Foto: Divulgação/Geração Editorial

por Marília Fernanda de Oliveira

Um depósito humano esquecido, degradante, fétido, sem materiais, sem leitos, sem alimentos. Um lugar em que aplicações de eletrochoque eram realizadas em pacientes que apresentavam “falta de disciplina”. O hospital psiquiátrico Colônia de Barbacena-MG foi descrito dessa forma por ex-funcionários (Holocausto Brasileiro). O número de assassinatos documentados gira em torno de 60 mil pacientes, e há registros de que os órgãos dos corpos foram vendidos para faculdades de medicina.

Esse é um pequeno recorte do retrato que temos das internações psiquiátricas no Brasil. O arcaico sistema manicomial entrou em desuso progressivamente graças às lutas da reforma psiquiátrica. Para que fosse possível tal extinção, a RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) entrou em vigor com diversos novos aparelhos e dispositivos.

No último dia 04/02/2019 tornou-se pública a Nota Técnica nº 11/2019 publicada pela Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, do Ministério da Saúde. A Nota destaca que “a RAPS foi ampliada, com a inclusão de novos pontos de atenção, com o objetivo de ser mais estruturada e equilibrada na oferta de tratamento e cuidado aos pacientes e seus familiares”. A princípio a proposta poderia soar bem intencionada, mas dando prosseguimento à leitura verificamos graves ataques à luta antimanicomial, além de uma série de insuficiências na Nota.

Uma das justificativas que a Nota apresenta para o “aprimoramento” da RAPS é afirmar que devido à falta de hospitais psiquiátricos “houve migração considerável de doentes mentais graves para a população prisional, sendo as cadeias o maior manicômio do Brasil na atualidade”, o que evidência uma calamidade nas políticas prisionais, mas não só isso: denuncia que, ao falarmos de hospitais psiquiátricos e de sistema prisional, estamos falando da mesma coisa.

Assim como o sistema prisional, os hospitais psiquiátricos propõem um encarceramento em massa daqueles que a sociedade quer negar. Por esse motivo, os manicômios estiveram lotados de pessoas que não necessitavam de tratamento psiquiátrico, mas que estavam lá apenas por serem quem eram: usuários de drogas, pessoas com deficiências, negros, gays, lésbicas, grávidas solteiras, além de outros grupos.

A proposta, apesar de pretender, não apresenta novidade alguma, já que é mais uma proposta de cunho higienista tal qual objetiva o silenciamento de grupos.

A Nota insiste que o objetivo da mudança é para o “bem” e para o “melhor” do paciente, além de apelar para o “bom senso” como justificativa às colocações que clamam por explicações extremamente superiores. Exemplo: “há que se buscar oferecer no SUS a disponibilização do melhor aparato terapêutico para a população. Como exemplo, há a Eletroconvulsoterapia (ECT)”, “não há restrições absolutas para o atendimento de pacientes menores de idade nos Serviços da RAPS, sendo aplicável o bom senso” ou quando afirmam que crianças e adolescentes inicialmente não serão internados com adultos em um manicômio, mas “no entanto, exceções à regra podem ocorrer, sempre em benefício dos pacientes”.

Quero destacar como se torna fácil propor uma série de atrocidades desumanas se apropriando dos vagos conceitos de “bem”, “melhor” e “bom”. Lembro que um dos jargões que elegeram o atual presidente da república de extrema-direita se apropriava da mesma lógica: “um candidato de bem que governará para cidadãos de bem”. Não surpreende que uma Nota do Ministério da Saúde espantosa como essa venha à tona justamente no momento em que o Brasil é comandado por um governo que prega conservadorismo, autoritarismo, retrocessos e intolerâncias em nome do “bem”.

Ora, se o Brasil está preocupado com melhorias na saúde mental, poderia começar revolucionando, por exemplo, as políticas trabalhistas que tanto fazem sofrer.

Está claro que o mercado de trabalho atual se aproveita escancaradamente do sofrimento diário de seus funcionários por entendê-los como força produtiva. Não apenas se aproveita como contribui ativamente para a criação desse sofrimento, exigindo cumprimento de metas, acirrando competitividades, aterrorizando os empregados com ameaças de desemprego, oferecendo como solução ao desemprego a precarização dos direitos do trabalhador, terceirizando… Ou seja, os moldes de trabalho atuais também oferecem um sufocamento e apagamento dos trabalhadores enquanto sujeitos subjetivos. O cenário trabalhista que encontramos hoje é justamente um dos grandes contribuintes para a saturação da saúde mental dos brasileiros e para ascensão de tantos casos de depressão, surtos, ideações suicidas e suicídios que infelizmente vêm permeando a clínica com frequência.

Obviamente que toda essa manobra neoliberal nas instituições trabalhistas gira em torno da lógica de lucro de capital para os mais ricos do Brasil – às custas da exploração e exclusão completa do que há de subjetivo nos indivíduos. Faria sentido pensarmos que, além de redimensionar a complexidade do sujeito a nada, outro objetivo da volta dos hospitais psiquiátricos também seria lucrar financeiramente?

Por fim, convoco todas e todos que se sensibilizam com a luta antimanicomial a tomarem seus lugares em mais uma batalha. Daremos prosseguimento aos debates e construções de práticas de saúde mental nas quais acreditamos, por uma sociedade que ofereça um olhar verdadeiramente singular e digno para todos.

*Marília Fernanda de Oliveira é psicanalista CRP: 06/135617