Como era esperado o governador João Dória (PSDB) sancionou o equivocado Projeto de Lei 435/19, da deputada Janaina Pascoal (PSL), também conhecido como o PL da Cesárea. O projeto permite que os hospitais públicos realizem cesáreas eletivas, isto é, sem recomendação médica, a partir 39ª semana de gestação. Ele prevê ainda que nas maternidades públicas sejam afixadas placas informando as mulheres sobre seu direito a realizar a cesárea mesmo sem recomendação médica.

À primeira vista, a reação de muitas mulheres foi de apoio ao projeto, pois a deputada o defende em nome das mulheres negras e pobres que, sem plano privado de saúde, não teriam condições de acessar a cesariana nas maternidades públicas.

Ela evoca um conceito importante para as mulheres e o feminismo que é a autonomia. Para a deputada, as mulheres que usam o SUS seriam vítimas de uma “obsessão pelo parto vaginal”, o que além de interferir na sua possibilidade de “escolher” por cesárea, as colocariam em risco, bem como seus bebês.

Essa narrativa ganhou certo apoio. Nas redes sociais e mesmo nas ruas, fui várias vezes interpelada porque me colocava contra o projeto e questionada sobre o fato de que as mulheres no SUS, de fato, não têm os mesmos direitos que as mulheres que possuem convênio médico, isto é, não podem “escolher” pela cesárea.

Ora, não podemos ignorar esses questionamentos, mas temos de lembrar outros dois fenômenos importantes que as mulheres sofrem no Brasil: a violência obstétrica e a epidemia de cesáreas.

Na minha caminhada no legislativo, aprendi muito com as obstetrizes, doulas e militantes do parto respeitoso, além de especialistas. E todos citam que no Brasil prevalece uma cultura de patologização da gravidez e do parto, que tem justificado uma série de técnicas invasivas e intervencionistas – sem necessidades comprovadas cientificamente – em procedimentos de rotina como episiotomia, manobra de Kristeller, utilização de fórceps e hormônios para acelerar o trabalho de parto.

Somadas a outras condutas extremamente violentas e machistas temos um cenário em que a violência obstétrica é uma realidade que atinge uma a cada quatro mulheres, conforme pesquisa da Fundação Perseu Abramo de 2010.

Diante deste cenário não surpreende que as mulheres vejam na cesárea uma forma de escapar destas violências. O Brasil está em segundo lugar no ranking de cesáreas no mundo. No sistema privado de saúde, elas ultrapassam os 80%. Na rede pública, fica em 41,9%. A média nacional alcança os alarmantes 55%. E infelizmente essas altas taxas não significam redução da mortalidade materna.

Pelo contrário, a realização de cesáreas seguidas numa mesma mulher está associada a um aumento de complicações à sua saúde. Além disso, a literatura científica também descreve fartamente as implicações para a saúde do bebê, sendo sua adoção indicada apenas quando houver complicações médicas para um ou para ambos. Não é à toa, portanto, que a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda que a taxa de cesáreas não passe dos 15% do total de partos.

A verdade é que a deputada não está lá muito preocupada com a saúde das mulheres negras e pobres que ela diz defender, tampouco com seus bebês. Sua grande preocupação é atender aos interesses de órgão de classe que veem na luta contra a epidemia de cesáreas e a violência obstétrica uma afronta à sua autoridade.

Não é de surpreender que o conteúdo do PL se aproxima da resolução  2.144/16 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que dispõe justamente sobre a possibilidade de o médico realizar cesáreas eletivas a partir da 39ª semana de gestação. Em outras palavras, a resolução do CFM procura justificar as altas taxas de cesáreas nas maternidades privadas associando-as ao pretenso exercício de autonomia das mulheres.

Desde que protocolou o projeto, a deputada tem participado de debates em conselhos regionais de medicina pelo país que não disfarçam o seu entusiasmo. Além disso, está determinada a fazer uma lei federal. Para isso a deputada federal, Carla Zambelli (PSL) apresentou em junho o PL 3365/19 com a mesmíssima propositura.

A chegada do PL das Cesáreas ao Congresso coincide com a resolução do Ministério da Saúde que determinou a retirada do termo Violência Obstétrica de documentos e políticas públicas. Com essa iniciativa o Ministério assumiu a defesa dos interesses de setores da classe médica. A sua orientação nada mais foi do que uma adesão ao parecer nº  32 do Conselho Federal de Medicina que assim se posiciona: “violência obstétrica” é uma  agressão contra  a  medicina  e  especialidade  de  ginecologia e obstetrícia, contrariando  conhecimentos  científicos  consagrados,  reduzindo  a segurança e a eficiência de uma boa prática assistencial e ética.”

Tudo disso não deveria nos surpreender. Na campanha Bolsonaro e seus correligionários, e a própria Janaína Paschoal, usaram e abusaram dos estereótipos misóginos em relação a luta das mulheres por autonomia e igualdade de direitos.

Bolsonaro na campanha recebeu apoio explícito de médicos ligados a direções de conselho regionais de medicina nas redes sociais. Um ginecologista manifestou seu desejo de “retirar todas as esquerdistas que estão no Ministério da Saúde há anos”. Uma busca na internet mostra que Flávio Bolsonaro prestigiou a posse da nova diretoria do Cremerj, com direito a foto com arminha de fogo.

O efeito prático da entrada em vigor deste projeto deverá ser o aumento irresponsável no número de cesáreas realizadas no SUS no estado de São Paulo que aliado a insistência do Ministério de censurar o termo violência obstétrica, demonstram como em poucos meses desta triste era obscurantista tem sido destruídos avanços importantes na humanização do parto e atenção à saúde da mulher e bebê.

Juliana Cardoso é vereadora em São Paulo pelo PT, vice-presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança, Adolescente e Juventude e membro das Comissões de Saúde e de Direitos Humanos da Câmara Municipal de São Paulo.

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