Do ponto de vista político-social, desenha-se a destruição misógina da autonomia feminina; institucionalmente, o assassinato de uma perspectiva alternativa de desenvolvimento, numa região para a qual o mundo só enxerga três possibilidades: ditaduras seculares, teocracias ou pseudodemocracias islamitas.

Foto: Kurdishstruggle/CC

Um dos grandes problemas com os “homens fortes” é que, via de regra, eles são fracos: têm personalidade pobre, deixam-se guiar por suas próprias inseguranças, têm paranoia persecutória e escalonam a própria violência por medo. Dois desses “homens fortes”, o americano Donald Trump e o turco Recep Tayyip Erdogan, se encontraram em uma chamada telefônica no domingo dia 6. Ninguém além dos dois chefes de Estado participou da ligação. Geralmente, quando Estados discutem a possibilidade de uma incursão militar, por exemplo, é normal que especialistas em Defesa e Relações Exteriores participem da conversa. Não foi o caso.

Trump falou sozinho com Erdogan e talvez nem tenha percebido o quanto foi humilhado. Para a surpresa e revolta até da base republicana, o mandatário estadunidense saiu da chamada com a promessa de retirar seus cerca de mil militares do norte da Síria, a começar por duas cidades estratégicas: Serekaniye, conhecida pelo nome árabe Ras al-Ain; e Gire Spi (Tal Abyad, em árabe). De acordo com a imprensa especializada, o presidente turco ameaçou o colega abertamente: “ou você trabalha comigo ou sai do caminho”. Na disputa dos bullies, Erdogan, o bully de rua, falou mais grosso que o bully do Twitter, Trump.

Ao enviar 3,6 milhões de refugiados para um território de 2 milhões de habitantes, Erdogan pretende promover um redesenho demográfico para ‘arabizar’ a região

O fato é que, poucas horas depois, os Estados Unidos saíam do caminho, pavimentando a estrada para que a Turquia invadisse o norte da Síria, controlado pelas Unidades de Proteção Popular – YPG, o exército da revolução curda; e YPJ, a frente feminina da mesma força armada – que, com suporte aéreo dos Estados Unidos, derrotaram o Daesh (nome utilizado pelos inimigos do chamado Estado Islâmico para designar a milícia wahabista). Este movimento de traição aberta pelo presidente estadunidense seria suficientemente vexatório por si só. Mas a incursão turca vai além: é uma das raríssimas ocasiões em que a parte invasora anuncia sua intenção genocida de antemão. Para estabelecer uma “zona de segurança”, Erdogan promete eliminar o que chama de “terroristas” de uma faixa de quase 50 mil quilômetros quadrados e substituí-los pelos 3,6 milhões de refugiados que a Turquia abriga atualmente. Se considerarmos que Rojava, como a região é denominada pela população local, tem cerca de 2 milhões de habitantes, isso é um redesenho demográfico, o que é considerado limpeza étnica pelas Nações Unidas, um crime de guerra gravíssimo.

“Terroristas” para o sultão turco não são os remanescentes do autoproclamado Estado Islâmico, que horrorizou o mundo nos últimos anos ao tentar erigir um califado por meio de tentativas de genocídio, escravização de mulheres, estupros coletivos, decapitações, imolações de crianças e outras inomináveis brutalidades. Aos olhos de Erdogan, terrorista é o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) e qualquer um que tenha ligação com ele, como é o caso das forças curdas que livraram o mundo do “califado”.

Erdogan contra a diversidade, o PKK e a revolução feminista curda

O PKK – que nasceu nos anos 70 na capital turca como um partido marxista-leninista, bebeu no anarquismo de Murray Bookchin e acabou fundando sua própria ideologia política, o confederalismo democrático – de fato consta na lista de organizações terroristas da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), da qual a Turquia faz parte. Mas, na prática, abandonou a luta armada há mais de uma década e voltou seus esforços para o aprofundamento da democracia e a promoção de um modelo ecofeminista de sociedade. Esta democracia inovadora floresceu justamente em Rojava, ao curso da guerra na Síria.

