O carnaval é uma ópera popular brasileira que faz a gente acreditar na gente. As três escolas de samba vencedoras do Carnaval 2023, a campeã Imperatriz Leopoldinense, Viradouro e Mangueira, mostram o quanto os imaginários em torno do Brasil podem ser atualizados ao infinito e pautar o presente urgente.

Sempre vejo os desfile na Sapucaí como se fosse uma só escola, em que alas, carros, fantasias, foliões, baterias formam um única Escola de Samba Virtual (Arthur Omar).

A Imperatriz mergulhou nas histórias de um nordeste alucinante, de assombrações cangaçeiras, com cordelistas, beatos, alas de demônios, anjos nordestinos e a chegada e expulsão de Lampião do Céu e do inferno, mostrando que a cultura popular é bem mais inventiva que os dogmas das religiões.

O Lampião da Imperatriz “toca fogo no inferno”, que é barulhento e festeiro, e sai expulso de lá. Se dirige para o céu cantado nos cordéis, e debate com São Pedro, São Jorge, com toda santaria e hostes celestiais, pedindo abrigo celeste, mas também é expulso.

Resta vagar pelo sertão como um “fantasma nordestino”. O enredo, baseado nos cordéis e cultura popular me lembrou de Glauber Rocha com seu Deus e o Diabo na Terra do Sol, que finaliza com a música extraordinária de Sérgio Ricardo e Glauber dizendo:

“Tá contada a minha história. Verdade e imaginação. Espero que o senhor tenha tirado uma lição. Que assim mal dividido esse mundo anda errado. Que a terra é do homem. Não é de deus nem do diabo.”

O Lampião da Imperatriz conquista a eternidade como abrigo, nesse vagar pelos imaginários e histórias, uma poesia popular nordestina brasileira sublime e comovente.

Alegorias e Fantasias são Arte Contemporânea

E a magia dos carros alegóricos que fazem o público aplaudir e gritar? Combinam artesania e tecnologia de forma exuberante. Os desfiles na Sapucaí são nossa Hollywood tropical, cultura de massa com um alto grau de sofisticação, enredos mirabolantes, alegorias farfalhantes, sambas incríveis e toda essa iconografia e visualidade contemporâneas.

A escultura do São Jorge transparente, de Paulo Barros na Unidos de Vila Isabel, flutuando na avenida, poderia estar em qualquer Bienal de Arte. O enredo da Unidos da Vila Isabel, com gregos, bacantes, sacerdotisas em êxtase e vinho jorrando de alegorias para celebrar as festas divinas e profanas foi contagiante. E ainda trouxe o meu Boi Garantido de Parintins pra avenida, outra festa extraordinária!

A Portela centenária veio com um esquadrão de drones escrevendo os nomes de Candeia, Noca e toda a comunidade no céu da Sapucai e vimos diferentes escolas usarem telões de vídeo em meio às alegorias. Artesania e tecnologia.

Canonização na avenida

E aí chega a Viradouro com sua Rosa Maria Egipcíaca, primeira mulher negra a escrever um livro no Brasil, com visões místicas e tendo passado por uma história de prostituição. Uma mulher negra escravizada que se torna uma mística e santa popular! Haja sociologia, filosofia, economia para explicar nosso imaginário exuberante e desconcertante.

Uma santa negra, vinda do Benim, com visões e alucinações e que diz: “Sou Rosa Maria, Imagem de Deus”. Como cativa, Rosa era prostituída e doava seus ganhos para outros escravizados. E assim vai desarrumando o arrumado. Até fundir a cultura de matriz africana com a fé branca e católica.

A biografia de Rosa é mirabolante e culmina, entre mil reviravoltas, escrevendo o livro “Sagrada Teologia do Amor Divino das Almas Peregrinas”, tido como heresia, e que quase a leva para a fogueira da Inquisição.

Mas quando tudo isso vira samba, alegorias lindíssimas, cortejo e fantasias é um deslumbramento só. O carnaval da Viradouro se torna a própria canonização popular das muitas rosas e mulheres negras brasileiras. Poesia e política. O carnaval ainda é uma das melhores traduções dos imaginários do Brasil.

