Texto e entrevista por Eduardo Sá

Foto: Marcelo Santos Braga

Futebol, música, carnaval e o botequim, dentre outros costumes do povo carioca, são fontes de inspiração para a arte de Sergio Vidal. Retratista do cotidiano, aos 73 anos o pintor não cansa de valorizar a cultura afrodescendente no Brasil. Fugindo à estética europeia e enaltecendo a resistência da nossa, com traços simples mas expressivos e coloridos ele marca sua posição política: o negro também está na raiz da identidade nacional. E o trabalhador, como o alfaiate, a costureira, o pedreiro e o operário, sobretudo os músicos, fazem parte desta narrativa. É um protesto à injustiça social.

Nascido na Gamboa, no Centro do Rio, em 1945, vem de uma família de operários que também eram músicos. Sua vida artística se inicia em contato com o grande pintor e sambista Heitor dos Prazeres, cujo filho era seu amigo de colégio. Desde então não parou mais e conviveu com grandes mestres da pintura brasileira: Fernando V. da Silva, Di Cavalcanti, Gildemberg, R.Griot, Holmes Neves, Delson Pitanga, Rubens Gershman e Aloysio Zaluar, etc. Sua primeira exposição foi em 1972, e de lá para cá passou por grandes galerias e salões no Brasil e mundo afora. Foi premiado nos EUA, México e Bélgica e em vários estados brasileiros. Uns dizem que faz o realismo popular, mas nem ele sabe muito bem definir sua obra.

Na entrevista, realizada durante a 3ª Feira Literária do Samba, no Clube Renascença, zona norte do Rio, Vidal conta a sua história, o que pensa sobre a pintura e analisa o mercado artístico nacional. Fala sobre política com um tom filosófico e ressalta a importância de a arte transmitir algum sentimento ao público. Ressalva ainda que tem muita gente por aí fazendo coisa boa e o tempo, segundo ele, revelará novos talentos no cenário artístico nacional.

De onde surgiu a sua ligação com a pintura?

Primeiro foi com um português que subia minha rua em Bonsucesso, quando eu tinha uns 8 anos, carregando um cavalete só que a tela ficava virada. Nos meus 14 anos, quando estudava pela manhã e trabalhava à tarde, o Heitorzinho era meu colega de colégio e me convidou para um evento realizado por seu pai. Fui ao atelier de um pintor pela primeira vez, o do pai dele, Heitor dos Prazeres, que estava terminando uma aquarela grande muito bonita que me impressionou muito. Não sei por que tive a sensação de que sabia fazer aquilo.

Aquele momento me impressionou bastante e não me saiu da cabeça.

Comecei a rabiscar e me vinha a pergunta na cabeça: como é que se faz um quadro? Coincidentemente, na mesma semana tinha recebido o pagamento e indo pra casa num desses bazares que têm tudo vejo um caderno de desenho com uma aquarela e um livro de iniciação ao desenho e a pintura. Só pude comprar o caderno e a aquarela, porque o dinheiro que tinha contribuía também para a mesa em casa. Depois comprei tinta óleo, pincel e vez por outra quando ia ao atelier do Heitor ficava prestando atenção à cozinha da pintura. Como funcionava, como ele fazia, como era a palheta, dissolvia a tinta, fui acumulando aquelas informações e tentava reproduzir quando chegava em casa.

Após o sepultamento do Heitor, seu filho foi dormir lá em casa e tomou um susto quando viu o que eu estava fazendo. Me incentivou a mostrar a outras pessoas achando que eu teria condições de me apresentar como pintor. Eu não achava essa possibilidade, fazia por brincadeira e uma curiosidade que me dá um prazer muito grande até hoje. Ficar de frente para uma tela em branco sem ter uma ideia do que pintar ou desenhar. De repente vem uma ideia, um traço, parece que aparece na minha cabeça o quadro pronto e eu começo a retratar.

Maquinista, por Sergio Vidal

Você acha que é tipo um dom ou você foi adquirindo habilidade com o aprendizado?

Não saberia te dar uma definição. Será que é mediunidade ou uma coisa espiritual? Começo a pintar, mas sem saber desenhar, era um esforço danado para colocar na tela aquela ideia que me minha vinha à cabeça. Um sacrifício muito grande. Gostava de desenhar coisas relacionadas à música, porque desde menino, aos seis anos, estudei piano, meu pai tocava bandolim e minha mãe órgão na igreja. Tentei cantar mas a música não saía, então quando comecei a pintar alguma coisa dentro de mim falava que podia através da pintura comentar, interpretar e criticar a vida. Tinha essa noção mas não era uma coisa clara, não era um propósito. Certa vez quando levei uns quadros ao atelier do Gildenberg um comerciante de arte que estava lá perguntou quanto era. Eu não sabia dar preço, nunca tinha vendido um quadro nem imaginava que alguém ia querer, e mesmo chamando de porcaria aquilo foi intrigante. Ainda assim o valor era mais do que eu ganhava em vários dias, virei freguês e assim tudo começou.

