Uma imensa mobilização que começou com apenas 50 pessoas no Parque do Ibirapuera tomando bombas e borrachada da PM.

Marcha da Maconha 2014 – São Paulo. Foto: Mídia NINJA

A Marcha da Maconha São Paulo completa 10 anos nesse sábado, 26, representando a maior marcha pela regulamentação da maconha do país. Estima-se que mais de 100 mil pessoas tomem as ruas. Essa imensa mobilização, no entanto, começou com apenas 50 pessoas no Parque do Ibirapuera, tomando bombas de borracha e cassetetes no lombo.

Essa história, que ainda há de ter muitos capítulos, antes de conseguir finalmente o seu objetivo, tem sido criada nas bases, de forma autônoma, conversando principalmente com quem mais é vítima da criminalização: os pobres, as mulheres e os negros.

 

Organizadora da Marcha da Maconha, integrante do bloco feminista da marcha e militante do Coletivo DAR, Gabriela Moncau viu e viveu essa história. Ela conversou com a Mídia NINJA. Confira abaixo:

NINJA: A Marcha da Maconha de São Paulo completa 10 anos em 2018. Nesse período, a pequena manifestação tornou-se uma das maiores mobilizações nacionais, desafiando a proibição das drogas, atraindo cada vez mais pessoas e se consolidando como um movimento social autônomo. Qual é o impacto disso na sociedade e nas políticas públicas?

O próprio crescimento da Marcha da Maconha SP, enquanto uma manifestação que toma as ruas para reivindicar o fim da guerra às drogas, é um reflexo do crescimento também do seu impacto no debate público e na sociedade.

A Marcha da Maconha no Brasil se organiza em rede e de forma autônoma. Não temos direção, comando central, estatuto, nada do tipo. Cada marcha em cada lugar se organiza de acordo com a sua realidade e suas demandas.

Em São Paulo, acho fundamental destacar, a gente se posiciona pelo fim da guerra contra as drogas. Claro que centramos nosso debate na questão da maconha – como já diz o nome e o maconhaço que é a marcha atualmente – mas lutamos pelo fim da guerra.

Entendemos que apenas a legalização da maconha não da conta de resolver uma série de opressões feitas pelo Estado em nome do combate às drogas: o encarceramento em massa, o genocídio, a militarização, a ingerência estatal sobre a decisão das pessoas sobre o que fazer com seu próprio corpo, etc.

Desde 2012 a Marcha em São Paulo também se organiza em blocos, como uma forma de dar conta de uma série de temas que são transversais à questão das drogas. Existe o bloco feminista, o bloco medicinal, o bloco religioso, o bloco psicodélico, o bloco anticapitalista, ano passado tivemos o bloco pela liberdade do Rafael Braga, só para citar alguns.

Tem muitos temas que debatemos e acho que, apesar da imprensa estar ultimamente num movimento de tentar nos invisibilizar (a Folha de S. Paulo se referiu à Marcha do ano passado que reuniu 100 mil pessoas como “Grupo de pessoas faz caminhada pelo centro de SP para pedir a legalização”), temos tido grande impacto na sociedade. Prova disso é o aumento do número de pessoas na Marcha da Maconha – cada vez mais periféricas.

Um dos pontos altos da Marcha da Maconha SP nesse ano de 2018, com o lema “10 anos queimando tudo”, é a quantidade e a consolidação de marchas regionais periféricas que estão acontecendo durante o mês de maio: zona leste (Itaquera e São Mateus), zona sudoeste, zona norte, zona sul (Grajaú), Santo André e Francisco Morato.

No que diz respeito às políticas públicas, existe uma enorme discrepância entre o avanço do debate público a respeito da legalização da maconha (infelizmente ainda não das outras drogas) e o que defendem os governantes.

Repressão, endurecimento de penas, construção de mais presídios, enfim, o que se defende hegemonicamente no âmbito das políticas estatais é mais guerra. Quando muito, há políticos que dizem que o “problema das drogas” não é só uma questão de polícia e defendem internações compulsórias e Comunidades Terapêuticas.

Gabriela Moncau, durante a Marcha da Maconha 2018 em São Paulo, auxiliando no cuidado e segurança dos participantes. Foto: Mídia NINJA

Em São Paulo, a Marcha da Maconha, como fruto dos aprendizados dessa caminhada de 10 anos, não tem como foco lobby ou convencimento de determinado político ou jurista para chegar às mudanças legislativas.

