Na semana passada, o presidente Lula homologou duas Terras Indígenas (TIs): Aldeia Velha, do povo Pataxó (BA), e Cacique Fontoura, do povo Iny Karajá (MT). A homologação – penúltima etapa do processo de demarcação — é muito importante para essas populações. A conclusão dos processos é esperada por décadas e abre caminho para resolver conflitos e estabilizar a situação fundiária nas suas regiões.

Mas Lula sabe – e admitiu – que o anúncio sobre as duas áreas frustraria o movimento indígena, que esperava, também, a homologação de outras quatro, mas que o presidente resolveu adiar: Toldo Imbu, do povo Kaingang, e Morro dos Cavalos, dos Guarani Mbyá e Guarani Nhandeva (SC); Xukuru-Kariri, dos Xukuru-Kariri (AL); e Potiguara de Monte-Mor, do povo Potiguara (PB).

O petista alegou “problemas burocráticos”, presença de ocupantes não indígenas, a necessidade de dar mais tempo aos governadores desses estados para resolverem essas ocupações e o risco de decisões judiciais em contrário. Mas é improvável que existam dificuldades burocráticas. Além disso, as terras homologadas também demandam indenização ou reassentamento de não indígenas e qualquer demarcação está sujeita à judicialização. Lula não esclareceu o que espera que os governadores façam para viabilizar as desocupações.

Assentamentos e quilombos

Ainda na semana passada, o MST promoveu 28 ocupações de terras improdutivas, em 10 estados e no DF. Cerca de 20% das 105 mil famílias acampadas no país participaram da mobilização. “A paciência é inimiga da fome e do abandono para quem está debaixo de uma lona preta”, disse o MST em carta aberta. A reforma agrária pouco avança e o governo não tem desapropriado novas áreas para assentamentos.

Ao mesmo tempo, o governo federal lançava, em Brasília, o programa “Terra da Gente”. No evento, o presidente e o ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, anunciaram 17 caminhos legais para obter e disponibilizar terras para a reforma agrária, as chamadas “prateleiras de terras”. O anúncio teve o mérito de pautar o tema e reflete a busca de alternativas à desapropriação.

A titulação de quilombos também anda devagar, quase parando, embora disponha de status constitucional, assim como a demarcação das TIs, e possa ser feita também pelos estados e não só pela União. Apenas cerca de 390 comunidades quilombolas foram tituladas até agora pelos governos federal e estaduais, diante de uma pendência de, pelo menos, cerca de 3,1 comunidades. Os números consideram as mais de 3,5 mil comunidades já certificadas pela Fundação Palmares, do Ministério da Cultura, mas há milhares de outras ainda não reconhecidas.

Unidades de Conservação

Não há estimativa, sequer, sobre quantas são as comunidades tradicionais extrativistas que vivem em áreas sem proteção legal. São milhares, com certeza, e estão em todas as regiões, do litoral aos confins da Amazônia. Elas são vítimas frequentes de grileiros, pistoleiros, empresas e projetos imobiliários. Em geral, não têm infraestrutura para armazenar e transportar os seus produtos, ficando sujeitas aos atravessadores, que controlam e se apropriam da renda gerada pelo comércio dos produtos da floresta e de nossas outras paisagens naturais. Essas populações raramente acessam políticas públicas, como a de aquisição de alimentos para a merenda escolar.

Ainda há, portanto, uma grande demanda pela criação de novas Reservas Extrativistas, inclusive marinhas. Mas o seu sucesso depende, assim como a produção indígena e quilombola, de programas nos três níveis de governo para acolher e destinar esses produtos aos mercados. Regular o pagamento por serviços ambientais e o mercado de carbono será relevante para ampliar a renda das comunidades tradicionais.

Também cabe avaliar o grau atual de proteção efetiva de cada bioma do país, além da criação de outras áreas de uso restrito. Com o agravamento das mudanças climáticas, todas as formas de vida estão sujeitas aos seus impactos, que precisam ser monitorados, mitigados e, se possível, compensados. O SNUC, Sistema Nacional de Unidades de Conservação, além da proteção da biodiversidade e das comunidades tradicionais, terá crescente importância na regulação do clima e dos regimes de chuvas.

Terras sem destinação

Um estudo recente, publicado há duas semanas pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), pelo Centro de Empreendedorismo da Amazônia e pelo Climate Policy Initiative (CPI/PUC-Rio), estimou em 143 milhões de hectares – seis vezes o Estado de São Paulo – a extensão das terras públicas sem destinação na Amazônia, sujeitas à grilagem e à devastação.

Essa estimativa considerou as áreas privadas e as destinadas por atos oficiais das várias instâncias de governo, tanto para fins sociais, ambientais, produtivos e administrativos. Mas foi feita remotamente, sem checagens em campo, o que demandaria uma estrutura cara e complexa. Partes dessa área correspondem às TIs e aos quilombos ainda não reconhecidos, ou são ocupadas por comunidades tradicionais, posseiros e grileiros.

As terras públicas sem destinação são áreas em disputa. Foi-se o tempo em que o Brasil era terra de ninguém. Nunca foi, na verdade. E, agora, é ainda muito menos. As situações de sobreposição e de conflito já superam, em muito, as terras efetivamente disponíveis. Os processos de ocupação já extrapolam as fronteiras e logo, logo, só haverá o que regularizar, e não mais o que destinar.

Agência executiva

No início deste mês, Lula editou um decreto para orientar a destinação das terras federais. “Começamos por dar o destino correto à terra, pois ela que sustenta a vida, o homem e a floresta. A União tem na Amazônia Legal nada menos do que 50 milhões de hectares de terras públicas. É o equivalente a uma Espanha inteira em meio à floresta. Não faz sentido que o Poder Público não dê um destino claro a esse verdadeiro país dentro de outro país”, afirmou o presidente, no anúncio da medida.

O decreto instituiu a Câmara Técnica de Destinação e Regularização Fundiária de Terras Públicas Federais Rurais, sob a coordenação do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA). Além do MDA, o órgão é composto pelos ministérios do Meio Ambiente (MMA) e dos Povos Indígenas (MPI), a Secretaria de Patrimônio da União (SPU), o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o Serviço Florestal Brasileiro (SFB), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e a Fundação Nacional do Povos Indígenas (Funai). Os ministérios da Justiça e Segurança Pública e da Igualdade Racial são membros consultivos.

Porém, a complexidade e a urgência da missão exigem mais que uma instância de articulação interinstitucional federal. Melhor seria fazer o mapa da situação de ocupação real dessas áreas de forma centralizada, sem prejuízo das ações em curso no âmbito de cada órgão. Ocorre que eles atuam segundo competências específicas e não dispõem de estrutura, recursos e versatilidade de atribuições para fazer o mapa completo. Da soma das ações, resultaria um levantamento fragmentado. O presidente deve considerar a possibilidade de criar uma agência executiva, com estrutura ágil e missão temporária, para fechar essa conta, coordenar esforços e mediar interesses sobrepostos, identificando a vocação de cada área a ser tratada por cada órgão.