A influência comercial dele influenciou na tua arte com a encomenda ou era espontâneo?

Ele não exigia, às vezes não gostava de alguns mas sempre comprava. Aí me deu essas ideias de estudar pintura e no Instituto de Belas Artes, quando era no Parque Lage o diretor era o pintor Oswaldo Teixeira com um curso técnico de três anos, saía com diploma de 2º grau e profissão. Quando cheguei ao atelier do Gidemberg estava o Holmes Neves, falei que ia estudar no Parque Lage e todo mundo ficou me olhando. Vidal toma uma cerveja, disse o Holmes, e no terceiro copo disse pra eu rasgar a inscrição pois você não estudou e já está pintando… O que tem aí na sua pintura é um negócio que você não sabe, você só tem que pintar. Mas você estudou, eu disse. Ele respondeu que estudar com Guignard era bem diferente de estudar com Osvaldo Teixeira. Da maneira que você desenha rápido vai aprender a fazer flores, natureza morta, paisagens, retratos, vai ficar rico com isso e essa pintura que está nascendo aí a gente vai perder. Desisti do instituto e quando fui ao Paraná minha prima me apresentou um diretor das belas artes em Curitiba, e ele também disse para eu esquecer temporariamente esse negócio de estudo. Fui a São Paulo e conheci um colecionador que me incentivava a estudar pintura, porque era colecionador e frequentava as aulas de pintura do professor (Arlindo) Castellani.

Fui apresentado e ele olhou meus quadros, acendeu um charuto e falou: você não é pintor, você é artista! Você prefere aprender a pintar ou continuar a ser artista?

Sinal Fechado, por Sergio Vidal

Qual o seu ponto de vista sobre a história da pintura brasileira?

Não sou um historiador, um especialista, nem crítico de arte, sou pintor, mas como tal tenho tido oportunidade de ler algumas coisas. Estudei até o 5º período filosofia na UERJ, tenho uma boa biblioteca, sou curioso. O país é formado por gente que vem da Europa, da África, do oriente, e os índios que já estavam aqui.

A arte genuinamente brasileira já existia com os índios desde há muito tempo, com as cerâmicas, pinturas do corpo e rupestre, as plumárias, etc. Vem o desenvolvimento da colonização, o aculturamento, e a estética predominante é a europeia.

O negro junto ao português, no caso das artes plásticas, faz toda a arte de decoração de igreja. O aleijadinho era só mais um expoente dentre eles, que estavam nas construções e já tinham tendências enquanto trabalhadores comuns a fazer imagens. Na exposição Brasil Mais 500, no ano 2000, resgataram obras maravilhosas de anônimos negros. Começa a presença da estética africana, mas no grande mercado predomina a europeia até hoje. A africana sensibiliza e se destaca mais na área da música, mas na imagem não é muito aceita e tem restrições.

Preparo da Peixada, por Sergio Vidal

A que você atribui isso?

Poderia ser descriminação, mas não gosto de me deixar levar por esse calor de se achar descriminado embora ela exista. Um povo na Europa teve contato com outro, há sempre um estranhamento, assim como estranhamos alguém entrar no nosso grupo. É uma coisa natural do ser humano.

Não estou apoiando o que o europeu fez com o africano, o que estou dizendo é que existe esse sentimento no ser humano.

Dá preferência ao que é seu. E para negociar no mercado de arte tem que ter dinheiro, e quem tem são os descendentes de europeus, judeus e árabes. Dão prioridade a uma estética da sua ancestralidade, é uma referência natural. Temos que olhar também por esse lado.  Outro detalhe enigmático é que quando o negro está com dinheiro tem preferência pela arte com características estéticas europeia.

O mercado não pressiona a produção artística com essa “demanda”?

O produtor maneirista vai produzir arte que agrade, no samba isso é chamado de boi com abóbora, uma coisa que cai no gosto comum e todo mundo vai comprar. Na pintura é possível fazer isso, mas quando o pintor está trabalhando com sua memória, criatividade, coisas que vêm da sua imaginação, não é muito fácil. Porque quando estou pintando me desligo do mundo, não sei o que está acontecendo. Parece que vão saindo umas coisas e quando vejo já tem um negócio pronto. Não tenho muita capacidade de conduzir, de fazer um quadro de tal forma para cair no gosto dos outros e chegar ao leilão ou galeria e ser um sucesso.

Sexta Feira, por Sergio Vidal

Como você caracteriza a sua obra, o que você gosta de retratar?

Olha essa minha frase: faço arte com pintura, comentando a vida, a nossa cultura, o nosso jeito de ser, a nossa maneira de dar um jeito para viver.  E tem mais essa: um quadro fala. Informa, propõe, mexe com a memória.

