Durante a passagem que narra o julgamento de Jesus Cristo, talvez uma das expressões que marcaram esse fato é o momento onde Pôncio Pilatos decide não se envolver com o problema da condenação de Jesus, e lava suas mãos o entregando a Herodes. Dois mil anos se passaram e seguimos vendo os verdadeiros responsáveis seguidamente “lavando as mãos” aos problemas que eles mesmo causaram e deveriam ao menos reparar os seus danos.

Nos dias de hoje as grandes empresas do agronegócio se conformam em versões “modernas” de Pilatos, se eximindo de qualquer responsabilidade dos problemas ambientais e na saúde causados pelos seus produtos e seus modos de produção.

Tanto na agricultura quanto no consumo, as empresas produtoras de agrotóxicos transferem a responsabilidade de seus produtos para os indivíduos que os utilizam e os consomem. Analisamos isso em dois casos que estão nas “pontas” da produção.

Agricultores devem assinar termo de risco e responsabilidade para uso de agrotóxico banido.

Em setembro deste ano a Agencia Nacional de Vigilância Sanitária- ANVISA, decidiu pelo banimento do princípio ativo Paraquate, que compõe herbicidas utilizados no Brasil. O processo de banimento não é imediato, mesmo com as comprovações do produto como causador de mutações genéticas e do Mal de Parkinson, será necessário três anos para poder conseguir seguramente acabar com todos os estoques das empresas e, quem sabe, ganhar tempo para converter o processo. Neste ponto já nos deparamos com um absurdo tremendo, como podemos afirmar que estão preocupados com a saúde da população quando um produto como esse tem prazo longo para não circular mais?

Perder algumas milhares de pessoas não faz diferença para o capital. Numa era de economia estagnada movimentar a economia da “saúde” – ou melhor, da doença – pode ser bem mais vantajoso.

O que nos chama mais atenção nesse banimento brando e tardio do paraquate é que ele poderá ser comercializado desde que o agricultor assine um termo de responsabilidade do risco do agrotóxico e afirma que o mesmo só deve ser utilizado por aplicação via tratores com cabine fechada. Esse termo exime de fato o fabricante e o Estado de qualquer dano que o produto venha causar ao agricultor, num país onde a precarização do trabalho avança, o serviço de fiscalização dos órgãos nacionais são insuficientes, o paraquate seguirá vitimando nossa população, mas agora “consciente” dos problemas desse veneno. A pergunta é se durante esses três anos para alcançar o banimento, quantas pessoas irão morrer? Quantas pessoas serão afetadas pelo Parkinson e outras doenças? A quem importa tudo isso? Assinando ou não o termo de responsabilidade não importa, a empresa produtora do paraquate e o Estado brasileiro lavam as mãos para a população que seguirá na marcha para o Calvário, dessa vez não com uma cruz, mas com um galão de paraquate.

O Milagre do bicarbonato ou a tapeação da mídia

O portal de notícias G1, publicou recentemente uma matéria onde demonstra que o uso de bicarbonato de sódio dissolvido em água retira até 96% dos agrotóxicos da maçã. Uma notícia um tanto tendenciosa e ilusória, mais uma vez buscando o exemplo de Pilatos, enquanto empresas lavam as mãos pela responsabilidade dos dados de seus produtos químicos, transferem a responsabilidade da contaminação do veneno para quem consome.

Ter um alimento livre de agrotóxico vai muito além da tentativa de sua retirada das superfícies dos alimentos, e não se pode responsabilizar os consumidores por isso. Os agrotóxicos se converteram em um caso de contaminação ambiental e de saúde pública. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que o uso dessas substâncias é da ordem de 3 milhões de toneladas/ano, expondo, só no meio agrícola, mais de 500 milhões de pessoas.

A pesquisa apresentada pela noticia do G1 trata a eliminação de 2 agrotóxicos da maçã, o tiabendazol e inseticida phosmet. O tiabendazol é um fungicida sistêmico, ou seja sua ação se dá por meio a penetração e circulação na seiva da planta alcançando todas suas partes, inclusive os frutos, jamais uma solução de bicarbonato de sódio conseguiria eliminar isso.

Os casos anuais de intoxicações agudas não intencionais nos países do terceiro mundo são estimados em 1 milhão, com 20 mil mortes. As intoxicações crônicas, embora de mais difícil avaliação, são estimadas em 700 mil casos/ano, com 37 mil casos/ano de câncer em países em desenvolvimento e 25 mil casos/ano de sequelas persistentes.

O uso de substâncias como bicarbonato, álcool, hipoclorito podem até funcionar como uma forma de higienização da superfície dos alimentos, mas não eliminar os agrotóxicos contidos neles.
Esse tipo de pesquisa e a sua veiculação avançam ao passo que aparecem nas prateleiras soluções de limpeza de alimentos que eliminam até 99% dos agrotóxicos, o que está mais para uma tapeação camuflada de um “sinal de responsabilidade das empresas com os consumidores”.

Ao lavarem as mãos para o problema da contaminação dos alimentos pelo uso de agrotóxicos, as empresas colocam sobre nós, consumidores, a responsabilidade dos prejuízos dos venenos à nossa saúde. A única alternativa real e possível para consumirmos alimentos limpos de veneno é a mudança do modelo produtivo, uma transição que exclua da agricultura transgênicos e agrotóxicos, o que se torna possível quando quem produz e quem consome se correlacionam de forma estrutural. Seja no campo ou na cidade, já basta de assumirmos a responsabilidade pelos problemas que não foram criados por nós.

Por Josiene da Costa, médica, e Bruno Pilon, técnico Agrícola, ambos militantes do Movimento dos Pequenos Agricultares- MPA

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