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Vou começar este texto cometendo um erro: abrir um texto com dados. Desculpem. Neste caso, não há mais o que dizer. Só nos resta repetir os dados.

A pesquisa “Visível e Invisível: Vitimização de Mulheres no Brasil”, realizada pelo Datafolha a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e lançada no último 8 de março, fala da violência vivida pelas mulheres e das hipocrisia que define o enfrentamento dessa questão.

Conhecemos a estatística, nós mulheres. Nós a experimentamos. Somos esses números.

29% das mulheres entrevistadas, com 16 anos ou mais, disseram ter sofrido algum tipo de violência – verbal, física ou psicológica nos últimos 12 meses. Ao menos 16 milhões de brasileiras sofreram algum tipo de violência no período de um ano. Mas o número pode chegar a quase 20 milhões considerando o teto da margem de erro de 3 pontos percentuais.

E tem mais. Sabemos como este casos são subnotificados e sub-relatados pelas mulheres por inúmeras razões. Estamos falando de muitas Campinas, muitos Maracanãs. Que escala de grandeza queremos? Podemos pensar em qualquer comparação que nos valha. Se este número parece grande, pense novamente. Ele certamente é uma fração. Os dados só revelam o que nós ousamos revelar.

A pesquisa mostra que a violência que começa cedo e numa escala assustadora. Os dados indicam que 45% das adolescentes e jovens de 16 a 24 anos sofreram algum tipo de violência no período de um ano. Praticamente metade das jovens brasileiras.

Eu disse metade.

Dentre os dados, um é especialmente aterrador. A cada três brasileiras e brasileiros, dois afirmam ter presenciado uma mulher sendo agredida física ou verbalmente no último ano. Ou seja, somos todas e todos parte ativa nesse processo de produção e reprodução da violência. Dois terços de nós viram. Testemunharam o que as estatísticas já indicam há anos.

Ou seja, Brasil, somos algozes e vítimas e sabemos disso.

Há cerca de um mês e meio atrás, na noite de 4 de abril de 2017, a maior empresa de comunicação deste país, exibiu uma edição do Jornal Nacional que respondeu ao corajoso ato de solidariedade organizado pelas funcionárias da Globo, depois de uma denúncia de assédio dentro da empresa.

O programa mais nobre da grade entrou na casa de milhões de brasileiras e brasileiros e escancarou o óbvio: vivemos num país profundamente machista em que o assédio é regra.

Nós, mulheres, experimentamos todos os dias o que as estatísticas comprovam. Somos estes números. Mas, por um dia, porque uma mulher foi forte e rompeu o silêncio, nossa sociedade pareceu deixar de ser indiferente ao que somos e como estamos. Naquele dia, o Jornal Nacional pareceu nos ouvir. E nos responder a todas ao endereçar desculpas à figurinista Su Tonani. Desenhou-se uma silhueta de mudança que comemoramos, muitas de nós. Eu. Aquela foi uma noite feliz.

Existe um desafio que as novas experiências feministas pretendem encarar frontalmente: a apatia. A indiferença. Aquele Jornal Nacional pareceu uma vitória. Um round ganho numa luta que nos acostumamos perder de lavada.

Contudo, recentemente, lemos todas, estupefatas, a notícia de que duas novelas da emissora – que levou aquele Jornal Nacional ao ar, que afastou José Mayer de suas funções, que expulsou um agressor de um reality show diante do país todo em razão de uma agressão a uma companheira de programa – povoarão, em breve, o imaginário das brasileiras e brasileiros com histórias de falsas denúncias de assédio.

Diz-se que, mal intencionadas, as personagens usarão a rara oportunidade de ser escutadas ao denunciar o abuso sofrido para fins escusos. As personagens dessas obras alegarão violências mentirosas. Qual o problema de falar deste tema, desta maneira, neste momento – mesmo que se trate obviamente de uma obra de ficção?

Fecho os olhos e penso nos Maracanãs de mulheres violadas ano a ano. Sob o conhecimento e o silêncio cúmplice de dois terços de nós.

E penso no desserviço descomunal de trazer para a sala de estar desse país histórias que não representam os números que abrem este texto. Em especial neste momento de inédita sensibilidade de disposição de tantas e tantos de encarar o estado das coisas.

O primeiro estudo do FBI a respeito de falsas acusações de estupro é de 1997. Afirma que apenas 8% das acusações de estupro comprovam-se falsas. Estudos conduzidos nos anos seguintes concluem que percentuais seguem inalterados. E infinitas pesquisas oferecem dados ainda mais alarmantes: na maioria dos casos nos quais as acusações são consideradas falsas, o determinante é a avaliação feita pelos policiais responsáveis pelos casos. Indivíduos constituídos neste mundo, forjados com este entendimento machista dos papéis de gênero estamos lutando tanto para transformar. Portanto, podem até ser, ao cabo, verdadeiras essas poucas acusações supostamente falsas. E esses 8% tendem a ser uma fração ainda menor do todo.

Enfim, a expressiva maioria dos estudo sérios conduzidos no mundo mostram ser exceções que não merecem atenção de nenhum tomador de decisão. Narrativas que conferem protagonismo a falsas denúncias podem, enfim, distorcer a realidade num momento chave, alimentando a reação dos que rejeitam o novo normal, dos conservadores, dos que defendem o status quo, dos que não querem desafiar o sexismo estrutural brasileiro. Como? Naturalizando percepções equivocadas. Recarregando as baterias do velho normal.

A dramaturgia brasileira na televisão tem papel importante demais para arriscar estar do lado errado dessa disputa neste momento.

Mesmo que em nome da liberdade artística, que deve, sim, ser sempre defendida.

Não. A mulher quase nunca acusa falsamente um homem de agressão. Ela quase sempre a sofre escondida. Essa é a história que achamos que iríamos contar juntas a partir de agora. A nossa história.

Esvai-se a esperança. Vemos o backlash emergir de todos os lados. Ironicamente, neste momento, com o auxílio luxuoso da imaginação de grandes autoras mulheres. Confesso: me sobram uma certeza e uma dúvida.

A certeza de que seguiremos resilientes, como as feministas que nos precederam nos ensinaram. Resistiremos. A dúvida é: mexeu com uma, mexeu com todas mesmo? Toda força às mulheres que tecem as histórias contadas na TV brasileira. Minha fé reside em vocês, companheiras. Já vimos que, juntas, vocês movimentam mundos e podem muito. Vamos escrever mais uma nova página da luta pela igualdade e tentar reescrever essa sinopse? Porque senão, spoiler alert: nosso fim será trágico.

Espero ansiosa pelo próximo capítulo dessa novela.

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