O ex-técnico pode ter, como ele próprio afirma, “uma lembrança muito vaga” do episódio, mas estou certa que a memória é ainda vívida para a vítima

A Constituição Federal de 1988 determina os crimes imprescritíveis. São eles o racismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático. Para além desses, a Carta Magna ainda define as tipificações penais não sujeitas à fiança e insuscetíveis de graça ou anistia. A lista inclui “a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.”

O estupro está no rol dos crimes hediondos e, portanto, é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia, mas ele prescreve. Recentemente um caso, mais uma vez envolvendo um jogador de futebol à época, veio à tona. A indignação tomou conta das redes após a contratação de um técnico que, em 1989, foi condenado a 15 meses de prisão pela Justiça suíça por atentado violento ao puder com ato de violência. Não cumpriu a pena pois não houve extradição.

As declarações do agora ex-técnico são elucidativas e naturalizam um comportamento que apenas décadas mais tarde começou a ser mais duramente condenado, dando mais segurança para que as vítimas denunciassem. Disse ele que “a tal menina, a Sandra Pfaffli, era do tamanho de um armário e não tinha carinha de menina, não.” E ao se desligar da função recém assumida alegou que se afastava pela família. Nenhuma palavra de arrependimento, de conscientização para os atuais jovens jogadores de futebol para que não tenham o mesmo comportamento. “Não é pelo o que eu queria. Se espera uma vida inteira para estar aqui. É um pedido da minha família.”

Do outro lado, 36 anos após o episódio ocorrido na Suíça, alguém se pergunta sobre a vítima? Sobre a dor, o trauma e as consequências que não prescrevem nunca? Como convive com os graves transtornos mentais fruto de um ato violento? Como é constantemente julgada, revitimizada e até responsabilizada? O ex-técnico pode ter, como ele próprio afirma, “uma lembrança muito vaga” do episódio, mas estou certa que a memória é ainda vívida para a vítima de apenas 13 anos.

Na Argentina, os coletivos feministas pressionam pela aprovação de uma lei conhecida como “Derecho al Tiempo”. O ponto central é a imprescritibilidade dos crimes sexuais contra crianças e adolescentes. Na Câmara dos Deputados tramitam propostas de emenda à Constituição neste sentido, mas o avanço é lento e a composição ainda bastante conservadora da Casa impede um debate mais amplo.

Os agressores contam ora com a não denúncia, ora com a demora da Justiça em julgar os casos. E suas vidas prosseguem sem qualquer alteração até que o crime prescreva e a pena não mais lhes alcance. Se defendem atacando a vítima e, não raro, apontando erros do processo penal. Vão até o fim afirmando que “não houve estupro como falam, como dizem as coisas. Houve uma condenação por ter uma menor adentrado o quarto. Simplesmente isso. Não houve abuso sexual, tentativa de abuso ou coisa assim”.

O advogado de defesa à época é taxativo ao dizer que, em 1989, não foi considerado estupro, mas que hoje seria assim entendido. E seria pela luta das mulheres. Pelos inúmeros movimentos e campanhas que deram visibilidade ao tema. Pela coragem das que denunciaram. Apesar dos ataques, da vergonha e do temor de que a Justiça lhes retirasse a condição de vítimas para beneficiar seus agressores.

O mundo mudou. A sociedade amadureceu. É preciso avançar no debate da imprescritibilidade para esses crimes contra crianças e adolescentes. Condenamos que uma menina de 13 anos (como o caso de 1987 na Suiça) não tenha, pelo menos, o direito à justiça. Porque o direito a uma vida livre das consequências da agressão, ela já perdeu.

 

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