Temos como caminho a mudança de mentalidade, tentamos convencer as pessoas de que nós, enquanto sociedade, precisamos pensar em outras formas de lidar com as drogas: formas pautadas na redução de danos, na dignidade, no cuidado, no respeito às escolhas das pessoas. A mudança que acreditamos vem de baixo, não de cima. Nesse sentido, acho que ao longo desses 10 anos estamos avançando.

NINJA: O encarceramento teve um enorme crescimento nesse período. A população carcerária triplicou, tendo o tráfico como um dos principais crimes, 26% entre homens e 62% entre mulheres. O que justificou esse aumento, como os governos atuaram para lidar como ele e como as mobilizações e os movimento sociais reagem a esse cenário?

Estamos comemorando nossos 10 anos de Marcha da Maconha SP, uma década na qual estamos crescendo nas ruas e também no convencimento social de que essa guerra tem que acabar. Mas ao mesmo tempo acho que o próprio crescimento da indignação com essa proibição mostra que a gente não está ganhando essa guerra.

Já passamos por períodos de ridicularização, de repressão, de criminalização e estamos comemorando o fato de termos resistido e continuado crescendo. Estamos em festa pelos nossos 10 anos mas estamos também em luto e em luta, porque a guerra às drogas continua e só tem aumentado o número de pessoas mortas e encarceradas por conta dessa guerra.

De fato nesses últimos 10 anos o encarceramento brasileiro só cresceu. A última mudança na Lei de Drogas (Lei 11.343) foi em 2006 e tem papel imenso nesse cenário. Foi determinado que o uso de substâncias ilícitas não é penalizado com privação de liberdade mas continua sendo crime. Que o tráfico de drogas é crime hediondo, com pena de prisão de 5 a 15 anos. Num país racista em que quem determina quem é usuário ou traficante é o policial, o delegado e o juiz, com base em critérios que na prática consideram usuário quem é branco e rico e traficante quem é preto e pobre.

Marcha da Maconha em 2012 descendo a Rua Augusta. Foto: Mídia NINJA

Em 2006, quando a Lei 11.343 começou a valer, eram 31.520 presos por tráfico nos presídios brasileiros. Em junho de 2013, esse número passou para 138.366, aumentando 339%. Em fevereiro de 2017, os presos por tráfico chegam a 182.799. De 2006 para cá, portanto, o aumento chega a 480%. Um em cada três presos no país responde hoje por tráfico de drogas (32,6%). No caso das mulheres presas, 68% delas responde por tráfico. A Lei de Drogas de 2006 determinou também que as pessoas acusadas por tráfico não podem aguardar julgamento em liberdade. Não à toa, 40% das pessoas presas hoje são presos provisórios.

Além de sermos já a terceira maior população carcerária do mundo, temos também a polícia que mais mata. Existe uma construção no imaginário, expresso pela mídia, pelas conversas de bar, pelo senso comum, de uma figura de traficante que é passível de ser morto pelo Estado.

Quando vemos manchetes de jornais falando de operação policial contra o tráfico e que meia dúzia de suspeitos foram mortos, isso não é questionado. Num país em que teoricamente não existe pena de morte, parece que “traficante” é uma palavrinha mágica que legitima as execuções praticadas pelo Estado.

Nesse cenário, ao estarmos comemorando esses 10 anos, estamos justamente comemorando nossa resistência e nosso crescimento em dizer já basta dessa política de drogas – e a urgência de dizer já basta se expressa nesses números.

NINJA: A Marcha da Maconha teve seu ápice midiático durante o ano de 2011, quando a violência policial marcou a manifestação, que posteriormente precisou de determinação do STF para acontecer sem violência. Essa decisão permitiu usar o termo maconha. Essa liberação foi decisiva para que ativistas pudessem se manifestar sobre o tema sem risco de prisão, por exemplo. Isso fez a diferença para o movimento se consolidar e atrair mais adeptos?

A Marcha da Maconha SP surge em 2008, juntou cerca de 50 pessoas ali no parque Ibirapuera e ainda por cima era proibida de marchar. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) proibia a realização da Marcha da Maconha acusando seus organizadores de fazerem apologia ao crime. Isso é uma coisa que se repete em 2009, 2010 e em 2011.

Em todos esses casos, mesmo com a proibição da justiça, a Marcha é marcada, as pessoas se reúnem, a manifestação timidamente vai crescendo e em 2009 e 2010 chegou a marchar dentro do parque Ibirapuera. Mas até 2011 a Marcha precisava ainda lutar pelo seu direito de falar. Então a gente marchava muito mais pelo direito de questionar e debater a política de drogas, do que de fato conseguindo expor nossos argumentos pela legalização. “Libertar, libertar, o direito de pensar!”, era um dos nossos gritos.

