Martínez Pessi cria uma epopeia sentimental sobre os 14 anos de ausência e distância entre a família. 

Sem pressa, o filme vai costurando a história com a lentidão certa; é como se estivéssemos na pele daqueles personagens, cujos dias parecem se alongar – principalmente para o pai, Juan José Noueched, que escreve as cartas da prisão e para quem essas mensagens são um alento para os dias em cárcere. Compondo cada plano cuidadosamente, Pessi utiliza a neve como um interessante elemento narrativo: há cenas nas quais a brancura do ambiente ofusca, borra as imagens, dando uma sensação de anuviamento, esquecimento, enquanto Inés fala de sua luta para não deixar escapar a memória do rosto do pai. 

A fotografia extremamente branca da primeira metade do filme muda de tom em determinado momento: há o verde de uma grama, um céu azul, o mar calmo que quebra na praia. Essa mudança narrativa é muito acertada, porque a partir daí nós, espectadores, começamos a ter uma resposta mais robusta sobre o paradeiro desse pai. Com depoimentos fortíssimos, A Neve Entre Nós emociona na medida certa, sem apelar para um “melodrama da vida real”; às vezes os olhares, os sorrisos, a simples presença física dos personagens já bastam para entendermos o valor daqueles encontros. 

Em consonância a outros filmes presentes na edição deste ano do É Tudo Verdade (como Mixtape La Pampa e Nurith Aviv – Mulher Com Uma Câmera), A Neve Entre Nós é sensível ao nos mostrar como nossa ideia de pertencimento e identidade é absolutamente atravessada a partir do momento que precisamos – por diferentes motivos – cortar raízes e semear uma nova vida em outra cidade, outro país. Um lindo filme. 

Texto produzido em cobertura colaborativa da Cine NINJA – Festival É Tudo Verdade 2024