A execução de Marielle anunciou a ascensão do Estado-milícia, mas também um novo ativismo.

Auto retrato de Frida Khalo dedicado ao doutor Eloesser | Ilustração de Marielle: Feppa Rodrigues

Marielle-Frida. Marielle se tornou um ícone e um símbolo de lutas vitais, para além das esquerdas. Porta-voz das mulheres, das periferias, das negras, dos LGBTs, ela explodiu os guetos e carrega na sua figura lindíssima, forte e pop, uma síntese de tudo que é contemporâneo. É emocionante perceber que este 14 de março em que faz um ano da sua morte brutal é também a fixação de Marielle Franco em um imaginário político brasileiro e global que atravessa fronteiras.

Vendo a iconografia em torno do seu rosto e sorriso largo, seu cabelo vistoso, suas roupas enfeitadas, me dou conta que Marielle se aproxima de uma figura como Frida Kahlo, no sentido dessas mulheres que suportam ou encarnam todas as dores do mundo com uma vitalidade e beleza que nos afeta e impacta. Mulheres que não vocalizam apenas ideias abstratas, mas performam uma trajetória e vida em que as causas estão encarnadas no corpo. No caso de Marielle o fato de ter sido brutalmente assassinada no auge da sua potência e juventude, investida de um cargo de representação como vereadora, carregando um mundo em sua voz, produz um efeito de comoção e empatia gigantescos.

Marielle se transformou em uma ideia e em uma linguagem. É a cara de uma nova esquerda pop e global, por isso é também odiada, por que era a cara de um futuro que precisava ser exterminado, como nesses filmes de ficção científica em que forças retrógradas e abissais enxergam o que chega produzindo uma colisão de mundos.

Foliões da Mangueira desfilam com bandeiras com o rosto de Marielle. Foto: Pilar Olivares

A entrada da sua imagem, em bandeiras verde e rosa no desfile da Mangueira nesse carnaval, no samba enredo e em uma ala ao lado de outros nomes e figuras de uma outra historiografia e de outros heróis (Dandara, Luísa Mahin, Carolina de Jesus e tantas outra e outros) foi comovente. Marielle, Marias, Mahins e malês no mesmo samba e na mesma linha evolutiva de um outro imaginário que atravessa o Brasil e está vivo.

O Rio de Janeiro que elegeu Marielle de forma consagradora em 2016 é o mesmo que elegeu nomes da extrema-direita. Não existe contradição. Existe uma disputa narrativa e de valores.

Uma disputa para efetivar mundos e as eleições, o carnaval, os blocos nas ruas, as práticas religiosas, os partidos e movimentos, as universidades lutam em diferentes fronts nessa guerra cultural. O que é surpreendente é que as esferas que eram consideradas separadas: a política e o futebol, a política e o carnaval explodiram, politica e cotidiano, etc.

O ativismo hoje no Brasil é um comportamento massivo, mas isso em um contexto conflagrado e de embate. Uma tempestade semiótica, uma guerrilha comunicacional que chegou no auge nas eleições de 2018.

O caso do Rio de Janeiro é emblemático. Temos um alinhamento distópico e o assassinato de Marielle foi um momento radical para perceber essa conjunção infernal que se concretizou: um presidente da República de extrema-direita, um governador saído do submundo do whatsapp propondo premiar matadores, um prefeito evangélico que criminaliza a festa, o carnaval, as manifestações de rua.

O Rio de Janeiro hoje é o cenário do apocalipse em que se trava um embate crucial: o Brasil do capitalismo mafioso, dos poderes fáticos e essas emergências, como Marielle Franco e uma cultura das periferias exuberante em que todos são empreendedores da própria vida e inovadores, em uma cidade que é o laboratório e vitrine de uma disputa visceral.

