António Costa foi muito eficaz a descredibilizar a solução que lhe deu estabilidade e a cadeira de primeiro-ministro durante seis anos mesmo estando em minoria

Nunca fui adepta da fulanização desnecessária de resultados eleitorais. Em primeiro lugar, porque não faz parte da cultura política da esquerda: o partido a que pertenço não elege líderes, mas listas e projetos, naturalmente encabeçadas por quem coordena e protagoniza a direção coletiva; não elege presidentes, mas direções colegiais, que definem a orientação política sem reconhecer qualquer prerrogativa especial ao seu coordenador ou coordenadora. Em segundo lugar, porque não reconheço vantagem democrática em modelos de eleição direta e ou primárias que desligam a escolha da cara da decisão sobre a linha política. E em terceiro lugar, porque o excessivo individualismo é permeável ao facilitismo dos bodes expiatórios.

É por estas três razões, e por achar que Catarina protagonizou sem falhas uma campanha difícil, que discordo da conclusão do balanço eleitoral em que Boaventura Sousa Santos apela à demissão de Catarina Martins.

Não está em causa o direito de Boaventura a ter e a publicar uma opinião sobre qualquer partido, ou sequer o mau gosto da expressão histórica com que o escolheu fazer. O que não pode passar sem desmentido é a atribuição de alguma autoridade sobre o Bloco de Esquerda a uma personalidade que não a tem, que já declarou o seu apoio a vários outros partidos, que votou no Partido Socialista em 2011, que foi mandatário do Livre em 2015, que foi nosso adversário em 2022, que não poupou sequer nos elogios a António Costa.

Com todo o respeito pela sua obra e pelos temas em que é especialista, nesta matéria – ou outra que diga respeito à vida interna do Bloco de Esquerda –, a opinião de Boaventura acumula com a de qualquer comentador de domingo, aos quais se aplica o princípio democrático de que “cada um é seus caminhos, onde Sancho vê moinhos D. Quixote vê gigantes.”

Esclarecida esta pequena questão, todos os contributos serão necessários para que o país faça um balanço dos resultados eleitorais relativamente inesperados da noite de domingo. Parte desse balanço é a radicalização da direita, que explica a resistência ao voto útil no PSD e ameaça a saúde democrática do país. Outra parte é a derrota da esquerda e a transferência maioritária desses votos para o Partido Socialista.

Sobre esta última, não há forma de contornar duas conclusões óbvias: primeira – o país não queria um governo de direita musculado pela participação das suas formas mais extremistas; segunda – para o evitar os eleitores de esquerda preferiram não arriscar a possibilidade de não renovação de uma geringonça.

A partir daqui há três questões sobre as quais importa refletir. A primeira, interna, é que partimos para esta campanha com o objetivo de esclarecer as razões profundas do chumbo do orçamento, mostrar como era prioritário alterar a legislação laboral, denunciar os perigos de um PS com poder absoluto, e falhámos. O problema nasceu quando fomos empurrados para a situação insustentável entre aprovar um mau orçamento e ou ceder à chantagem da instabilidade, mérito da comunicação do PS e da sua boa relação com Marcelo Rebelo de Sousa.

A segunda questão – amplamente referida por todos os comentadores mas ainda sem consequências – é o papel das empresas de sondagens nos resultados eleitorais ao convencer toda a gente com um empate técnico que não existia.

É verdade que para fazer face ao medo da direita bastaria uma maioria de esquerda igual à de 2015. Mas – e esta é a terceira questão – António Costa foi muito eficaz a descredibilizar a solução que lhe deu estabilidade e a cadeira de primeiro-ministro durante seis anos mesmo estando em minoria.

O resultado é a maioria absoluta que a maioria do povo aparentemente não queria mas que não conseguiu evitar. Muitos de nós lamentamos que assim fosse, mas também há quem esteja satisfeito. Além obviamente dos dirigentes do PS, chamo a atenção – e com isto termino – para a lista dos que se consideram satisfeitos com os resultados eleitorais:

José Luís Arnaut, ex-ministro e militante do PSD, que está feliz por poder fazer os seus negócios sem “as meninas do Bloco a chatear”; as confederações patronais, cuja satisfação se traduziu no título do Expresso “Geringonça fora, dia santo para os patrões”; as agências de rating, que em comunicado conjunto celebraram o fim da influência dos partidos de esquerda; e até alguns banqueiros, como o líder do BPI, que disse que a maioria absoluta “traz vantagem”… para quem?

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