Imagem: Cris Vector / Design Ativista

Poderíamos dizer que desde que existe cultura, desde que existe a língua, ainda na sua expressão mais rústica, estamos tentando definir o que é a verdade, o que é a realidade, o que é religião. O que consideramos religião? O que permitimos, normatizamos, avaliamos como religião e o que consideramos uma ofensa, uma profanação contra a nossa espiritualidade mais sagrada e imaculada?

Para Friedrich Nietzsche, a natureza, nós mesmos e tudo o que nos rodeia é mutável, irregular. Porém, nós precisamos estruturar tudo isto a partir de conceitos, a partir da linguagem, que é uma soma de conceitos e abstrações semânticas e semióticas. Precisamos preservar a nossa saúde mental, a nossa ideia de que faz algum sentido esse nosso passo pela existência consciente através dessa construção de verdades, de afirmações científicas, metafísicas, religiosas.

Cabe destacar que Nietzsche é talvez um dos pensadores de quem mais tem abusado o universo acadêmico e não acadêmico no geral. Talvez a forma mais honesta de ler esse autor é evitar conceitualizações globais da sua obra, considerando o impreciso que é afirmar que existiu nele uma vontade linear de criar uma cosmovisão que o definisse como filósofo e escritor. Claro que isto não significa negar a sua enorme, gigante influência no pensamento moderno e pós-moderno. Sua definição de verdade ainda não foi superada. Para Nietzsche, a realidade não é estática, porém mutável e complexa, a verdade não pode ser outra coisa que uma intuição, um tipo de acordo social, intuitivo, que realizamos a partir da necessidade que cria laços com outros humanos, evitando assim a perigosa vastidão que nos rodeia. Mas essa verdade também não é estática, ela muda, se transforma, porque a realidade muda, nosso olhar muda junto. O fato da gente já não creditar que a terra é plana como acontecia na Idade Média (e em alguns casos “peculiares” do presente), ilustra perfeitamente o que foi dito anteriormente.

Mas, vivemos uma época atravessada pela pós-verdade. Onde já esse acordo intuitivo de dilucidar as entranhas do real, passa a um segundo plano. E o que importa agora é o que se ajusta ao meu parecer. A pós-verdade prioriza nosso emotivo por cima do nosso perceptivo e do objetivo racional. E quando entendemos isto, a resposta aos resultados das últimas eleições no Brasil chegam mais claras e consistentes. Fake news e pós-verdade têm uma ampla, profunda ligação. O triunfo das fake news não teria sido possível se não existisse esse alvoroço emocional que o Brasil vinha experimentando a partir do show e da manipulação que a mídia tradicional fez dos acontecimentos políticos do país, sobretudo durante os governos do PT. Não importa se uma mamadeira de piroca é algo que obviamente é impossível de ser sustentando como um fato verdadeiro. O que importa é que meu desejo é que isso exista, para que eu possa convalidar esse ódio que me excede, que excede meu racional. Um ódio a algo que não compreendo, mas que sinto que ameaça minha existência e os meus valores, os valores que estruturam minha vida cotidiana. Ódio, irracionalidade, autoritarismo, são os ingredientes necessários para o triunfo do que conhecemos como fascismo. Para entender um pouco mais sobre tudo isso, ninguém melhor que Viviane Mosé. Filósofa, Psicóloga, Poeta, palestrantes e uma das pensadores mais importantes que o Brasil tem hoje.

Nos últimos anos vem crescendo no Brasil os pedidos de censura a exposições artísticas e palestras com intelectuais, escritores e pensadores das diferentes áreas. Hoje essa censura tem caráter institucional, como o que aconteceu na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, e com as atitudes e declarações de Bolsonaro a respeito, sobretudo, da curadoria que aprova filmes através de Ancine. Como pode a psicologia e ou a filosofia analisar esse comportamento numa sociedade pós-moderna com uma grande abertura cultural e um grande fluxo de informação, como é o Brasil?

