Foto: Juliana Afonso

por Áurea Carolina

Em suas diferentes facetas, o golpe político-jurídico-midiático consumado em 2016 afeta profundamente as lutas por justiça econômica e pelo bem viver no país. Uma das suas expressões mais nefastas é a aprovação, pelo Congresso Nacional, da Emenda Constitucional 95, o “Teto dos Gastos” (derivada da PEC 241/55), que congela o gasto público real por 20 anos. A longa duração da medida, sua vinculação à Constituição e sua inflexibilidade, que impede a correção pelo crescimento ou aumento populacional, fazem com que seja uma política de austeridade sem precedentes no mundo.

Em paralelo, políticas sociais muito importantes de enfrentamento à pobreza e às desigualdades sofrem as consequências de um processo deliberado de sucateamento. Importantes ministérios e secretarias são unificados e/ou extintos, equipes são reduzidas e orçamentos são contingenciados em favor de um novo regime fiscal supostamente dedicado a “salvar o país” da recessão e da crise. Em conjunto, o que se observa é um desmonte acelerado (e invisibilizado) das políticas sociais no país, conquistadas no processo de redemocratização brasileira.

Essa situação tem aprofundado as já abissais desigualdades socioeconômicas da nossa sociedade, com impactos desproporcionais para quem já está em situação de vulnerabilidade. O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo: de acordo com pesquisa da Oxfam Brasil, os cinco homens mais ricos concentram a mesma riqueza que os 50% mais pobres da população. Para piorar a situação, especialistas têm apontado um risco iminente de retorno ao Mapa da Fome da ONU, que o país havia deixado em 2014.

Além disso, a dinâmica da economia em nosso país está estritamente ligada ao histórico de opressões sofridas por diversos grupos sociais. Segundo o IBGE, os indicadores de pobreza são maiores em função da cor, do sexo e da estrutura familiar: uma mulher preta ou parda sem cônjuge e com filho, por exemplo, tem alta probabilidade de ser pobre (64% das mulheres nessas condições estão abaixo da linha da pobreza estipulada pelo Banco Mundial), enquanto as chances de um homem branco ser pobre é bem menor (dos declarados brancos, 15,3% são pobres). O genocídio da juventude negra é outro fenômeno cujas consequências podem ser vistas à luz da economia, tendo em vista as milhares de vidas produtivas precocemente perdidas. Por isso, é fundamental debater justiça econômica e outras questões estruturais enfatizando as dimensões de raça, gênero e sexualidade, faixa etária, território e outros marcadores sociais.

Injustiça econômica

A crise do atual modelo econômico que vivemos também se assenta no modelo de arrecadação do Estado brasileiro. Sabemos que tributos importam e sua incidência tem impactos de gênero, raça, classe. O Brasil opta por um sistema majoritariamente regressivo, tendo como base principal a tributação por consumo (como o ICMS e o ISSQN). A conta aperta para quem está já em situação de vulnerabilidade: as pessoas pobres pagam proporcionalmente mais impostos.

Já fontes de arrecadação que poderiam contribuir mais efetivamente para a diminuição das desigualdades – como tributos sobre o patrimônio (IPVA e IPTU) e, especialmente, sobre renda, doações e heranças –, são pouco priorizadas como base fiscal. Outro gargalo é o imposto sobre grandes fortunas, previsto na Constituição mas ainda não regulamentado, embora exista um projeto de lei sobre o tema tramitando no Congresso.

O cenário no Brasil é de injustiça econômica. Organismos internacionais têm alertado que o atual modelo de tributação e de execução dos gastos públicos e as transferências de renda não têm sido eficientes na redução das desigualdades. Ao não se utilizar do sistema fiscal para garantir oportunidades equivalentes a todas as pessoas – corrigindo, assim, opressões históricas associadas a fatores como o gênero, a raça e a classe – o Estado atua para concentrar riquezas e impedir que as pessoas possam viver suas vocações e seus talentos. As mulheres, a população negra, a juventude, as comunidades LGBTIQ, indígenas, quilombolas, pessoas que vivem nas periferias, ou seja, as maiorias sociais, são as mais afetadas por isso.

Cenários possíveis

A economia também é política e a (re)democratização de qualquer nação passa, necessariamente, pela busca da democracia fiscal. Além da arrecadação/tributação (receitas), é fundamental acompanhar o orçamento e os gastos públicos (despesas), que refletem as prioridades e as escolhas de uma determinada gestão. A ausência de investimentos também é significativa. Assim, é necessário acompanhar limitações e cortes no orçamento, em termos quantitativos (quanto está sendo cortado e/ou não executado) e qualitativos (quais áreas sofrem tais cortes e por quê). Mantemos a defesa firme de políticas de ação afirmativa e de redistribuição de renda, que jamais devem retroceder. Também defendemos uma reforma tributária consequente, participativa e atenta à democracia fiscal, e que viabilize a distribuição de renda, o provimento de serviços de qualidade à população e a correção de desigualdades históricas.

As saídas para esse quadro tão desfavorável passam pela construção de alternativas econômicas com participação da sociedade. Acreditamos na economia solidária, na economia criativa, no empreendedorismo social e em outros arranjos produtivos que buscam superar a lógica tradicional de mercado, desde que estejam a serviço do empoderamento econômico e social dos sujeitos. O impacto local/territorial de tais iniciativas deve ser levado em conta, bem como seu potencial de articulação em redes. Outro ponto de atenção é a informalidade: lutamos por condições dignas para trabalhadoras e trabalhadores, o que nem sempre implica formalização a todo custo – vide a questão dos trabalhadores informais ambulantes em BH e o compromisso da Gabinetona com essa luta.

Estamos integralmente comprometidas com o enfrentamento à pobreza e às desigualdades. É nosso papel qualificar essa discussão, sempre em perspectiva interseccional.

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