Quando toda preta é rainha

Vamos para a Mangueira! Veio homenageando a Bahia e o carnaval negro e as culturas de matriz africana e a gente logo pensa: Tinha que colocar (além do já obrigatório ensino da história e cultura afro-brasileira em todas as escolas, públicas e particulares, é lei!), análise de enredo de escolas de samba nos colégios e universidades, no ENEM.

Analise o texto abaixo (eu tiraria nota baixa, mas estou tentando sair da ignorância consentida aos brancos): “Traz o padê de Exú pra mamãe Oxum/Toca o Ijexá. Rua dos afoxés, voz dos candomblés, xirê de orixá.”

A avenida toda cantando “Eparrey Oyá! Eparrey Mainha! Quando o verde encontra o rosa toda preta é rainha”, da Mangueira, é uma aula de combate ao preconceito e racismo. Pela música, pela beleza, pelo deslumbre, pelo corpo!

A Mangueira na Sapucaí cantando “As Áfricas que a Bahia canta” e fechando o desfile do sábado com o carro do Axé, a saudação religiosa do candomblé e da umbanda e com nossa Ministra da Cultura, Margareth Menezes, de destaque em um carro prateado, verde e rosa, foi o prenúncio de um amanhecer nesse Brasil novo.

Carnaval ativista

A Beija-Flor fez um bandeiraço e trouxe todas as pautas políticas para a avenida, com Conceição Evaristo de destaque, reeditando o carnaval da Mangueira apoteótico de 2019 de “Marias, Mahins, Marielles, malês”. Não foi original, mas o samba-enredo sozinho poderia ser uma aula dada nas escolas: institucional e pedagógico.

O Brasil faz anualmente um descarrego na avenida: catarse e espetáculo. Muitos momentos incríveis: Os orixás saindo de uma árvore sagrada, na Império Serrano, a disputa do jovem Joãozinho Trinta com o mal, puro teatro popular na Grande Rio. A dança das águas de Yemanjá na comissão de frente da Unidos da Tijuca.

Me diverti com os “Delírios de um paraíso vermelho” do Salgueiro, com um Éden progressista: sem pecado, sem escuridão e sem preconceito. Tinha até citação de Sartre: “o inferno são os outros”. E acho que vi um Bolsonaro demoníaco, de motocicleta e chifres, no carro que citava o crime contra os Yanomami.

Bonitas as homenagens a Arlindo Cruz e Zeca Pagodinho, o carnaval atualizando suas mitologias. Em que outra parada, festa, celebração, temos essa entronização dos vivos ao lado dos mortos, a fabulação, a fantasia, produzindo verdade-imaginação? Carnaval, terapia coletiva.

O Carnaval de fato é uma escola e uma fábrica de imaginários. E onde a educação formal falha, a música, os corpos, o assombro visual impactante, produzem o milagre da empatia. Carnaval educa, alegra, politiza e rompe quebrantos.

Conheça outros colunistas e suas opiniões!

Marielle Ramires

De braços dados com a alegria

Bella Gonçalves

Uma deputada LGBT na Assembleia de MG pela primeira vez em 180 anos

Célio Turino

Precisamos retomar os Pontos de Cultura urgentemente

Design Ativista

Mais que mil caracteres

SOM.VC

Uruguai musical

Estudantes NINJA

Não existe planeta B: A importância das universidades nas mudanças climáticas

Colunista NINJA

Carta a Marielle Franco: ‘Quem mandou te matar, Mari? Aí do além é mais fácil enxergar?'

Luana Alves

Justiça por Marielle, mais urgente do que nunca. Sem anistia

Design Ativista

Feminismos, sem medo de ser plural

Uirá Porã

Transformações quânticas e o comunismo tecnológico

Colunista NINJA

A indignação é seletiva

Jade Beatriz

Edson Luís, presente!

Leninha Souza

O fim pelas beiradas

Márcio Santilli

Opção bélica