Em 2011 a gente vai para a av. Paulista e de novo o TJ-SP proíbe a realização da Marcha. Ocupamos a avenida para marchar pela liberdade de expressão e mesmo assim o ato é brutalmente reprimido. Chuva de bombas, spray de pimenta, pessoas foram presas, outras se feriram.

Marcha da Liberdade, realizada após a repressão da Marcha da Maconha em 2012.

Tem vários vídeos e fotos que fizeram o registro dessa repressão bizarra. Um deles foi o da TV Folha – que apesar de ter a Soninha como narradora, ao invés de alguma pessoa do movimento –foi importante porque circulou bastante e ajudou a divulgar o absurdo que foi a ação da PM. Até um cara que carregava um coqueiro de papel escrito “isso não é maconha” foi detido.

E aí de fato acontece uma indignação muito grande frente a essa repressão. Naquele dia mesmo a gente já chama outra manifestação para a semana seguinte, que seria a Marcha da Liberdade.

2011 foi realmente um momento importante de virada da história da Marcha da Maconha SP: ela começa a crescer exponencialmente. Nesse momento vem à tona a discussão sobre o direito de se manifestar nas ruas de São Paulo e a importância de debater a política de drogas.

Ficou escancarado que para certo setor da sociedade é tão relevante que a guerra às drogas se mantenha do jeito que está, que não se podia nem falar a respeito. O paradigma proibicionista não podia ser tocado, nem no âmbito do debate. Isso foi quebrado pela Marcha da Maconha.

A Marcha da Maconha SP que foi reprimida em 2011 tinha cerca de mil pessoas. Na semana seguinte tinha 2 mil. Depois cresceu para 4 mil, e assim foi. Foi crescendo e a gente conseguiu pressionar que o STF julgasse pelo óbvio: de que era inconstitucional proibir a realização da Marcha porque isso feria a liberdade de expressão e de manifestação.

A própria história da Marcha da Maconha SP mostra como o debate que a gente traz foi ganhando espaço na sociedade e no debate público.

NINJA: A politica e a cultura nem sempre se cruzam. Em relação às drogas, a permissividade com a maconha, que se vê culturalmente, não se traduz na política, que avança pouco no debate sobre regulação das drogas. Como a Marcha da Maconha se encaixa nesse cenário?

O caráter da Marcha da Maconha que eu destaco dentro desse cenário é o da desobediência civil, da autonomia. Não estamos indo para as ruas simplesmente para pedir uma mudança de legislação. Uma das coisas mais interessantes da Marcha da Maconha é que aqui em São Paulo ela talvez seja a maior ação direta de desobediência civil em massa.

Marcha da Maconha 2018 em São Paulo – Ação direta de desobediência civil. Foto: Mídia NINJA

A mensagem que a gente passa, nesse sentido, não é que não estamos ali pedindo ou esperando que a nossa liberdade seja concedida por meio de uma mudança na política de drogas: a gente já está fazendo ela na prática. Ao fazer ela na prática a gente também mostra que não tem nada demais as pessoas irem pras ruas e fumarem seus baseados.

A gente se encaixa nesse cenário mostrando, na prática, que essa lei é injusta, é violenta, a gente não se reconhece nela, a gente não a aceita e não vamos obedecê-la. Os movimentos de luta por moradia afirmam que se moradia é um direito, ocupar é um dever. Nós afirmamos que se a proibição das drogas é injusta, devemos descreditá-la e desobedecê-la.

NINJA: Nos últimos 10 anos, três governos se formaram: Lula, Dilma e Temer. Como esses governos lidaram com políticas de drogas? Quais as principais mudanças entre um e outro?

Ao invés das mudanças entre os governos Lula, Dilma e Temer no que diz respeito à política de drogas, destaco justamente o contrário: houve entre esses governos uma continuidade, seguindo à risca a cartilha proibicionista de guerra às drogas.

Aumento do encarceramento, militarização, polícia pacificadora, programa “crack é possível vencer”, parceria com Israel para o incremento das forças policiais desde a Copa do Mundo, Amarildos, Cláudias, Rafaéis Bragas, Marielles, forças armadas nas favelas, intervenção militar, a lista é grande. E a nossa luta é contra a violência do Estado – independente de quem esteja sentado no trono.

Bucetas Ingovernáveis, o feminismo na Marcha da Maconha 2018. Foto: Mídia NINJA