O Rio de Janeiro é hoje a vitrine do capitalismo mafioso, o laboratório de um capitalismo que precisa de violência e desigualdade para florescer. É o que a teórica mexicana Sayak Valencia Triana chama de “capitalismo gore” no contexto do México, mas que serve para o Brasil:

“Esse termo se refere ao derramamento de sangue explícito e injustificado, à altíssima porcentagem de vísceras e desmembramentos, frequentemente mesclados com a precarização econômica, ao crime organizado, à construção binária do gênero e aos usos predatórios dos corpos, tudo isso através da violência explícita como ferramenta de ‘necroempoderamento’ ”

E o que é esse “necroempoderamento” no Rio de Janeiro, um Estado em que a relação entre política, polícia e milícia se tornou indissociável? Valencia Triana fala de “processos que transformam contextos e/ou situações de vulnerabilidade e/ou subalternidade em possibilidade de ação e auto-poder” a partir de práticas distópicas e de autoafirmação perversa. Fala de práticas violentas rentáveis dentro das lógicas da economia capitalista.” E o que mais importa em um contexto em que os “os corpos são concebidos como produtos de intercâmbio que alteram e rompem o processo de produção do capital, já que subvertem os termos deste”.

Por isso falamos de uma necropolítica como diz o teórico negro Achille Mbembe, em que a vida e os corpos são o objeto de extermínio e destruição.

O uso de violência extrema, as execuções, os assassinatos, a tortura, o sequestro, a venda de órgãos humanos, tudo entra nesse contexto do capitalismo gore em que uma Marielle Franco pode ser executada pelo que significava politicamente e pelo que encarnava no seu corpo. As emergências e os corpos disruptivos, que abalam a lógica do sistema.

Ou seja, no México ou no Brasil e em muitos outros contextos, em uma epidemia global, o que vemos são a popularização de práticas criminosas e a violência como ferramenta de enriquecimento rápido que permitirá sustentar não apenas bens comerciais mas que produz valorização social: narcocultura e milícias.

Como compreender o que representa a morte da vereadora Marielle Franco? Prenderam os executores de Marielle, mas quem mandou matar? Essa é a pergunta que importa agora. Os policiais militares suspeitos do assassinato de Marielle Franco foram presos dois dias antes do 14/03, um ano de sua execução bárbara, talvez para neutralizar os atos em sua memória que acontecerão no Rio, no Brasil e pelo mundo.

É difícil imaginar que dois milicianos resolveram matar Marielle de forma “abstrata”, por causa da agenda que ela defendia simplesmente. Mas não é difícil imaginar o mandante ou os mandantes do crime como parte da agenda desse ‘capitalismo gore” que precisa de ações concretas de extermínio de vidas para florescer.

E, nesse sentido, a cultura das milícias que matou Marielle é a mesma da família Bolsonaro, é a mesma professada por parte do grupo político que chegou ao poder com o Presidente da República. O Sargento Ronnie Lessa, apontado como o executor e atirador que matou Marielle mora no mesmo condomínio de luxo da Barra da Tijuca em que mora Jair Bolsonaro. O problema não é apenas factual, apesar da nefasta coincidência.

A família Bolsonaro não precisa estar envolvida diretamente no assassinato de Marielle Franco para ficarmos escandalizados, por exemplo. Estão envolvidos com a cultura das milícias e dos grupos de extermínios, a cultura dos torturadores, como expressam publicamente e como ficou provado com os milicianos que empregam nos seus gabinetes e prestam homenagem na Alerj. Ou com seus aliados políticos que quebraram a placa em homenagem a Marielle em um ato de vandalismo e tantas outras relações de proximidade com o Escritório do Crime no Rio de Janeiro.

PMs, milícias, e a família presidencial defendem esses valores mais nefastos e antidemocráticos e não se comovem com o horror da execução de uma mulher extraordinária e uma vereadora do Brasil.

O caso Marielle se tornou hoje algo muito maior, no contexto da eleição de Bolsonaro e de ascensão da extrema-direita, no cenário da eleição do governador Witzel no Rio de Janeiro, um “desconhecido” que, associado a Bolsonaro, saiu do submundo do whatsapp para o governo de um dos mais importantes estados do Brasil.

Marielle ganha um significado gigantesco porque encarna hoje todos os discursos de resistência a esse estado de coisas. Uma onda global diante de um assassinato real e simbólico, que mata valores que prezamos.

Marielle morta e tudo em torno desse assassinato talvez seja a maior força para o início de uma derrocada de Bolsonaro e da cultura de extrema-direita que foi vocalizada e visibilizada pós-eleições.

Marielle é uma peça chave para sairmos do modo de operação das milícias reais e simbólicas. O que prova sua morte? A ascenção de um Estado miliciano no Brasil? Esperamos um dia poder dizer: prova o triunfo da beleza e da justiça.

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