O próprio Erdogan reconhecia parcialmente a legitimidade do PKK até 2015, quando negociava um acordo de paz com a ex-guerrilha. O que mudou? Erra quem chutar que o partido curdo resolveu voltar a promover atentados em meio às negociações. A contingência que levou à guerra foi a democracia. Nas eleições de 7 de junho de 2015, um partido de esquerda, pró-curdo, chamado HDP (Partido Democrático dos Povos), virtualmente sem aparição televisiva, conseguiu ultrapassar a barreira dos 10%, entrar no parlamento e acabar com a maioria absoluta do AKP no Legislativo, frustrando o projeto de Erdogan de estabelecer um presidencialismo pleno e se outorgar poderes extraordinários. Furioso com o revés, em boa parte impulsionado pela popularidade conquistada pelas mulheres curdas que impunham seguidas derrotas ao grupo Estado Islâmico, o presidente turco iniciou um processo de criminalização da população curda em geral.

A imunidade parlamentar de representantes do HDP foi suspensa, o que obrigou o partido a substituir a agenda legislativa pelo enfrentamento ao lawfare. Prisões aleatórias e perseguições abundaram, conforme o PKK foi convertido em inimigo público número um. Bastava um fato político para que Erdogan pudesse declarar guerra à toda a população curda no sudeste do país. Ele veio pouco depois que o YPJ, o exército feminino de Rojava, reconquistou Kobane do “califado”. Quando a cidade se converteu em bastião e símbolo do ecofeminismo e da eficiência militar das mulheres curdas, grupos de esquerda se organizaram no sul da Turquia para trabalhar voluntariamente na reconstrução de Kobane. Um destes grupos se preparava para partir da cidade fronteiriça de Suruç, em 20 de julho, quando foi surpreendido por um atentado a bomba. A gestão Erdogan rapidamente atribuiu o ataque ao Daesh  que, curiosamente, não assumiu a autoria, como costumava fazer.

Para o PKK, o ataque aos voluntários curdos era coordenado ou no mínimo tolerado pela oficialidade turca. De fato, desde o início da guerra, há indícios do apoio financeiro e logístico de Recep Tayyip Erdogan ao grupo Estado Islâmico. Mas o mundo sempre fechou os olhos a esse “deslize” de um parceiro de Otan; até que o colaboracionismo ganhou os palcos internacionais em dezembro de 2015, quando Ancara abateu um caça russo na fronteira com a Síria. Os turcos disseram que a aeronave violou seu espaço aéreo, mas o Kremlin jogou a sujeira no ventilador, acusando Ancara de atacar o avião para proteger uma rota de tráfico de petróleo do grupo Estado Islâmico para a Turquia. Na época, Moscou chegou a apresentar dados e mapas detalhando o envolvimento do ministério turco da Energia (sob o comando de Berat Albayrak, genro de Erdogan) no contrabando de cru da Síria. O governo turco negou a acusação mas, exatamente um ano depois, um grupo de hackers comunistas chamado Redhack vazou quase 60 mil emails, que evidenciam a participação de Albayrak na Powertrans, empresa responsável pelo transporte de petróleo made in Daesh.

Uma tentativa frustrada de golpe de Estado forneceu ao sultão turco o pretexto ideal para eliminar seus adversários da cena política

Se a Turquia já insuflava o extremismo islamita desde o início da guerra como forma de unificar o país sob uma identidade etno-político-religiosa muçulmana conservadora e expandir sua influência regional, os laços se estreitaram com uma tentativa frustrada de golpe de Estado atribuída por Ancara a um ex-aliado do presidente, o clérigo Fettullah Gulen, em julho de 2016. Por uns poucos dias depois do sangrento embate que culminou na derrota dos golpistas, parecia que a unidade turca havia sido alçada à prioridade da pauta nacional. Mesmo partidos de esquerda saíram em defesa da normalidade democrática, por mais falha que ela fosse sob Erdogan. Rapidamente, no entanto, o golpe virou pretexto para o maior expurgo da história da democracia turca.

