Desde 25 de maio, o dia em que George Floyd foi vítima de abuso policial e morreu de parada cardiorrespiratória, houve vários protestos nos Estados Unidos. Milhares de pessoas, na sua grande maioria negros, tomaram as ruas das cidades mais importantes do país para protestar contra o racismo e as ações da força pública em relação à comunidade afro-americana.

Após semanas com o país pegando fogo, uma grande questão foi aberta sobre esse episódio: quem são as pessoas que iniciaram as ações violentas?

A direita norte-americana focou seus olhos em culpar a “esquerda radical” pela escalada de distúrbios e edifícios incendiados. O primeiro, é claro, foi o presidente Trump, que alegou que tudo foi culpa da Antifa, um movimento de ação antifascista que, ele argumenta, fez parceria com manifestantes de esquerda para criar o caos por meio de ações mais agressivas contra o governo. Porém, o Instituto de Pesquisa e Educação em Direitos Humanos encontrou 116 casos de pessoas vinculadas a grupos de extrema direita que infiltraram nos protestos em trinta estados e no Distrito Federal.

O ex-agente do FBI e comentarista da CNN, Josh Campbell escreveu, que em Minnesota “as autoridades estão monitorando supostos criminosos on-line, incluindo postagens de supremacistas brancos suspeitos que tentam incitar a violência”.

Mia Bloom, professora do Estado da Geórgia e especialista em violência política e terrorismo, escreve que as manifestações em homenagem a George Floyd foram infiltradas por nacionalistas brancos que aderem à ideologia aceleracionista e que pelo menos parte da violência e destruição – como claramente vistos nas telas de TV – foram perpetrados por esses extremistas.

Ela observa, por exemplo, que a manifestação em Atlanta, em 30 de maio, começou como uma manifestação pacífica em homenagem a Floyd – mas, por volta das 19h, “os dados demográficos da manifestação mudaram em tempo real na frente das câmeras”.

“A demografia de um grupo amplamente branco, jovem e destrutivo se encaixa mais com um movimento conhecido como aceleracionista do que o Black Lives Matter”, ela escreve, acrescentando:

“Os aceleracionistas, se você nunca ouviu o termo, são um subconjunto extremo do nacionalismo branco, cujo objetivo é provocar o caos e a destruição. O princípio básico do aceleracionismo argumenta que, como os governos ocidentais são inerentemente corruptos, a melhor (e única) coisa que os supremacistas podem fazer é acelerar o fim da sociedade semeando o caos e agravando as tensões políticas.” As ideias aceleracionistas foram citadas nos manifestos dos atiradores em massa – explicitamente, no caso do assassino da Nova Zelândia – e são frequentemente referenciadas em fóruns da web supremacista branco e salas de bate-papo”, explicou Zack Beauchamp.

Os supremacistas brancos que fingem realizar um protesto em homenagem a George Floyd no Facebook, para aumentar a violência em San Diego, postaram nas mídias sociais do BLMSD. O Black Lives Matter do São Diego, sabendo disto, alertou as pessoas a não irem ao que finalmente era um comício organizado da supremacia branca. As pessoas que compareceram às manifestações comentaram o fato de que os dados demográficos estavam errados, em lugares como Oakland, onde a maior parte da destruição foi perpetrada por jovens homens caucasianos. Isso inspirou não apenas as pessoas nas mídias sociais, mas também a reportagem na mídia para questionar adequadamente se isso é um forma de infiltração por elementos extremistas externos.

Especialistas em violência política compartilharam histórias nas mídias sociais de que o homem não identificado com uma máscara de gás carregando um guarda-chuva aberto (apelidado de #umbrellaman) promovendo saques e incêndios criminosos em 27 de maio na Auto Zone[L1]  (Uma rede de lojas de venda de peças para carros) não era necessariamente um manifestante, mas poderia ser um agente provocador ou membro da polícia. Em vídeo postado no YouTube, enquanto este homem esmagava janelas com um martelo, manifestantes no local o acusavam de ser um estranho e começaram a filmar.

Uma reportagem da Vice News também descreveu a infiltração das manifestações de Floyd por aceleracionistas e nacionalistas brancos, e Bellingcat documentou o envolvimento nos protestos de um movimento amplamente branco e de extrema-direita chamado Boogaloo [seguidores de Boogaloo, que vêm à demonstração usando camisas havaianas e carregando rifles de assalto, aderem em grande parte à ideologia aceleracionista. Os seguidores de Boogaloo também se tornaram uma característica proeminente dos protestos].

