Os melhores romances, contos e novelas aprofundam e complexificam nossa visão da realidade. Eles causam um efeito fundamental para todos os que amam o conhecimento: a descompactação do mundo. Boas obras de ficção ajudam a dissolver visões blocadas, a quebrar preconceitos e a fragmentar narrativas totalizadoras. Mesmo quando se propõem a fazer o contrário. Isso ocorre porque na literatura funciona um mecanismo que o escritor Italo Calvino (1923-1985) identificou em seu livro “Seis propostas para o próximo milênio”: a ficção produz conhecimento através da “descompactação”.

Já vou falar sobre isso. Primeiro, queria dizer que saber como as narrativas são criadas não interessa apenas à literatura. Também não só ao cinema, ao teatro, às artes sequenciais (quadrinhos, games etc ). Entender qual visão de mundo está por trás da estrutura de um romance ou de um filme, como está sendo narrada e foi trabalhada sua linguagem, tudo isso ensina – a quem lê e escreve – não só literatura, mas também muita filosofia, psicologia, comunicação, antropologia, sociologia etc. E o contrário também ocorre. Através da literatura, esses campos qualificam o conhecimento de suas próprias narrativas de como suas próprias histórias foram criadas, por quem, por que e para quê: através do mecanismo da descompactação.

O que significa isso? É o seguinte: segundo Calvino, para conhecer precisamos diminuir a compactação artificial da realidade, que é formada pelas narrativas tradicionais (e massificadoras de mercado). Vou dar um exemplo: quando alguém diz “o Brasil é assim, o brasileiro é assado”, essa é uma ideia compactada, por que nem o Brasil nem o brasileiro são um todo monolítico, compactado.

O Brasil e o brasileiro do Acre, por exemplo, não é o mesmo da Bahia ou de São Paulo. É preciso descompactar a ideia de Brasil para compreender algo mais profundo sobre o próprio Brasil. E sobre nossa participação, no Brasil, como brasileiros.
Se alguém diz: a “Bahia é assim, os baianos são assado”, também está incorrendo numa narrativa generalizadora, abstrata, distante e muito provavelmente incorreta. A Bahia do Sertão é e não é a Bahia do Recôncavo, de Salvador ou do Sul. E mesmo em Salvador os soteropolitanos não são os mesmos comparando-se o Jardim Apipema ou Ondina com, por exemplo, o bairro do Subúrbio.

Me sigam… Há três anos, numa aula de Escrita Criativa com estudantes do bairro do Subúrbio (sim, tem um bairro com este nome, diferente do que acontece em outras cidades), numa sala com 20 alunos, debatemos o fato de que nem mesmo o Subúrbio era o mesmo para todos aqueles estudantes. Uns moravam de um jeito, outros de outro. E mais: quem descompactasse um pouco mais chegaria ao fato de haver uma enorme diversidade entre alunos naquela sala de aula! Baianos, soteropolitanos, mas tão diferentes de diversos outros, mesmo os dali de perto. Dentro desse grupo bem menor, e ao olharmos para apenas um indivíduo, podemos inclusive ter uma impressão compactada e inadequada dele, feita de fora, por abstração.

Por isso a literatura é importante. Ela é a arte do concreto, das imagens, dos gestos, dos conflitos internos, e até dos contrapontos que cada um de nós temos em relação a nós mesmos. Por isso a escrita criativa se interessa pelo caráter único de cada personagem. E mais que isso: ela se interessa não só pelo que aquela pessoa é como também pelo que ela acha que é e pelo que também os outros acham que ela é, o que elas podem ser!

A escrita criativa ou literária trabalha nessa unicidade e, ainda mais difícil!, não de maneira estática. Busca mudança, evento, transformação, senão da personagem na história, da atitude da personagem diante do conflito, como diz o professor Assis Brasil, em “Escrever Ficção – Um manual de criação literária”. Ou seja: a literatura e os livros são fundamentais porque nos ajudam a olhar o mundo com mais complexidade: mais exatidão, leveza, multiplicidade, diversidade, rapidez e com mais consistência.

São essas as seis propostas de Calvino, fundamentais para o escritor, para o leitor e para qualquer um que queira um Brasil e um mundo mais diverso e menos compactado em ideias preconcebidas, abstratas e arbitrárias sobre o mundo. Daí a importância da literatura bem feita e seu método de descompactação. A literatura e os filmes quando mal-feitos operam ao contrário: compactam e estereotipam o mundo em histórias com estruturas massificadoras, personagens vagos, sem vida própria, abordagens preguiçosamente compactadas, linguagem e finais óbvios. Essas histórias podem parecer inocentes, mas no fundo não são. É pela manipulação de generalizações e estereótipos que se reproduzem visões da realidade e representações de mundo. Também se inculcam desejos heterônomos. A escrita e a leitura de longos encadeamentos lógicos e estéticos nos capacita inclusive para não ser manipulados pelas simplificações do pensamento blocado, compactado. O Mundo não é simples. A melhor forma de abordá-lo é diversa e complexa. E sobre isso a literatura tem muito o que dizer.

 

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