Na esteira do golpe fracassado, o AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento, de Erdogan) decretou estado de exceção, abrindo caminho para a detenção sumária de mais de 100 mil servidores públicos. Abundaram relatos de tortura, restrição de direitos legais, coerção de advogados. Os principais líderes do HDP, Selahattin Demirtas e Figen Yuksekdag, que não tinham absolutamente nenhuma relação com o putsch, foram presos junto com outros 13 deputados da sigla. Quase 400 ONGs e mais de 150 veículos de mídia – não apenas gulenistas, mas pró-curdos também –, foram fechados e seus jornalistas encarcerados sem processo judicial. No exército, 38% dos generais e 8% dos oficiais de patentes inferiores foram exonerados. Com isso, a Turquia passou a usar cada vez mais mercenários, muitos deles simpáticos à ideologia ou mesmo ex-combatentes do grupo Estado Islâmico. Estas são as forças que agora invadem Rojava.

Depois da invasão turca, o idioma curdo foi proibido e cartazes determinando o uso da burca por mulheres, espalhados por Afrin

Uma prévia do que significa lançar estes jihadistas contra populações curdas pôde ser observada na operação Ramo de Oliveira, em que a Turquia “liberou” o enclave curdo de Afrin de “terroristas” ligados ao PKK em janeiro de 2018. Apenas duas semanas depois da incursão, o Exército Nacional (um conglomerado de mercenários árabes bancado por Ancara) havia mudado a composição étnica da região: casas de civis foram saqueadas e ocupadas por cerca de 60 mil refugiados sírios, transferidos da Ghouta Ocidental, território sírio ocupado por rebeldes islamitas que enfrentam o presidente sírio Bashar al-Assad. O idioma curdo foi proibido e cartazes à la Daesh, determinando a obrigatoriedade do uso da burca pelas mulheres, espalhados pela cidade. A administração turca jura que a incursão não era permanente, mas apesar de todas as forças curdas terem sido expulsas de Afrin em poucas semanas, a cidade foi radicalmente arabizada e os mercenários permanecem no território até hoje.

A resignação europeia diante da limpeza étnica

De acordo com a burocracia turca, a incursão atual contra Rojava também não se pretende permanente. A retórica oficial é que, uma vez “limpa” a região de “terroristas”, a integridade territorial da Síria será preservada, bem como a composição demográfica. Isso é impossível, se considerarmos o plano declarado de despachar compulsoriamente quase duas vezes a população local em refugiados sírios.

Como o silêncio diante de atrocidades anunciadas pega mal, a Europa condenou a hostilidade turca no início da semana passada. França, Alemanha, Noruega e Dinamarca até suspenderam as vendas de armamentos para Ancara. Mas isso é cosmético. A verdade é que o mundo inteiro está de braços cruzados, preparado para assistir a um genocídio de camarote. O chamado “mundo desenvolvido” prefere engolir a vergonha de deixar desaparecerem os curdos que livraram o planeta do autoproclamado Estado Islâmico, a mais feroz organização de extrema-direita da nossa era, do que ver brotar em seus territórios o espólio humano dessa guerra.

E esse é o mais poderoso trunfo de Erdogan. Logo que iniciou os ataques, o presidente turco tomou a tribuna do Parlamento para ameaçar a Europa abertamente: “se vocês classificarem minha operação de ‘invasão’, é muito simples; eu abro as fronteiras e solto os 3,6 milhões de refugiados na Europa”. Não se sabe muito bem quem são esses refugiados, parte deles pode ser de familiares ou ex-combatentes do Daesh. E essa é uma responsabilidade que a Europa não quer assumir.

As Forças Democráticas Sírias mantêm cerca de 70 mil ex-militantes do Daesh presos; desde a invasão, mais de 800 fugiram, aumentando as possibilidades de ressurgimento da milícia de extrema-direita

