Estamos sendo bombardeados o tempo todo com números de pessoas infectadas e mortas pelo coronavírus, no Brasil e no mundo. A contabilidade macabra vai sendo atualizada e a numerologia conforma gráficos da evolução da epidemia. Medidas vão – ou não – sendo tomadas para se tentar modular minimamente esse movimento assombroso, para que a estrutura de assistência à saúde possa absorver seu impacto. 

Com a evolução da epidemia, vamos nos habituando a discutir o achatamento das curvas dos gráficos, o percentual diário de aumento dos casos e os índices de letalidade. São indicadores muito importantes para orientar as políticas e avaliar seus resultados, que, no entanto, reduzem à estatística um turbilhão de existências, cujas ausências – cada uma delas – ferem e transtornam muitas outras. 

Na quinta-feira (9/4), morreu em Boa Vista (RR), um jovem estudante Yanomami de 15 anos, por infecção pulmonar provocada pela Covid-19. Ele nasceu na comunidade Herepi, na Terra Indígena (TI) Yanomami, mas estudava o ensino fundamental em uma escola da comunidade Boqueirão, na TI Boqueirão, dos povos Macuxi e Wapichana, no município de Alta Alegre, no norte de Roraima. Seus pais, cinco profissionais da saúde indígena, um piloto de avião e a comunidade Helepi, com cerca de 70 pessoas, estão isolados e sendo monitorados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, por terem mantido contato com o jovem. Até o momento, não se sabe como ele foi infectado. 

O nome do menino e outras circunstâncias da sua vida serão aqui omitidas em respeito ao tratamento que os Yanomami dão aos seus mortos. Cabe apenas mencionar que ele tinha um histórico de anemia e de seguidas malárias, o que pode ter sido decisivo para que ele não resistisse à infecção pelo coronavírus. 

Informações divulgadas pela imprensa dão conta de que o estudante passou 21 dias com os sintomas do novo coronavírus, buscando atendimento e não foi submetido ao teste para Covid-19, no início da doença. Ele chegou a receber alta do Hospital Geral de Roraima. O caso explicita uma fragilidade no sistema da saúde indígena. 

O pior é que, seguindo as orientações das autoridades sanitárias, o corpo do menino foi imediatamente enterrado, como indigente, no cemitério de Boa Vista. Os seus pais nem foram avisados. 

“Os pais estavam planejando levar o corpo do filho para Herepi, onde ele nasceu. Eles não autorizaram enterrar em Boa Vista”, afirmou Dario Vitório Kopenawa, coordenador da Associação Hutukara, que representa os índios. 

Na sua cultura, os Yanomami fazem rituais funerários de seus mortos com a cremação dos ossos e ingestões de cinzas. Essa cerimônia se chama Reahu e garante que os mortos possam seguir seu caminho e encontrar seus antepassados. 

A perda desse menino é um pingo no oceano estatístico da epidemia, mas as suas consequências humanas e as suas implicações culturais são extensas. A Associação Hutukara pretende recorrer à Justiça para que os restos sejam exumados e devolvidos, para serem tratados conforme suas tradições e que o jovem possa encontrar seus caminhos, pois a morte é uma passagem e não um fim numa cova, segundo as tradições indígenas e várias das ocidentais também. 

A aldeia Herepi vive um luto ainda mais doloroso, pois um filho partiu antes do esperado e sem rumo, deixando dúvida e medo entre os parentes. Os povos indígenas podem ser considerados um grupo de risco para epidemias em função de desvantagens econômicas, sociais, de acesso à saúde e ao saneamento, além da prevalência de algumas doenças, como outras infecções respiratórias. Com o seu território invadido, segundo estimativas, por mais de 20 mil garimpeiros, cuja presença ilegal é estimulada pelo próprio presidente da República, imagine o risco de genocídio que, mais uma vez, ronda esse povo. 

Na pessoa desse anjo menino Yanomami, cujo nome não deve mais ser pronunciado, eu quero homenagear cada vida perdida e todas as vítimas mais diretamente atingidas por essa pandemia.

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