(Bruno Kelly / Amazônia Real)

 

O relatório Conflitos no Campo Brasil 2021, idealizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), revela um triste cenário marcado pelo aumento do número de mortes em consequência de conflitos no campo: foram registradas 109 no ano passado, enquanto que em 2020, foram nove registros. Ou seja, houve um salto de 1.100%.

Os constantes alertas dos povos indígenas sobre um projeto de extermínio em curso se confirmam com o número de mortes causadas pelo avanço do garimpo. De acordo com os dados levantados pelo Centro de Documentação da CPT – Dom Tomás Balduino (Cedoc-CPT), das 109 mortes registradas no ano passado, 101 ocorreram no território Yanomami, em Roraima. Todas de indígenas Yanomami.

Segundo os dados do CPT, os assassinatos também estão concentrados de forma gritante na Amazônia Legal, como aponta o documento do CPT: 80% de assassinatos por conflito no campo ocorreram na Amazônia. Dos 35 assassinatos, 28 ocorreram na região. Dessa forma, houve um aumento de 75% em relação a 2020, quando foram registrados 20 assassinatos no Brasil, causados por conflitos no campo.

Desse total, 11 assassinatos, praticamente um terço, foram no estado de Rondônia, onde ocorreu, também, um massacre no mês de agosto, com três vítimas. Outro massacre foi registrado na região alta do rio Apiauí, em Mucajaí, sul de Roraima, com a morte de três indígenas Moxihatëtëa, que pertencem a um subgrupo Yanomami de denominação Yawaripë.

Terra devastada pelo garimpo

A Terra Indígena Yanomami (TIY) é um dos territórios mais duramente afetados pelo garimpo ilegal. Demarcada em 1992, a TIY é a maior do Brasil em termos de área, com 9,6 milhões de hectares, e nela vivem os povos Yanomami e Ye’kwana. Há, ainda, oito registros de grupos indígenas em isolamento, dos quais um já foi confirmado – sendo conhecido como os Moxihatëtëa. A atividade garimpeira vem se expandindo aceleradamente no país desde pelo menos 2012, com impacto significativo sobre a Amazônia.

De acordo com análise apresentada por membros do Instituto SocioAmbiental (ISA), em texto publicado no Conflitos no Campo Brasil 2021, dados da plataforma MapBiomas lançados em 2021 mediram a área ocupada pelo garimpo no Brasil entre 1985 e 2020, indicando que a exploração garimpeira cresceu mais de seis vezes no período: de 31 mil hectares em 1985 para um total de 206 mil hectares. Os dados da plataforma também demonstraram uma tendência de aceleração desde a década de 2010.

O garimpo ocorre atualmente quase que exclusivamente na região amazônica (cerca de 90% da área identificada), sendo que metade das áreas de exploração foram detectadas em Unidades de Conservação ou Terras Indígenas, onde tal ação é ilegal. Nestas, a atividade teve um aumento de 495% de 2010 a 2020. Somente entre 2019 e 2021, o Sistema de Monitoramento do Garimpo Ilegal (SMGI), promovido pela Hutukara Associação Yanomami (HAY), identificou um aumento da exploração em mais de 2.000 hectares. Em setembro de 2021, já se apresentava um novo recorde de 3.224 hectares, um aumento de 44% em relação a dezembro de 2020.

De acordo com o texto do ISA, “a atividade garimpeira em Terras Indígenas é terminantemente proibida pelo estatuto constitucional do país. Se o Artigo 174, §3º e 4º, da Constituição Federal prevê que a atividade poderá ocorrer em forma de cooperativas, observados os estandartes de proteção ao meio ambiente, por sua vez o artigo 231, §7º, exclui a possibilidade da extração de minérios na modalidade garimpo nas Terras Indígenas do país. Desse modo, o garimpo não está sujeito à regulamentação prevista no artigo 231, § 3º, da Constituição”.

Os indígenas Yanomami e Ye’Kwana denunciam que a presença da atividade garimpeira próxima às suas comunidades vem revelando prejuízos diretos à saúde, ao sistema produtivo, à segurança pessoal, e à integridade física das comunidades indígenas do entorno.