Vivemos tempos difíceis, marcados pela passagem de um mundo fundado na matéria e no poder repressivo, por uma sociedade virtualizada, fundamentada na linguagem e nos conceitos, marcada por um poder disciplinar. O poder repressivo é um poder visível, que te corta, te prende e te tortura. O poder disciplinar é um poder invisível, que nos torna cada vez mais fracos. Vivemos nesse tempo, onde nos tornamos cada vez mais fracos, e onde a vida perde absolutamente o valor. Pessoas em vida e valor são facilmente manipuladas. A alegria é revolucionária, esse é o caminho que nós precisamos seguir no contemporâneo. Mas, ao contrário, estamos cada vez mais deprimidos e tristes, cada vez mais manipulados, cada vez mais dominados por fake news. Vivemos a guerra da informação. O que nos mata, o que nos tortura, o alto índice de suicídio de depressão, de automutilação, mas também o alto índice de agressividade, de ódio virtual, de ódio presencial, de assassinatos, de homicídios, de feminicídios, de ataques a homossexuais, transexuais e transgêneros. Tudo isso é produto de uma guerra, a guerra da informação. Nossa terceira guerra mundial é uma guerra absolutamente visualizada. Isso é o que caracteriza nosso tempo.

A alegria é revolucionária, esse é o caminho que nós precisamos seguir no contemporâneo.

O Brasil, apesar de ser um país marcado pelo corpo e pela alegria, possui hoje altíssimos índices de depressão infantil, adolescente, e de jovens também. O Brasil sempre teve uma ferida aberta, exposta, que é não ter assumido a sua história, e o poder público não ter tido uma relação com a gestão das cidades. De modo corajoso e direto, nós brasileiros sempre preferimos deixar isso para lá, alguém cuida. Não temos uma atitude cidadã em relação ao estado, nem em relação à gestão pública, nem ao cuidado com a coisa pública. Quebrando as praças, e ao contrário de cuidar, depredando. O que é público sempre foi considerado por nós como de todos, e por ser de todos é de ninguém. Temos várias outras feridas, outros abismos que temos que enfrentar. Hoje que tudo cai no mundo contemporâneo, cada país lida com sua própria ferida. A ferida do Brasil está exposta, o poder público foi entregue a ninguém.

Em 2003 o Brasil abraçou massivamente um projeto de país inclusivo, laico, solidário. Mesmo entendendo o certo degrau de inconsciência das massas na hora de eleger um líder, e fugindo da explicação cíclica da história dos povos nos estados modernos, que fatores, você acha, fizeram com que as classes populares contribuíssem na criação desse estado semievangélico que temos hoje com o Bolsonaro como líder?

Como eu disse, vivemos uma guerra, a guerra da informação. O Brasil é um país que tem um passivo muito grande com relação à educação. Foi apenas no final do governo Fernando Henrique, mas especialmente e massivamente no governo Lula e no governo Dilma, que a educação foi considerada como um valor no Brasil. A educação não era um valor para população, era um valor para a classe média que queria ascender para classe alta. Era uma moeda de troca e de ascensão social. A educação passou a ser uma ferramenta de vida e de inclusão com o governo Lula. Isso foi marcante, e ao mesmo tempo, revolucionário. O governo Lula investiu no extremo brasileiro, no espaço de abandono. Todos sabemos o abismo que existe no Brasil entre as classes. É vergonhosa a desigualdade social no Brasil. Mas ela nunca foi olhada.

O governo Lula investiu massivamente nas classes populares, em educação, em saúde, em saneamento. Essa atitude fez com que grande parte da classe média brasileira e também classe alta, mas especialmente essa classe média que busca ascensão, fez com as pessoas dissessem que elas não tinham mais agora os seus escravos, os seus serviçais, porque agora essas pessoas tinham emprego. Então você não tem mais alguém que cuide de um jardim, pra quem você dá um troco, né, agora essas pessoas têm emprego. Isso provocou ódio numa classe no Brasil. Não na maioria, uma parte pequena da população. Isso causou muito ódio nas classes altas também. Eles não podiam acreditar que o governo pudesse virar os olhos para as classes populares. Provocou uma reação que a gente vê hoje no Brasil. Essa reação não é das classes baixas.

As classes baixas, elas são vítimas da manipulação da informação. Num país que tem um passivo tão grande com educação, nós ainda não conseguimos cobrir essa brecha, mesmo com o alto investimento financeiro e intelectual feito no governo Lula. O Brasil tem escolas inacreditáveis, corajosas, ousadas, mas que não atingem ainda todo o território. Especialmente porque esse trabalho foi cruelmente ceifado no governo Dilma, não por Dilma, mas por um Congresso Nacional disposto a derrubá-la e agora nós vivemos literalmente imensos retrocessos nessa área.

