É recorrente ouvirmos críticas sobre a politização da vacinação, como se abordar o tema sob essa perspectiva fosse algo ruim ou impróprio. Esse tipo de crítica reforça a falácia liberal de que as mudanças ou permanências ao longo da história são resultados do espírito natural dos acontecimentos; seria tão somente o “laissez-faire, laissez-passer” (deixe fazer, deixe passar) como motor da roda inexorável do tempo. Podemos até admitir que as causas dos eventos são multifatoriais, mas não devemos espremer a realidade para que caiba dentro de modelos teóricos limitados, acomodando efeitos diretos de opções políticas para justificar a inação do Estado.

A vacinação é um tema, eminentemente, político e a grande questão que precisamos elucidar é: porque há setores tão empenhados em despolitizar essa questão? É bem evidente que a retomada do crescimento econômico e a volta de uma pretensa normalidade nos próximos anos depende, intrinsicamente, do sucesso da contenção da pandemia da Covid-19 e isso acontecerá (só, e somente apenas) se uma ampla e eficaz adesão ao consumo da vacina seja alcançada.

Os números, para o nosso desespero, mostram o contrário, um quadro realmente preocupante, em que, 22% (Datafolha) afirmaram a intenção de não tomar a vacina. A desconfiança aumenta de acordo com o posicionamento político. Entre apoiadores de Jair Bolsonaro a taxa de rejeição é maior, sobretudo se a vacina for de origem chinesa. Bem por isso, muitos setores da sociedade se mobilizam para acelerar qualquer possibilidade de vacinação em massa, e até mesmo o Supremo Tribunal Federal entrou na querela.

O governo, no entanto, além de não propor medidas eficientes, sabota todas as exaustivas tentativas de minimizar os danos de uma pandemia que se aproxima de 200 mil vítimas fatais, além de sequelas em pessoas que se recuperaram. A negação da existência do problema foi o primeiro passo, o desincentivo ao isolamento outro, a insistência em não usar máscaras mais um e assim, Jair Bolsonaro conseguiu, paulatinamente, desmobilizar boa parcela da sociedade a tomar cuidados mínimos para evitar a proliferação do coronavírus. O último capítulo desse projeto de assassinato em massa é a sabotagem da imunização coletiva.

A vacinação contra patógenos de alta contaminação como o caso do Sars-cov-2 não é uma escolha individual, é um pacto coletivo, em que, a sociedade reconhecendo a letalidade de uma patologia, se dispõe a garantir sua imunização para não se tornar parte de um efeito dominó letal. A despolitização do tema é preocupante, exatamente porque querem afastar o descaso com a saúde coletiva do pensamento e da prática da direita. Essa lacuna abriu possibilidades para que o gabinete do ódio lançasse uma plataforma discursiva que legitima o individualismo e o egoísmo.

O que Bolsonaro de fato deseja, é tirar de sua responsabilidade os resultados catastróficos da inação do Estado desde o começo da pandemia. A balança para escolher quais medidas seriam adotas de março de 2020 para cá, pendia entre a manipulação da opinião pública e a insatisfação do sistema financeiro, para ver isso, basta pensarmos no mote de orientação discursivo do governo: ou salvamos vidas ou salvamos a economia; e como previsto por diversos e diversas pesquisadores, somos o segundo país que mais perdeu vidas, e amargamos efeitos econômicos terríveis, ao mesmo tempo.

A pandemia, na verdade, está sendo excelente para o governo. A morte de idosos foi visto como algo bom pelo ministério da economia, pois, isso poderia reduzir o déficit da previdência, na medida em que se agrava a letalidade do vírus de acordo com que avança a idade. Para o mesmo ministério controlado por Paulo Guedes, essa situação proliferou a ideia de que a economia brasileira decaiu por causa da pandemia, quando na verdade, o prenúncio do caos econômico e social que estamos vivendo estava dado desde o golpe de 2016 e as medidas liberalizantes que de lá decorreram.

No Congresso Nacional, diversos temas que ganhariam críticas muito negativas na opinião pública passaram desapercebidas e ao invés de parlamentares e governo se comprometerem com um planejamento a médio e longo prazo, pensando em um futuro pós pandemia, usaram o foco dado a esse problema real, para aprovar dezenas de investidas contra os direitos sociais e a soberania nacional.

Todo esse cenário foi construído através de disparos de fakenews e apelo ao absurdo. Em uma de suas mais recentes declarações, Bolsonaro sugeriu que as pessoas sofrerão alteração no DNA, que podem virar um jacaré, ou homens ficarão com a voz fina caso tomem a vacina, e afirmou ainda, que ele mesmo não irá tomar. O mais revoltante é saber que ele fará o contrário de seu discurso, mas o efeito de suas palavras é destrutivo, porque toda sua verborreia impacta diretamente em como o Sistema Único de Saúde planejará sua atuação.

A mais nova disputa acerca do tema é a vacinação compulsória, a qual em seus discursos, o presidente diz se opor. Entretanto, em portaria por ele mesmo assinada, está prevista a vacinação obrigatória. Na condição de historiadores, ainda assistimos consternados ao uso acrítico da memória da Revolta da Vacina, em 1904, para fortalecer o atual movimento antivacina. A mais especializada literatura sobre o tema concorda: não foi a vacinação obrigatória que gerou a revolta, mas sim a grave política higienista, que tratava com violência a população pobre do Rio de Janeiro, violência essa que foi aprofundada com a reforma urbana Pereira Passos.

A proposta de vacinação obrigatória, somada aos abusos cometidos no processo, foram o estopim para que a população se colocasse contra o caos social instaurado na cidade, que entre outros fenômenos, acentuou a pauperização e favelização na segunda capital brasileira. Após a recusa a vacinação desencadear uma grave epidemia de varíola, a população correu aos centros de vacinação em 1908, mas no imaginário coletivo, toda a discussão sobre abusos cometidos pelas oligarquias, que geraram aquela revolta, foram substituídos por uma visão rasa e irreal de que o evento ocorreu por medo das pessoas virarem boi.

O que precisamos ter muito evidente é que saúde pública é uma questão política! O propósito de retirar o tema dessa alçada, é garantir que a insuficiência de nosso sistema de saúde seja vista como algo natural, fruto exclusivamente do imperativo metafísico liberal. A falta de expansão do atendimento do SUS, o baixo investimento em saneamento básico, a diminuição de proteção de direitos sociais e a fragilizada segurança alimentar e nutricional são elementos da nossa realidade que agravaram a letalidade da atual pandemia.

Vamos ainda lembrar que uma política de saúde eficiente não gera marketing imediato. Quando passamos pela grave crise sanitária do H1N1, o Brasil promoveu a vacinação de quase 90 milhões de pessoas, não faltou seringa, não houve rejeição à campanha e presenciamos dois adversários políticos históricos (Lula e José Serra) unindo esforços para que o povo se comprometesse com esse pacto social, em que, Serra – médico – tirou foto sugerindo que aplicava a Vacina em Luís Inácio Lula da Silva – presidente.

Precisamos politizar o debate e mostrar que saúde para todos e todas é uma opção política. Nos afastarmos disso, é aceitar que por mágica ou milagre essa crise sanitária será vencida, quando podemos afirmar seguramente, que é a ação do Estado, com planejamento e parcerias que pode nos tirar dessa triste realidade.

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