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Colocaram um fuzil na estátua de Michael Jackson e o Jornal Extra lança uma “Editoria de Guerra” Não poderia haver imagem mais simbólica para o Rio, vitrine de um projeto fracassado de segurança pública. Mas a cidade sonho/pesadelo inventa saídas

Meteram um fuzil no peito da estátua do Michael Jackson que fica na favela Santa Marta e pululam matérias indignadas nos jornais e emissoras de TV com a performance “anarco”. A UPP do Santa Marta ‘gerou uma operação policial” para identificar os “suspeitos de vandalismo” e expediram uma ordem de prisão para o dono da boca da vez. Michael Jackson voltando a polemizar e ser notícia no Santa Marta, 21 anos depois de sua passagem pela favela escandalizar a cidade.

Em 1996 eu tive a sorte de acompanhar in loco a filmagem do polêmico clipe de Michael no alto do morro, “They d’ont care about us”, um caso completo sobre a governança das cidades brasileiras e as periferias globais.

A primeira cena impactante: na subida da favela se via um contingente de jovens negros morro acima em uma interminável fila indiana. Cada um carregava nas costas e no muque as caixas metálicas com centenas de equipamentos, câmeras, rebatedores, parafernálias mil, guarda sóis, comida, água mineral, walkie talkies. Com um um Spike Lee decidido, de bermuda e boné à frente.

A cena parecia ter sido imaginada por Joseph Conrad de O Coração das Trevas ou de um desses filmes em que os nativos carregam mantimentos e armas em uma expedição na selva. Uma parte deles eram os meninos do tráfico que tinham sido contratados para o serviço pela produção. Só fechar os olhos que lembro nitidamente dos gestos para equilibrar os baús prateados e reluzentes nas costas negras sob o sol de fevereiro. Foi a única coisa que realmente me perturbou ali. O exército de mão de obra excedente. O exército de reserva, para o trabalho precário e para o tráfico.

Um batalhão de jornalistas se precipitava sobre o cenário caótico, literalmente passando um por cima dos outros, com super lentes, câmeras, até que finalmente (momento inesquecível) vemos a chegada apoteótica, com gritos, histeria, choro e gritinho das crianças, de um Michael Jackson espantosamente branco, debaixo de um gigantesco guarda sol, no alto de uma laje. Libera as mãos, arregaça a gola da camiseta e começa a dançar magicamente, abrindo os braços exatamente como vemos hoje, gesto eternizado, na estátua em sua homenagem.

Michael Jackon no centro de uma cena mágica e surreal. Visto das lajes lotadas transformadas em camarotes pelos moradores, fotógrafos, cinegrafistas. Um super espetáculo global. Uma ópera popular na favela a céu aberto. Arthur Omar, que me levou nessa aventura, fez um vídeo incrível chamado “Massaker!” com essas imagens de transe.

Mas o escândalo mesmo não foi a comoção e nem o cenário escolhido, uma favela brasileira para o clip de um pop star, o Rei do Pop. Foram as filmagens negociadas direto com os traficantes do Santa Marta, tudo “by passando” o prefeito, César Maia e a polícia. A filmagem foi autorizada pelo líder do tráfico de drogas no morro, e um dos chefes do Comando Vermelho na época, o traficante-sociólogo Marcinho VP que depois seria protagonista de uma outra polêmica com o diretor João Moreira Salles, mas essa é outra incrível história.

Fato é que, 21 anos depois, o tráfico mais uma vez dá a letra e pendura o fuzil no peito de Michael para dizer quem manda no território.

Não poderia haver imagem mais simbólica para um projeto fracassado de UPPs, um processo fracassado de segurança pública, um processo nunca iniciado de regulamentação das drogas que demoniza o consumo e o comércio, um projeto de cidade sonho/pesadelo.

A militarização da segurança no Rio virou fato, com o Exército que ocupou as favelas nos grandes eventos tendo sido chamado para fazer a ronda em toda a cidade. Uma ação apoiada por parte da população e pela mídia.

O Jornal Extra acaba de lançar uma “Editoria de Guerra” com um discurso que só reforça a retórica da violência da polícia e do Estado e pode ser usada para justificar a morte de civis. Pois em “uma guerra” se aceita que morram inocentes. O Jornal se justifica em editorial dizendo que “tudo aquilo que foge ao padrão da normalidade civilizatória, e que só vemos no Rio, estará nas páginas da editoria de guerra”.

O próprio Editorial do Extra sabe dos riscos dessa retórica da guerra: “Temos consciência de que o discurso de guerra, quando desvirtuado, serve para encobrir a truculência da polícia que atira primeiro e pergunta depois”. Uma ação publicitária que legitima a “exceção” como a nova normalidade.

“They don’t care about us”. Lembro da faixa que os moradores fizeram com o nome da música de Michael Jackson , assim mesmo em inglês, para recebê-lo na entrada da favela. E esse “nós” irônico em que MJ falava por eles. A policia já matava e achacava jovens e moradores cotidianamente em nome da guerra às drogas.

Demos a volta ao mundo, o mundo deu uma volta pelo Rio, vimos a população se insurgir em 2013, vieram os grandes eventos, teve Copa, Olimpíadas. O legado disruptivo, ambíguo, mas democrático das Jornadas de Junho nas ruas e o legado sinistro que quebrou a cidade e deixou um rastro de corrupção, sofrimento e incertezas.

Michael Jackson morreu, outras vidas negras e brancas foram tiradas, as UPPs estão sendo desmontadas e viraram bunkers de repressão da população pobre. Rio 360 graus, girou girou e voltou aparentemente para o mesmo lugar!

Mas a história não dá voltas e é dinâmica. Nesses 21 anos a favela Santa Marta se urbanizou e virou uma “favela vitrine”, um laboratório urbano: favela-bairro, UPP, “big brother favela” (com a instalação de câmeras de segurança pelo morro todo), um laboratório de políticas públicas que atiraram para todos os lados e também foram criticadas e bombardeadas. A questão é, nenhuma política pública encarou o mais escandaloso: o massacre contra os jovens, os corpos matáveis cotidianamente.

Por outro lado, nesses 21 anos, a produção cultural, música, linguagens, moda, explodiu, vindo das favelas e periferias. Os “pobre stars” mandaram o seu rap e hoje estão na frente de movimentos, ações. Estão propondo um partido dos pretos, a Frente Favela Brasil, talvez o maior legado que a CUFA (Central Única das Favelas) pode deixar para a cidade e para nossa frágil democracia. Essa rede de produtores culturais, jovens trabalhadores, ativistas negros, todo um outro “pobretariado”, atores, empresários, jovens que entraram pelas cotas nas universidades, abriu lugares de fala e ação. Lugares de incidência. No Santa Marta quem abre os braços, hoje, são eles! Michael sorri do céu!

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