Nesse cenário que eu acabo de descrever, as fake news têm um efeito devastador. Fake news com altíssima qualidade de imagem, com altíssimo investimento financeiro. E nossa população ficou refém nas últimas eleições, e continua refém. As bolhas que surgem da sociedade horizontalizada estão sendo utilizadas por quem de fato melhor usa a rede hoje, que é o crime, o crime comum, o crime político. E o crime que também é forçar o consumo, aumentar o consumo, isso também é um tipo de crime que se comete no mundo contemporâneo, na guerra que a gente vive.

Então, o Brasil foi vítima disso tudo, elegendo o Witzel no Rio de Janeiro. Com uma margem que a gente tem clareza que não é possível… uma pessoa crescer 30 pontos ou 20 pontos em 48 horas… enfim a gente sabe que tudo isso é produto da manipulação da informação. Eu vejo essa situação como? Esse Brasil fragilizado por uma educação que ainda não conseguiu atingir a população, especialmente no sentido crítico, humano, de uma inteligência viva, capaz de se livrar desses abismos. E essa população que tá respondendo desse grupo que a manipula. É uma manipulação ordenada, infelizmente. Sei que isso deixará marcas eternas no Brasil, porque o que o que havia no brasileiro de pior, foi altamente ressaltado. Não que não sejamos isso que estamos sendo hoje, não. Sempre fomos de algum modo preconceituosos, racistas, fascistas. Tudo isso esteve sempre presente, de algum modo. Mas nessa última eleição a essa manipulação da informação pegou o que a gente tem de pior e o iluminou, fortaleceu, multiplicou, infelizmente.

Foto: Mídia NINJA

Quais afetos são mobilizados quando se agigantam movimentos de autoritarismo religioso?

Eu não creio que nosso problema seja de autoritarismo religioso, mas de manipulação religiosa. A manipulação religiosa segue os mesmos princípios das fake news. Inclusive, a manipulação religiosa é muito próxima da manipulação política. E essa manipulação das fake news no Brasil que tem uma grande base da população vítima de manipulação religiosa, isso é bombástico, isso determinou as nossas eleições. Eu não creio que estejamos caminhando para o autoritarismo religioso, mas para uma manipulação cada vez mais virtual da informação, inclusive religiosa, que se utiliza dessa população frágil conceitualmente como é o caso do Brasil.

Como podemos explicar, da psicologia, a necessidade das pessoas abraçarem imaginários simbólicos para a explicação do seu mundo cotidiano?

As pessoas se apegam à ilusão, e chamam isso verdade. Não é apenas a manipulação religiosa que nos manipula. A manipulação científica também nos manipula. A ciência está num grau elaboradíssimo, complexo, em relação às medicações psiquiátricas. Atingimos quase a perfeição da psicofarmacologia, temos medicação para tudo. Isso é uma conquista da ciência, mas esta é a maior manipulação pelo qual passamos hoje. Uma população vítima de medicação psiquiátrica, passiva em relação aos conflitos políticos porque dopada, é incapaz de reagir à manipulação de um dos maiores mercados que é o da Indústria farmacêutica, e nos vimos reféns de uma compra cotidiana que se chama alegria. Compramos alegria, compramos ação. Diminuindo ansiedade estamos apartados de nós mesmos. Este é o ser manipulado hoje em todo o mundo, não necessariamente por religião.

Não acho que a religião seja de fato nosso maior problema. Nosso maior problema é a nossa impotência diante da vida. A incapacidade de lidar com o sofrimento. Que há manipulação religiosa, eu não tenho a mínima dúvida disso, mas ela não é a única, e talvez não seja a maior, nem mesmo no Brasil. Vejo pessoas de todas as classes sociais acreditando que o Lula é líder de uma organização criminosa. Tanto quanto as classes mais baixas acreditam que a vacina mata e que a Terra é plana.

Uma população vítima de medicação psiquiátrica, passiva em relação aos conflitos políticos porque dopada, é incapaz de reagir à manipulação de um dos maiores mercados que é o da Indústria farmacêutica, e nos vimos reféns de uma compra cotidiana que se chama alegria.

