Na semana passada, duas sessões plenárias do Supremo Tribunal Federal (STF) foram dedicadas à continuação do julgamento sobre a tese do “marco temporal”, que quer restringir a demarcação das terras indígenas aos povos que estavam na sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. As comunidades expulsas das suas terras durante a ditadura, ou antes dela, só teriam direito a elas se tivessem recorrido à Justiça à época do esbulho.

Ministro Edson Fachin, relator do marco temporal. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Com os votos dos ministros André Mendonça, Cristiano Zanin e Luís Roberto Barroso, o placar está em 4 X 2 contra o marco temporal. Faltam dois votos para formar maioria pela sua derrubada. A retomada do julgamento está agendada para o dia 20 de setembro. Faltam votar cinco ministros: Cármen Lúcia, Rosa Weber, Luiz Fux, Dias Toffoli e Gilmar Mendes. É considerado certo que os votos das duas ministras serão contra o marco temporal e há outros prováveis.

Essa decisão terá “repercussão geral” sobre os demais processos demarcatórios não concluídos, suscitada a partir de uma ação de reintegração de posse movida pelo estado de Santa Catarina contra o povo Xokleng da Terra Indígena Ibirama-Laklanô, que ocupou a área de uma Unidade de Conservação estadual, excluída do seu território tradicional.

Indenização

O ministro-relator, Edson Fachin, votou contra. Nunes Marques, segundo a votar, votou a favor. O terceiro, Alexandre de Moraes, votou contra, mas buscou uma posição mais mediada, propondo a indenização pela terra nua. A Constituição prevê a indenização por benfeitorias aos terceiros ocupantes de boa fé, mas veda a indenização pela terra. Nesse ponto, o voto de Moraes mais parece emenda constitucional.

Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

Em seguida, Mendonça votou a favor do marco temporal e da indenização prévia. Zanin votou contra e só admitiu a indenização por perdas e danos, desvinculada do processo demarcatório, no que foi acompanhado por Barroso. A derrubada do marco temporal é muito provável, mas a hipótese de indenização pela terra, para alcançar a maioria, dependerá da convergência de posições para uma das modalidades sugeridas.

A decisão do STF impactará, diretamente, a tramitação do PL nº 2903/2023 no Congresso Nacional. O presidente da Câmara, Arthur Lira, apoiado pela bancada ruralista, aprovou esse projeto a toque de caixa, para pressionar o STF desde que foi agendada a retomada do julgamento. Sob pressão, senadores ruralistas tentaram aprová-lo de imediato, sem emendas, para que o texto pudesse ser promulgado sem retornar à Câmara. Não se sabe se essa má intenção persistirá.

Blefe

A postura do Congresso frente ao julgamento no STF tem sido patética. O PL que move o rolo compressor é do século passado e foi votado, sem análise nem discussão, na pior das suas versões. Além do marco temporal, ele acolhe outras afrontas à Constituição, como usurpar o direito de usufruto indígena em favor de invasores e obrigar o contato forçado com povos isolados. Com aberrações não alcançáveis pelo julgamento em curso, sua eventual aprovação, se não for objeto de veto, certamente ensejará outra ação junto ao STF.

Foto: Lula Marques/Agência Brasil

O STF também não faz papel de anjo nessa história. A tese do marco temporal, jamais discutida durante a Constituinte e ausente do texto constitucional, foi oficialmente aventada – e mal resolvida – no próprio STF, em 2010, quando foi julgada a constitucionalidade da demarcação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol (RR). Por sua vez, o julgamento em curso começou em agosto de 2021 e não se sabe se terminará em 20 de setembro.

O próprio Executivo, em mandatos anteriores, se apressou a adotar em portarias a tese inconstitucional, sem esperar uma definição do STF. O famoso Parecer 001/2017, da Advocacia Geral da União, está com os seus efeitos suspensos até o final do julgamento. A conivência do Executivo se estende à paralisia nos processos demarcatórios, apenas parcialmente atenuada após a posse do atual governo.

Mas é o Congresso que está pior na fita, ao blefar contra o STF tendo como base uma proposta ruim, quando todos sabem que cabe ao STF a palavra final sobre a constitucionalidade das leis. Com isso, o Congresso deixou espaço aberto para o protagonismo do STF na questão da indenização, mesmo tendo o Senado aprovado, a 10 anos atrás, uma proposta de emenda à Constituição para tratar dela, engavetada pela Câmara.

Tem saída

Os poderes da República estão zonzos, girando em torno dos próprios eixos, presos no círculo de giz do “marco temporal” que eles mesmos inventaram. A provável derrota da tese terá, até para eles, um efeito libertador.

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