O governo Jair Bolsonaro incentivou, com medidas e declarações persistentes, atos e omissões de agentes públicos e privados que promovem forte aumento do desmatamento e das queimadas, especialmente na Amazônia e no Pantanal. Pressionado pela repercussão desastrosa do resultado, agora apresenta ao Brasil e ao mundo a “regularização fundiária” como sendo a sua principal solução.

A ideia de regularização, em si, parece ser uma providência necessária e racional para colocar ordem na situação das terras na Amazônia, que ninguém duvida que seja caótica. Ela é tão antiga quanto o próprio caos fundiário, produzido ao longo da tradição colonial patrimonialista, tão marcante na nossa história. Assim, não deve ser ignorada, nem colocada como condição prévia para a solução de todos os males.

O vice-presidente, Hamilton Mourão, na condição de presidente do Conselho Nacional da Amazônia, repete, como mantra, que essa é a solução ao responder manifestações de desagrado por parte de empresas e bancos diante do descontrole do desmatamento. Ele sugere que faltam ao governo instrumentos legais para regularizar terras, sem o que o desmatamento ilegal seria inevitável. Mourão tem respondido pelas questões amazônicas após o esvaziamento e a desestruturação do Ministério do Meio Ambiente.

Mas não há falta de lei. Há até excesso. Para nos atermos aos tempos mais recentes, com sucessivas aproximações entre a regularização e o próprio grilo de terras, houve a Medida Provisória (MP) 458/2009, convertida na Lei 11.952/2009, que instituiu o Programa Terra Legal no governo Lula. Com base nela, puderam ser tituladas, na Amazônia, áreas de até 1.500 hectares que estivessem ocupadas desde antes de 2004 por pessoas físicas que vivessem delas.

Em 2016, Michel Temer alterou essa lei por meio de outra MP, número 759, que ampliou para até 2.500 hectares a extensão de áreas passíveis de regularização na Amazônia e para 2008 o prazo máximo para a inclusão de ocupações ilegais no programa, ou 2011, caso o pagamento (irrisório) pela área seja feito à vista. Essa MP também estendeu o programa para outras regiões do país. Mesmo considerando que apenas 20% da terra pode ser legalmente desmatada, essa extensão pode chegar a 500 hectares (ou 500 campos de futebol). Mais sete anos de ocupação ilegal de terras foram incluídos nessa legalidade elástica.

A carência de Mourão

A carência do Mourão tem a ver com a MP 910, que Bolsonaro editou em 2019, para incluir pessoas jurídicas entre os beneficiários da regularização e para estendê-la às áreas griladas até 2014, esticando por mais três anos a legalização da ocupação ilegal de terras públicas. A nova MP trouxe uma novidade revolucionária do ponto de vista dos ocupantes ilegais: a dispensa de vistoria in loco nas áreas em processo de regularização, que passaria a ter natureza praticamente autodeclaratória. Uma nova espécie de grilo: online!

Parece ser este o objetivo pretendido por Mourão, Bolsonaro e o secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Nabhan Garcia, que tem histórico de militante da causa. Após vigorar por seis meses, a MP 910 caducou, sob forte pressão da sociedade civil, sem que o Congresso a convertesse em lei. Mas teve seus termos repostos pela projeto de lei 2.633/2020, que tramita em regime de urgência, estendendo às áreas ocupadas até 2018 a possibilidade de regularização mediante pagamento à vista.

Observe, leitor(a), que as MPs são uma constante, como se os critérios constitucionais para a edição desse tipo de norma – relevância e urgência – pudessem ser arguidos a todo momento. Outra constante é o aumento das áreas griladas, dos beneficiados com a alteração da legislação e do prazo de tolerância, que é fixado para, supostamente, desestimular novas ocupações, mas que, ao ser alterado sistematicamente, passa a sinalizar o contrário: a impunidade permanente.

