O presidente Bolsonaro é uma espécie de espelho invertido do ex-presidente Lula. Ambos preferem reduzir a política a uma disputa bipolar para que possam continuar reinando, cada qual no seu espaço de poder ou de influência. Ambos têm em comum a simpatia de 30% e a rejeição de 50% da população.

Em princípio, esses 30 e 50% não são os mesmos, mas antagônicos. Porém, o aprofundamento da crise sob Bolsonaro leva-o a buscar em parte da base popular do Lula, notadamente a que depende do Bolsa Família, a compensação pela perda de popularidade nos grandes centros e em outros segmentos.

A crise política, econômica, sanitária e de credibilidade vai chegando a extremos. Doença, morte, miséria e violência dão o tom do momento e a situação do governo é de isolamento, interno e externo. A natureza aguda da epidemia e a opção de afrontá-la pela contramão, levou Bolsonaro às cordas e a uma semi-rendição.

O envolvimento do presidente, dos filhos e dos mais ferrenhos apoiadores num pacote de inquéritos e processos em vários fronts – STF, TSE, TCU, Justiça do Rio de Janeiro e CPI no Congresso – e, especialmente, a prisão do escroque Queiroz num imóvel de Wassef, outro escroque que advoga para a família Bolsonaro, obrigaram o presidente a rifar o núcleo mais radical que o apóia, aí incluídos os militantes golpistas presos, o ex-ministro Weintraub demitido e os filhos silenciados.

A área militar é o pano de fundo dessa história. O fator Queiroz repôs sobre a mesa um mix de corrupção com milicianismo insuportável para a maior parte da alta oficialidade, sobretudo quando a excessiva associação entre governo e Forças Armadas já vinha transferindo para a imagem delas parte do desgaste dele.

Parece que rolou um duplo movimento nos bastidores: os generais palacianos exigiram e conseguiram o chega prá lá do presidente para os golpistas, ao mesmo tempo que os comandantes da ativa deram um chega prá lá nos generais palacianos, pressionando, inclusive, pela transferência para a reserva do Secretário de Governo, general Luís Eduardo Ramos.

Deve ter ficado claro para Bolsonaro que não há espaço para o pretendido auto-golpe, que ele terá que acatar decisões que competem aos demais poderes. Ele cooptou o apoio de bancadas do “centrão” com cargos que controlam fatias importantes do orçamento, mas sabe que a fidelidade dele e a sua sobrevivência aos inúmeros pedidos de impeachment dependem da recuperação de parte da popularidade perdida. O seu aparato de auto-mídia, fundado na disseminação de fake-news por legiões de robôs virtuais e humanos, está sob forte pressão.

E foi nesse mato sem cachorro que Bolsonaro descobriu uma possível solução. O programa de auxílio emergencial implantado para enfrentar o impacto da pandemia sobre os desempregados e desprovidos das condições de sobrevivência. O tal dos R$ 600 mensais, que o governo pretendia que fossem R$ 200 e o Congresso pressionou pelo aumento e que, agora, o governo quer prorrogar por três meses com valor decrescente e que o Congresso tende a manter no mesmo patamar.

Não é de agora que o presidente pretende invadir a praia do Lula, especialmente no nordeste, onde perdeu a eleição. Também já mexeu no Bolsa Família e prometeu um décimo terceiro benefício por ano, mas ainda num tom defensivo frente a uma política econômica orientada para um arrocho fiscal. Mas a experiência inicialmente indesejada do auxílio emergencial, com valor e número de beneficiados maiores do que os do Bolsa Família, com todas as suas falhas de execução, tem sido eficiente para conter um desastre social e humanitário ainda maior.

Todas as pesquisas indicam um significativo aumento da rejeição ao presidente e do apoio ao seu impeachment pela população. 

Indicam também que, a despeito de muitas dissidências ocorridas nos últimos 15 meses, mantém-se resilientes. Não há evidência de que o auxílio emergencial contribua significativamente para essa resiliência, mas segundo o DataFolha, apenas 26% dos seus beneficiários aprovam e 49% reprovam o governo, índices semelhantes aos aferidos para a população em geral. 

Tanto é que Bolsonaro pretende anunciar um novo programa social, para chamar de seu. Ele deve se chamar “Renda Brasil”, voltar-se para famílias de baixa renda e deve beneficiar 40 milhões de pessoas. O Bolsa Família continuará a ser pago, com novo nome. A ver como essa intenção conviverá com a neura fiscal do ministro da Economia e com a incompetência total do ministro da Cidadania.

O presidente está substituindo a agenda de manifestações golpistas e de agressões diárias aos demais poderes com a retomada de viagens pelo país, começando por inaugurar uma nova etapa das obras de transposição das águas do São Francisco para o semi-árido nordestino, não por acaso. Este é o espírito do que andam chamando de “Bolsonaro Paz e Amor”: um jogador de rouba-monte, ávido por vampirizar qualquer fator resiliente de popularidade do Lula.

Os movimentos do presidente devem ensejar contra-movimentos das oposições. Vêm ocorrendo manifestações virtuais, focadas na defesa da democracia, reunindo forças diversas, tanto entre partidos políticos, quanto de movimentos e organizações sociais. Mas são manifestações ainda limitadas pela circunstância de isolamento social, importantes como espaços de articulação, mas que não têm como ampliar o seu alcance social nesse momento. Não são contrapontos em relação ao alvo preferencial do presidente.

Governadores também se desgastam com o agravamento da crise, inclusive desafetos do presidente. Bolsonaro festejou a operação da PF contra compras fraudulentas de equipamentos para o enfrentamento da epidemia, que flagrou corrupção do governador Wilson Witzel, do Rio de Janeiro, embora a sua euforia tenha murchado, logo em seguida, com a prisão do Queiroz. Mas é provável que a corrupção acintosa em alguns estados, em plena pandemia, tenha contribuído para sustentar o apoio ao Bolsonaro.

Mesmo assim, as forças de centro-direita na oposição estão ativas e vêm sendo reforçadas com dissidências do governo. Se figuras como João Dória, Rodrigo Maia, Sérgio Moro e Henrique Mandetta se juntarem, disputarão, com força, a sucessão de Bolsonaro. Não se mostram dispostos a promover o impeachment, mas poderiam apoiar Mourão numa eventual transição.

As forças mais à esquerda se unem na defesa da democracia, mas estão distantes de construir um projeto comum de governo. Enquanto o PT luta para se preservar como pólo, PDT, PSB e Rede tentam escapar da polarização Lula-Bolsonaro.

Até agora, a esquerda tem sido menos pródiga em projetar nomes para enfrentar Bolsonaro em 2022. Se não vierem estímulos fortes da sociedade civil organizada, vai sobrar pouco espaço no campo dos partidos para que vinguem novas opções como o governador do Maranhão, Flávio Dino, ou o ex-líder da oposição na Câmara, deputado Alessandro Molón.

Há muito o que fazer pelas forças sociais mais ativas no enfrentamento à crise sanitária e ao desgoverno Bolsonaro, como os cientistas e os profissionais de saúde, mas também artistas, profissionais da comunicação e militantes dos diversos movimentos sociais. Para influírem na construção de alternativas de poder, precisarão ir além dos seus legítimos focos específicos de atuação para pactuar projetos políticos que expressem os anseios de futuro dos diversos atores sociais interessados.

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