Mas não assumi-la no passado foi o que levou à situação atual. Não apenas porque a Europa não foi capaz de evitar a radicalização dessas pessoas em seu próprio território, mas porque não soube, ao curso da guerra, criar uma mínima infra-estrutura jurídica para repatriar e julgar os cidadãos que partiram de seus países para atender ao chamado do califado. Ao invés disso, a maior parte das nações europeias simplesmente revogou os passaportes dessas pessoas; tapou o sol com a peneira, fazendo com que eles ficassem presos na Síria, sem processo ou perspectiva. Ou seja, derrotado o projeto geopolítico do Daesh, os europeus deixaram que os indivíduos por trás do projeto simplesmente apodrecessem em um caldeirão de ódio. As Forças Democráticas Sírias, capitaneadas pelo YPG, mantêm cerca de 70 mil ex-militantes do grupo Estado Islâmico e seus familiares aprisionados em campos espalhados por Rojava. Mais de 800 já fugiram desde o início da incursão turca e certamente não pretendem pendurar o fuzil. Com a invasão turca, depois de meses de detenção sub-humana na mão das forças curdas, a tendência é que essas pessoas se reorganizem com brutalidade renovada.

Não dá para imaginar o nível de brutalidade de que estamos falando. O YPG e o YPJ representam a ideologia diametralmente oposta aos postulados do wahabismo. Enquanto o grupo Estado Islâmico prega que as mulheres devem ser cobertas e subjugadas, Rojava promove uma revolução feminista, outorgando postos de comando para mulheres em todas as estruturas sociais. Enquanto o grupo Estado Islâmico se organiza em uma hierarquia rígida, onde o poder emana de um líder espiritual e político com poder de vida e morte sobre seus súditos, Rojava se organiza em torno da radicalização da democracia a partir da distribuição igualitária de poder entre as comunidades. Enquanto o grupo Estado Islâmico almeja tornar-se um player no mercado global de petróleo e construir uma economia ultracapitalista, Rojava baseia suas trocas numa perspectiva ecológica radical. Enquanto o grupo Estado Islâmico pretende expandir sua visão religiosa fundamentalista aos quatro cantos do planeta, Rojava transforma a tolerância religiosa em política pública ao obrigar as administrações locais a serem plurirreligiosas. E pior, o grupo Estado Islâmico, com seu ethos hiper-masculino, foi derrotado pelas mulheres feministas de Rojava. Ou seja, por trás da retaliação que se avizinha está uma das mais tóxicas paixões existentes: o ego masculino ferido.

A contrarrevolução do patriarcado

Em última instância, o cenário que se desenha no norte da Síria é uma contrarrevolução do patriarcado. O misógino Donald Trump acovardou-se diante do misógino Recep Erdogan, que comanda um exército também misógino para enfrentar uma revolução feminista. Em uma analogia doméstica, o que temos no norte da Síria é um homem batendo ferozmente numa mulher enquanto outros homens – o resto do mundo – assistem horrorizados, mas inertes. Para piorar, essas mulheres têm sob seu domínio, 70 mil misóginos ressentidos, loucos para sair e se vingar. Essa é a guerra do estupro. E, portanto, a guerra mais importante da nossa era. Do ponto de vista político-social, é o massacre do feminismo pelo patriarcado; institucionalmente, o assassinato de uma perspectiva alternativa de desenvolvimento numa região para a qual o mundo só enxerga três possibilidades: ditaduras seculares, teocracias ou pseudodemocracias islamitas.

O mundo é incapaz de se solidarizar com Rojava porque não tem repertório coletivista. Cada resposta que surgiu das grandes potências frente à invasão turca foi individual. A União Europeia teme um influxo de refugiados, Trump está provavelmente preocupado com o processo de impeachment que sofre, os países árabes temem o crescimento do peso político e econômico da Turquia, Erdogan teme que a diversidade frustre seu projeto de poder, Bashar Al-Assad se alia aos curdos provavelmente para restaurar seu domínio sobre a região autônoma de Rojava. Todos temem por si próprios.

Mas o enfrentamento não só da dissolução da política como instrumento de diálogo entre povos, mas das grandes crises da nossa era (ambiental, econômica etc., que ameaçam nossa própria existência), exige uma outra ética, baseada numa leitura inclusivista, que enxergue a humanidade não como um aglomerado de nações étnica, econômica e culturalmente restritas ao jugo de Estados autocentrados, mas numa noção holística de humanidade. Essa outra ética é justamente o que a Turquia devasta sob o choque de inação da comunidade internacional. Rojava tem as ferramentas de que necessitamos para sobreviver como espécie. É por isso que ela será destruída.

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