Desde 2020, a Associação Hutukara alerta as autoridades dos riscos da escalada de violência nas regiões da TIY onde o garimpo vem avançando. Segundo dados obtidos pelo Sistema de Monitoramento do Garimpo Ilegal na TIY, a calha do rio Uraricoera é a região mais afetada pela atividade, concentrando 45% da área degradada pelo garimpo ilegal no território.

Entre os meses de abril e maio de 2021, o território Yanomami foi ameaçado intensamente pela presença de núcleos garimpeiros que cercam a comunidade. As lideranças locais solicitaram apoio das autoridades competentes, e não tiveram resposta. Passaram, assim, a vivenciar ataques armados em série.

Em 10 de maio, a comunidade do Palimiú sofreu um primeiro ataque quando garimpeiros armados dispararam tiros contra a aldeia. Um vídeo registrado durante a ação mostra mulheres e crianças correndo em desespero ao som dos tiros disparados de embarcações garimpeiras passando pelo rio.

Poucos dias depois, membros da comunidade informaram que duas crianças haviam desaparecido durante a fuga, e foram posteriormente encontradas afogadas, sem vida. Dois dias após o primeiro ataque, eclode um confronto armado entre garimpeiros, indígenas e agentes da Polícia Federal na região.

Passados outros dois dias, lideranças informam a presença de dezenas de barcos de garimpeiros no Palimiú alertando que estariam se organizando para iniciar novos ataques. Em 17 de maio, informaram que 15 barcos de garimpeiros se aproximaram da comunidade num novo ataque. Em 14 de junho, três barcos de garimpeiros iniciam novo tiroteio contra a comunidade de Palimiú, forçando os Yanomami a se esconderem na floresta. Três dias depois, um grupo de garimpeiros encapuzados dispara tiros contra as casas da comunidade de Korekorema, obrigando mais uma vez os indígenas a se esconderem na mata.

Em 08 de julho outra embarcação de garimpeiros disparou quatro tiros contra mulheres que procuravam um parente desaparecido no rio próximo à Korekorema e, na madrugada do dia 13 de julho, a comunidade Palimiú foi novamente atacada por dois barcos de garimpeiros, que dispararam 10 tiros contra os indígenas.

Situações de ameaça e violência também foram identificadas em outras regiões da TIY impactadas pelo garimpo. Em 30 de julho, um indígena Yanomami foi atropelado por um avião de garimpeiros em Homoxi. A pista de pouso comunitária fora ocupada pelos garimpeiros e é intensamente utilizada para abastecer os garimpos na região.

O massacre

Apiaú é outra região que vem sofrendo ameaças em razão da presença do garimpo ilegal. Em novembro de 2021, uma comitiva de lideranças informou à Hutukara sobre a deterioração das condições de vida comunitária na aldeia Serrinha, com a disseminação de álcool e drogas trazidas por garimpeiros que usam a comunidade como dormitório.

Na mesma ocasião, as lideranças informaram sobre o assassinato de três indígenas do grupo em isolamento Moxihatëtëa por volta de agosto de 2021. Um indígena que teria testemunhado o ocorrido descreveu que o massacre foi motivado pela investida dos isolados contra o garimpo “Faixa Preta”, localizado a poucos quilômetros de seu acampamento. Uma flecha utilizada pelos Moxihatëtëa no conflito foi recuperada pelo indígena, e apresentada ao Ministério Público Federal para cobrar investigações sobre as mortes e ações para maior proteção ao grupo em isolamento.

Além disso, em outubro, duas crianças que brincavam na comunidade de Macuxi Yano morreram por afogamento após terem sido derrubadas e afundadas pela correnteza gerada por uma draga garimpeira, que operava a poucos metros da comunidade. O sumiço das crianças foi testemunhado por seus familiares, sem que pudessem fazer nada para salvá-las. Todos esses casos chegaram ao conhecimento por meio de denúncias e relatos trazidos pelas lideranças das respectivas regiões da TIY. Eles atestam o aumento da situação violência e ameaça que as comunidades indígenas sentem na mesma medida em que o garimpo se expande e intensifica.

(Com CPT)