Mas não é só isso. Sobre a primeira MP da série já se dizia, há mais de uma década, que era essencial para combater o desmatamento ilegal e a insegurança jurídica dos ocupantes de terras públicas. Em 2009, o argumento de que ela contribuiria para controlar o desmatamento até tinha mais credibilidade, pois o Brasil atravessava um período de reduções consistentes de suas taxas de destruição da floresta. Em 2016, quando o desmatamento já estava em ascensão mais uma vez, os argumentos foram os mesmos.

Agora, a situação está muito pior. Na semana passada, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgou a estimativa de um novo salto de 34% na taxa do desflorestamento da Amazônia, entre agosto de 2019 e julho de 2020, a partir de outro salto de 30% ocorrido nos 12 meses anteriores. É nesse cenário que o Mourão advoga, como urgente e essencial, a inclusão de empresas e de ocupações ilegais mais recentes no programa regularização, dispensando a vistoria in loco.

Tolerância elástica

O argumento para a tolerância elástica, desde sempre, é que a identificação dos ocupantes ilegais de terras públicas torna-os passíveis de punição, caso desmatem além do permitido. Só que a ilegalidade está crescendo também nas áreas privadas, onde ocorre, sem maiores constrangimentos, um terço do desmatamento ilegal acumulado. Mourão não apresenta, em favor da tese adotada, informações específicas que comprovem a redução do desmatamento ou sua contenção aos limites legais nas áreas já regularizadas pelo programa.

Os números de potenciais beneficiários do programa, apresentados para justificar as sucessivas MPs, chega a centenas de milhares de famílias. Repostos a cada nova proposta de alteração na lei, acabam sugerindo que a ocupação ilegal de terras públicas na Amazônia aumenta, em vez de acabar. São números que pretendem valorizar o suposto benefício social da regularização, mas, se os levarmos em conta e os multiplicarmos pela extensão legalmente passível de ser desmatada, chegaremos a um extenso e sinistro resultado. Ao longo do tempo, o processo de regularização fundiária foi se tornando paradoxal ao reproduzir, indefinidamente, o desmatamento e a ocupação de terras ilegais.

Por outro lado, os números de títulos efetivamente concedidos foram crescentes de 2009 a 2014, mas desabaram nos anos seguintes, como demonstra o gráfico abaixo.

Fonte: Brenda Brito / Imazon

Isso pode significar o esgotamento da demanda usada para justificar a criação do programa em 2009 ou, então, a redução da capacidade operacional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Mas parece indicar que a sôfrega urgência do atual governo para alterar a lei outra vez pretende, além de dissimular as pressões decorrentes da recente explosão do desmatamento, atender a demanda de grandes grileiros e à conveniência de ocultar a incapacidade da administração federal de executar a política fundiária.

Ocupações ilegais devem aumentar

Assim, as ocupações ilegais devem se intensificar com a eventual instituição do grilo online, apressando trâmites e estimulando o planejamento de operações de grilagem em escala. Além disso, sem vistorias in loco, é previsível a multiplicação de conflitos em consequência da titulação, em favor de terceiros, de terras ocupadas por comunidades indígenas e extrativistas que ainda não foram demarcadas.

A pressão pela legalização do grilo empresarial online vai aumentar. Mourão percebe que a retórica adorada, de que a regularização fundiária reduz desmatamento, ainda cola para os incautos. O centrão e a bancada ruralista estão afoitos para promover mais um fluxo patrimonialista e querem incluir o tal projeto de lei, o quanto antes, na pauta de votação da Câmara.

O negócio deles é ganhar tempo e dinheiro, enquanto o Mourão toureia as pressões.

Já controlar o desmatamento são outros quinhentos. Quando Mourão puder ir além do jogo de conveniências do governo e da mera administração de pressões, deve revisitar a experiência que o Brasil viveu entre 2006 e 2012, quando promoveu expressiva redução do desmatamento e da emissão de gases de efeito estufa, num contexto de crescimento da economia. Humildade não faz mal a ninguém!

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