Vivemos manipulação de todos os tipos, e isso é numa sociedade que se desintegra e que perdeu o valor da verdade. A crise da Verdade gera esse caos. Mas a verdade já devia ter caído há mais tempo. Porque a verdade é o modo como a ciência manipula. Não se esqueça que há uma luta no Brasil hoje para acabar com universidades públicas. As universidades públicas são espaços de livre docência. De livre pesquisa, de livre produção de conhecimento. “Livre” não totalmente, né? Sempre tem algumas limitações. Mas, as universidades cujas pesquisas são patrocinadas pelo mercado servem somente ao mercado. O interesse em acabar com as universidades públicas é o de ter o controle sobre o saber, e esse saber vai ser vendido para essas indústrias que finalmente nos manipulam. Então estaremos produzindo saber que nos manipula. Esse é um poder que ninguém tá prestando atenção e ele não é um poder religioso o cristão.

Quais as relações entre o platonismo e a anti democracia que está embutida nesse tipo de talibanismo neopentecostal que vivemos hoje no Brasil? 

O cristianismo, diz Nietzsche, é um platonismo para o povo. Antes do cristianismo já existia a ideia de verdade. A verdade é aquilo que nos guia, porque ela é o princípio de tudo. Ela é o princípio de toda ação, única, indivisível. Sempre foi e sempre será idêntica a si mesma. Substância, base, substrato de todas as coisas, e princípio de toda ação. Essa ideia de verdade que nasce com os gregos que é o ser e que sustenta toda a manipulação do discurso até agora é que desaba. Esta mesma ideia que desaba, que é de verdade.

A verdade sempre foi um modo de manipulação dos corpos, porque quem detém as leis de cientificidade, ou seja, as leis que determinam o que a verdade é, é quem manipula, e por isso quem manipula o mundo e o conhecimento não é só a religião. A religião é um modo de conhecimento que manipula. Por isso, o cristianismo é platonismo para o povo. Mas nós estamos falando a mesma coisa. Mesmo porque a base da ideia de verdade grega é a que vai sustentar o cartesianismo e a ciência lá adiante, mas essa é a mesma ideia que sustentou o cristianismo. Deus também é o único, idêntico a si mesmo, princípio de todas as coisas. Sempre foi e sempre será. A ideia de verdade é Idêntica à ideia de Deus.

De acordo com a história, ocidental e oriental, quais foram as medidas eficazes para arrefecer os efeitos do autoritarismo religioso?

Hoje essa ideia cai. De verdade. E com ela toda estrutura civilizatória. O Nietzche avisou isso no final do século 19. Por isso diziam que ele era pessimista. Ele propunha a transvaloração, a transvaloração de todos os valores. E hoje vivemos a transvaloração de todos os valores, só que ao invés de guiarmos essa transvaloração, é ela que nos guia em forma de violência, em forma de dor.

Isso necessariamente vai passar. Novos modos de ordenação já existem, que não são exatamente o da verdade. E essa nova razão, este novo pensamento, mais múltiplo, mais plural, plural em rede, é capaz de atender a maior reivindicação das pessoas no mundo hoje, que é o espaço para a diferença. Isso é o que o mundo quer.

A visão retrógrada já perdeu. O mundo nunca mais voltar ao que era. Nunca mais diremos “sim senhora”, “sim senhor” para nossos pais. Nunca mais seremos opostos masculino e feminino.

O que a gente chama de direita no mundo hoje cai, desaba diante de nós, por isso se reorganizam em bloco e tentam tomar o poder. Mas a visão retrógrada já perdeu. O mundo nunca mais voltar ao que era. Nunca mais diremos “sim senhora”, “sim senhor” para nossos pais. Nunca mais seremos opostos masculino e feminino, pelo contrário, masculino e feminino se desgarraram dos corpos e hoje podem ser acessados por qualquer pessoa. Homens e mulheres usam masculino e feminino como lhes convém. Isso é o contemporâneo. Isso nunca mais vai voltar. E esse ódio de um grupo que está perdendo o poder, que era quem ocupava o topo de uma pirâmide que desabou em rede, essas pessoas, esses núcleos, esses centros de poder já perderam a guerra. Por isso voltaram de forma tão violenta.

O problema é a passagem desse modelo. O problema é passar por essa transição. É isso que é a maior angustia. Por isso que a minha dica é sempre, nesse momento, de transição, precisamos favorecer os corpos, alegria, dança, música, sexualidade. Precisamos seguir, continuar seguindo rumo à liberdade dos corpos. A proliferação da vida, a intensificação e alegria de viver. Temos que continuar nessa direção, porque um povo manipulado, é um povo triste deprimido doente suicida.

*Com colaboração de Paulo Ferrareze Filho.

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