Na semana passada, o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) concedeu uma licença de instalação à mineradora Potássio Brasil para a exploração de uma jazida de potássio, em Autazes. Apesar do nome, a empresa é controlada por fundos internacionais de investimento. Foi criada pelo grupo canadense Forbes & Manhattan, que hoje só detém 14% das ações, contra 34% da CD Capital e 22% da Sentient, além de outros acionistas menores.

Governador do Amazonas, Wilson Lima, entrega licença para mineradora Potássio do Brasil | Diego Peres e Mauro Neto / Secom-AM

A Potássio Brasil adquiriu legalmente direitos minerários na região que já pertenceram à Petrobrás. A empresa detém outros requerimentos contíguos ao que foi objeto da licença. Porém, a área concedida fica a 10 km da Terra Indígena (TI) Murutinga/Tracajá, do povo Mura, com limites já identificados, e à distância ainda menor da Aldeia Soares, da mesma etnia, que fica às margens do lago de mesmo nome e cujo território está em processo de identificação por um grupo de trabalho constituído pela Funai. A situação deixa clara a necessidade de federalizar o licenciamento da mina, atribuindo-o ao Ibama. 

Se a área objeto da licença for reconhecida como TI, a autorização teria de ser suspensa, até que o Congresso Nacional regulamente a pesquisa e a lavra mineral nesse tipo de território protegido, como prevê a Constituição. Há forte pressão para que o Legislativo o faça, assim como há uma ação no STF, de inconstitucionalidade por omissão, contra o próprio Congresso e proposta pelo PP, partido do próprio presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (AL). A ação pede que o STF determine o prazo de mais um ano para que o Congresso regulamente o tema e que, não o fazendo, o próprio STF o faça.

O aumento da produção de potássio é estratégico para o Brasil, que é uma potência agrícola. O país importa mais de 90% de todo o fertilizante que consome e a substância química é essencial para a produção desse tipo de insumo. Há jazidas conhecidas e ocorrências pesquisáveis em outras áreas, na Amazônia e fora dela, mas, segundo geólogos que conhecem melhor o caso, a jazida de Autazes é um “filé”, pela extensão, pela proximidade da superfície, pelo teor de potássio e pelo potencial de lucro. São fortes os motivos que levam a Potássio Brasil a se enredar entre os Mura.

‘Murificação’

Há registros historiográficos, desde o início do século 17, sobre a presença dos Mura na região do Baixo Rio Madeira, onde fica, hoje, Autazes e outros municípios do Amazonas. Desde essa época, era reconhecido como um povo navegador, que dispunha de grande mobilidade e ocupava extensos territórios, sendo profundo conhecedor do labirinto formado por lagoas, ilhas e canais, que caracteriza a região.

A mobilidade e o conhecimento dos Mura incomodavam demais as primeiras frentes de colonização que se instalaram na região. Eles eram mais temidos que outros grupos e tinham maior capacidade de fustigar os colonizadores por meio de guerrilhas permanentes.

Porém, a característica do Povo Mura que mais incomodava os invasores não era de natureza bélica, mas sociocultural: sua capacidade de incorporar pessoas de fora (suas histórias e seus conhecimentos) às suas comunidades, seja por meio de casamentos, de cooptação ou do acolhimento de escravos fugitivos. Documentos oficiais alertavam para o risco de “murificação”.

‘Caboclo mura’

Tempos depois, com as frentes coloniais consolidadas e relações, inclusive comerciais, constituídas, os Mura foram trocando a sua língua original primeiro pelo Nheengatu, uma espécie de língua franca indígena criada pelos jesuítas, e depois pelo português. Nesse processo, grupos Mura e seus agregados assumiram-se como “caboclos” na relação com os não indígenas regionais, para quem “caboclo” era um nome quase tão pejorativo quanto “índio”. Mas para os Mura, era uma opção de identidade mais inclusiva, por oposição aos colonizadores.

A ambiguidade persiste. Nos anos 1990, a Funai demarcou quatro pequenas terras Mura, reservadas pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Mas há várias outras ocupações dos Mura, inclusive em Autazes, cujos processos não foram concluídos ou iniciados. No governo passado, a Potássio Brasil foi instruída a consultar apenas cinco aldeias Mura. Uma decisão da Justiça Federal ampliou esse conjunto para 30, mas foi suspensa pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Outras, como a Aldeia de Soares, estão sendo dadas como vilas passíveis de remoção.

Se autorizada, a extração de potássio em Autazes deve levar décadas e resultar em muito dinheiro. Não se trata de uma invasão pontual de madeireiras ou de um contrato temporário de arrendamento. Não se trata de uma ligação temporária, mas de longa duração. A Potássio do Brasil deveria construir uma relação séria com o Povo Mura e rejeitar essa ambiguidade. Mas está escolhendo a discriminação. Fez acordo com a Associação dos Mura, que representa as aldeias da TI Murutinga/Tracajá, mas se recusa a admitir as demais, inclusive a Aldeia Soares, da sua área de interesse direto.

A associação aliada está recebendo apoio financeiro da Potássio do Brasil, antes mesmo de iniciada a exploração mineral, e tem participado formalmente de eventos e reuniões. Os demais grupos estão sendo considerados não indígenas, ou indígenas deslocados de outras áreas por ONGs, missionários ou pela Funai supostamente só para prejudicar a mineração.

Relação tóxica

A empresa e os seus aliados comemoraram efusivamente a entrega da licença pelo Ipaam. Equipamentos estão sendo alocados perto da Aldeia de Soares, sem autorização, e o acesso da comunidade às áreas de roça está sendo dificultado. O Ministério Público Federal está recorrendo da liminar concedida pelo Tribunal e o grupo de trabalho da Funai deve entregar o seu relatório à presidência do órgão. A relação começou mal. 

A polêmica em relação aos Mura, que ainda promete muitos capítulos, desvia a atenção para outras implicações do projeto mineral que não estão sendo esclarecidas. A região do Baixo Madeira se assemelha a um mar de água doce e a contaminação das águas por resíduos do sal de potássio pode afetar a saúde dos peixes e a segurança alimentar não apenas dos Mura mas também de outras comunidades tradicionais, como os ribeirinhos. Vias de acesso, plantas industriais e linhas de transmissão serão construídas e elas igualmente trazem impactos socioambientais significativos, a exemplo da imigração e desmatamento.

Além disso, como ficarão os depósitos após a extração do potássio? Há risco de afundamento, como o que ocorre em vários bairros de Maceió (AL), após a extração de salgema pela Braskem?

Para a Potássio do Brasil, melhor seria apoiar a conclusão do reconhecimento do território indígena pela Funai e esperar a regulamentação da mineração em TIs pelo Congresso, conforme determina a Constituição, do que aderir à discriminação contra os Mura para apressar a licença e o início da exploração.