A polícia identificou Brian Jordan Bartels, de 20 anos, de Allison Park, Pensilvânia, como aquele que acendeu o pavio da escalada da violência em Pittsburgh, um dos muitos exemplos de protestos pacíficos contra a violência policial que provocaram um pandemônio. E embora o coração desses protestos fosse uma demanda real por justiça, eles também atraíram uma variedade de pessoas com outras demandas e agendas que cooptaram o momento, acelerando o surto social de um país envolvido em uma pandemia que deixou mais de 40 milhões de pessoas sem trabalho.

Também houve coalizões multirraciais que marcharam pacificamente. Mas em algumas cidades, autoridades locais alertaram que manifestantes negros se esforçam para manter a paz nos protestos, onde jovens brancos se juntaram à multidão, aparentemente determinados a causar estragos.

A morte de George Floyd não ocorre no vácuo, mas em um contexto em que as comunidades negras são constantemente sujeitas à vigilância policial excessiva. Julian Zelizer, historiador político da Universidade de Princeton, observa que “as pessoas afro-descendentes nos Estados Unidos vivem com medo ‘porque se sentem vulneráveis àqueles que deveriam protegê-las’”.

“Os negros têm 3,5 vezes mais chances do que os brancos de morrer nas mãos da polícia quando não estão atacando ou têm uma arma. Os adolescentes negros têm 21 vezes mais chances do que os brancos de serem mortos por policiais. Matam um negro a cada 40 horas”, escreveu Rashawn Ray, pesquisador do Brookings Institution, um think tank de Washington DC.

Pandemia

Os afro-americanos sofrem desproporcionalmente mais do que os brancos com a doença do coronavírus. Eles estão ficando mais doentes e morrendo a taxas mais altas do que o resto. Eles também estão mais expostos por causa do tipo de trabalho que realizam, porque são de primeira necessidade: assistentes de saúde, motoristas de ônibus, funcionários de lojas ou correios. Todos esses trabalhos essenciais são frequentemente cobertos por pessoas negras, colocando-os em contato mais próximo com a doença. A pandemia piorou todos os problemas derivados do racismo no país. Esses trabalhadores não têm acesso à atenção médica, não podem faltar ao trabalho caso se sentam doentes, não recebem o salário no caso de se ausentar do serviço, não há um sistema de auxílio com creches para cuidar dos seus filhos caso sejam contagiados. Em entrevista para CNN, Julian Zelizer diz que acredita que a pandemia desempenhou um papel enorme no fomento de protestos nas ruas, mesmo que não seja sua causa principal. “Protestos historicamente violentos ocorrem no verão, quando está quente e as pessoas se sentem desconfortáveis e tensas, especialmente se moram em lugares lotados. Não tenho dúvida de que essa pandemia provocou um profundo mal-estar. Tenho certeza de que isso alimentou a raiva de como a sociedade norte-americana funciona e acho que o medo de perder empregos deixou muitas pessoas frustradas, prontas para protestar”, diz.

Mesmos assim, ninguém acredita que a comunidade afro-americana seja inteiramente responsável pelos atos de violência, os incêndios e a destruição provocadas nessas últimas semanas durante os protestos pela morte do cidadão negro George Floyd. Não que o povo preto nos Estados Unidos não tenha argumentos para se revoltar, como aconteceu  em LA no ano 92. Porém, as suspeitas de um “demônio branco”, do velho e tradicional supremacismo branco, que cresceu na era Trump, oportunamente infiltrado para deturpar os protestos perante a opinião pública são cada vez maiores. Sabemos que as estruturas sociais e políticas do Brasil e os Estados Unidos são análogas.

A desigualdade racial, o racismo e os surtos extremistas foram se desenvolvendo historicamente quase que em paralelo. De fato, hoje Brasil e Estados Unidos têm um cenário político com muitas similitudes. Bolsonaro é conhecido no país do norte como o “Trump tropical”, uma forma caricata e pejorativa de conceituar o presidente do Brasil. As manifestações do Black Lives Matter ecoaram aqui e se juntaram aos movimentos pela democracia com o nome de “Vidas Negras Importam”. Esses movimentos terão que ter muito cuidado diante da enorme possibilidade de que grupos de extrema direita queiram se infiltrar nas manifestações com o fim de depreciar seu valor perante a opinião pública. O Brasil padece de uma doença aguda de “realidade distorcida”, o que faz do país o cenário mais fértil para que as reivindicações mais legítimas possam ser boicotadas. É preciso então estar alerta, registrar e entender as origens de todo episódio violento que possa acontecer nos próximos atos em prol da democracia.