Publicado originalmente em A Plateia

Hoje, 8 de maio, completam 61 dias de impunidade sobre o caso da menina, menor de idade, que foi estuprada por um colega de Universidade. Os movimentos feministas cobram uma resposta do judiciário em relação ao caso.

Na manhã dessa terça-feira, 8, representantes da Marcha Mundial das Mulheres, do Instituto de Mulheres de Santana, do Coletivo de Mulheres Livra Elas (da Unipampa), além do apoio do 23º Núcleo do CPERS estiveram na Praça General Osório, em Santana do Livramento, distribuindo panfletos abordando o tema: “Como não reproduzir a cultura do estupro?”.

“Uma cultura que reproduz ideias degradantes sobre as mulheres e sobre a sexualidade feminina e que ensina aos homens que a masculinidade está estritamente ligada à violência só poderia receber uma alcunha: cultura do estupro”, um dos dizeres dos panfletos.

Segundo Flávia Retamar, da Marcha Mundial das Mulheres, o objetivo da ação é chamar atenção sobre o caso. “Nós queremos chamar o conjunto da sociedade para pautar esse debate, para construirmos coletivamente ações que possam transformar e mudar essa realidade. Que a gente possa construir formas de combate à violência sexista de combate a essa cultura do estupro que é tão naturalizada e que a gente precisa mudar. Só vai mudar se toda sociedade pautar junto conosco e combater toda essa forma que a gente tem vivido principalmente na nossa cidade. A nossa região é muito machista, então a gente precisa mudar isso”, destaca.

Relembre o caso:

No último 11 de abril, a Polícia Civil de Santana do Livramento confirmou que está investigando uma denúncia de estupro a uma jovem universitária de apenas 17 anos. Ela seria estudante da UERGS e o fato teria acontecido na segunda semana de aula. A jovem teria sido aprovada no vestibular e iniciava as aulas na instituição. Segundo estudantes, o suposto crime teria acontecido durante uma festa e fora das dependências da Universidade.

A denúncia foi levada para a Delegacia de Polícia e imediatamente foram iniciadas as investigações. Segundo a Delegada de Polícia responsável pelo caso, Giovana Muller, não houve “abafamento da situação”, mas sim o sigilo necessário às investigações. O caso já está adiantado e segundo ela foi bastante grave. “Ainda restam algumas definições para o caso, mas acreditamos que em breve tenhamos a conclusão”.

A jovem deixou a universidade, segundo apurado pela reportagem. Em contato com a Direção da Universidade em Livramento, uma manifestação formal ainda será divulgada sobre o caso. Sobre o tema, a Delegada informou que a UERGS colaborou com o que foi preciso para o caso e fez um último alerta: “A sociedade precisa discutir a ‘cultura do estupro’. Este é um fato grave e exige atenção da comunidade”. Nas redes sociais vários internautas declararam apoio a jovem em mensagens e postagens. O movimento de Marcha Mundial das Mulheres também emitiu uma Nota de Repúdio sobre o caso e anseiam justiça para o caso.

Um manifesto pela vida

Cultura do estupro: a violência naturalizada

Existe algo muito intrigante quando falamos de estupro. Com a mudança da tipificação do crime,, podemos garantir que cem por cento das mulheres já sofreram violência sexual. Assim diz a lei em seu art. 213: “ Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinos”. Sim, absolutamente todas as mulheres que você conhece e as que não conhece já foram constrangidas e/ou ameaçadas, ou foram assediadas no transporte público, ou tiveram dificuldades em se livrar daquele cara chato que não soube lidar com um não. Se você duvida, pense na sua história de vida, se for uma mulher. Se for homem, pergunte às mulheres próximas de você. Talvez tenha uma do seu lado; questione quantas vezes ela já passou por isso. Sim, dizer que todas já sofreram, afirmar algo sobre uma totalidade parece exagerado. Eu gostaria muito de estar errada. Mas não importa o tipo físico, a faixa etária, a localização geográfica.

O intrigante é que, se tal afirmação está correta, o dado não bate com o número de homens que cometem assédio e/ou estupro. Todas as mulheres que eu conheço, e eu conheço muitas, além de ser uma delas, têm uma história para contar. Mas nenhum dos homens que conheci ao longo dos meus trinta e sete anos admitiram ter cometido qualquer um desses atos. Chego a cogitar que eles surgem do nada e se desintegram logo após ter cometido a violência. Tenho certeza que os leitores desse texto também jamais cometeram qualquer ato que tenha constrangido uma mulher. Entretanto, alguém cometeu. Quem foi?

Temos um imaginário de que o estuprador é um “doente”, um ser que habita lugares sombrios e que há formas de evitá-los: cuidar a roupa que usamos, as ruas que andamos, as casas onde entramos. Mas a realidade é que a cada 11 minutos (Fonte IPEA) ocorre um estupro no Brasil. A maioria dos crimes é cometido por familiares ou pessoas próximas. Não é o monstro no armário. É o pai, é o amigo da família, é aquele vizinho, é o colega da faculdade, é o namorado. A proximidade com o estuprador auxilia na subnotificação dos casos e na variação dos dados, que informam que podem haver meio milhão de estupros a cada ano só no Brasil.

Isso nos leva a afirmar que vivemos uma cultura do estupro. Ou seja, é algo naturalizado na cultura. Está nas letras das músicas, e não estamos falando somente de funk. Está nas piadas. Está na ideia de que se a mulher bebeu, se usou determinada roupa, se frequentou determinado lugar, é ela e não o estuprador o responsável pelo crime. Quando falamos em cultura do estupro, estamos afirmando que as propagandas, as novelas, a mídia em geral naturaliza a violência contra a mulher. Estamos afirmando que o corpo das mulheres é violado toda vez que é tratado como mercadoria. Estamos afirmando que isso é algo tão natural nessa sociedade que nem os estupradores se veem como tal.

Não é a apenas uma passada de mão, não é apenas um “elogio” sobre partes do corpo feminino. É estupro, e precisamos aceitar que esses homens não estão somente nas ruas escuras e desconhecidas. Que não apenas a forma mais brutal, aquela onde há penetração e violência extrema é estupro. Precisamos aceitar que esses homens estão em nossas casas, nos bancos das universidades, naquela festa onde havia apenas amigos. E nunca, nunca a culpa é da vítima. Aceitemos isso, rebatamos essa cultura. Cuidemos umas das outras. Que os homens que estão lendo esse texto possam estar atentos para também auxiliar uma amiga ou familiar que possa estar em perigo.

Se liberdade é não ter medo, como afirmou Nina Simone, todas as mulheres são prisioneiras. A liberdade precisa chegar.

*Vanessa Gil é Socióloga, doutoranda em Educação pela Unisinos e militante da Marcha Mundial das Mulheres. E-mail: [email protected]