Valoriza nossa cultura e conta uma história. Então eu passei a perceber, em função do que as pessoas começaram a comentar, que eu podia soltar mais esse lado e eu gosto. Falar mais do cotidiano, da minha experiência, da minha família, a escola, a vovó, as brincadeiras de criança, as minhas frustrações. Nunca joguei futebol, por exemplo. Não só lembrando quando trabalhava em oficina, mas valorizando o operário, o trabalhador.

Fusca na oficina, por Sergio Vidal

E como funciona o mercado de arte brasileiro?

É muito forte na pintura, escultura, gravura, desenho. Movimenta grandes valores, temos pintores e artistas reconhecidos internacionalmente, tanto descendentes de europeus como afro-brasileiros. Considero vários artistas muito importantes para a história das artes plásticas no Brasil e que eu tive contato, como o Heitor dos Prazeres, que despertou em mim o desejo de pintar, e Di Cavalcanti. Meu primeiro prêmio na pintura foi quando Di Cavalcanti comprou um quadro de minha autoria que expus no Pepsi Bar, uma whiskeria frequentada por intelectuais e artistas.

Todo sem jeito pedi permissão para frequentar seu atelier. Você quer aprender a pintar comigo? Pois então você está achando que eu sou burro, né? Eu tô comprando um quadro de um cara que não sabe pintar?! Você não tem que aprender a pintar mais nada. Lembro também de Emanoel Araújo, escultor, gravurista, Otávio Araújo, pintor surrealista, gravura e desenho, Rubem Valentim, pintor, escultor, etc.

O Brasil está mudando, talvez estejamos passando por um conflito estético porque os artistas atuais na arte e pintura estão muito voltados para uma coisa que está sendo realizada no mundo inteiro.

Qual a sua percepção sobre a arte e a pintura contemporânea?

Será que o planeta está virando uma cultura só? Fiquei assustado, por exemplo, em chegar à Dinamarca e ver uma pintura mais ou menos igual a arte contemporânea que a gente faz. Não sei dar um nome ao estilo estético atual, mas têm sido privilegiadas as instalações com experiências. Tem algumas até muito interessantes, que propõem um conceito com toda uma composição. No Brasil está muito mais forte, por incrível que pareça, a presença da estética europeia. Essa tendência que a pintura e escultura têm ao abstrato, a própria natureza morta e paisagem não têm sido muito visitadas pelos pintores que se consideram artistas modernos.

Certa vez vi um professor de arte falar que o negócio não é o motivo, não é natureza morta, abstrato, etc, mas sim a pintura em si, a emoção que ela passa. Achei isso muito interessante, então pode ter um autor que se acha moderno e a pintura não passa emoção nenhuma. Às vezes um pintor com características bem simples sem pretensões a ser vanguardista passa uma emoção muito forte.

Esse é o grande barato: a emoção que uma arte pode passar.

No Brasil temos um mercado de arte muito forte, muitas galerias, embora ele esteja agora mais voltado aos leilões, que têm sido a porta ideal para se divulgar a arte atual. Aumenta a possibilidade de colocar quadros a lance livre, e qualquer pessoa com um trabalho de qualidade técnica ou artística pode apresentar sua obra. Como é divulgado online, milhares de pessoas ficam conhecendo e oferecendo valores. Isso pode crescer e além do autor vender sua obra pode ser também requisitada para exposições e eventos culturais como troca para decoração de uma casa. Qual a finalidade da arte? Decoração? Poesia? Você vai fazer o que ao comprar um quadro? Botar na parede para contar uma história, decorar por que se identifica com aquilo.

Bilhar das Moças, por Sergio Vidal

Eu gostei da do boteco com sinuca, por exemplo.

Pois é, isso é muito legal, porque o boteco é um local de convívio e troca maravilhoso. Quanta coisa a gente aprende, ensina e vive. Às vezes é um curso caro, mas a gente aprende a viver com todo tipo de pessoas. Tenho muitos quadros de botequim com situações diferentes: música, jogo, discussão política e religiosa, tudo lá dentro. Você tem a composição, as cores, coordenar tudo isso não é tão fácil. Ter uma leitura clara e compreensiva sobre a situação. Como diziam os mestres, é 3% inspiração e o resto é transpiração.

Tenho impressão que estamos vivendo um momento de arte muito interessante, não é toda pintura que faço que viram quadros que tenho grande apreciação. Não são todos os beijos que são maravilhosos. Então tem quadros que às vezes você dá um arranjo nele, mas não é aquela pegada que a gente sente.

Picasso dizia que só acreditava em pintor que pinta todo dia, então quando não estou com vontade de pintar vou limpar o atelier. Aí começa a dar vontade de pintar, por isso meu atelier é uma bagunça.

Se pegarmos a época dos impressionistas, que todos acham uma maravilha, só alguns ficaram na história. Tinha muito mais pintor e é o que está acontecendo hoje, tem muito quadro mas só alguns são arte. Isso é um processo natural. São períodos, dá a impressão que não está acontecendo nada mas mais tarde vamos ver. Quando realizo oficina de desenho as pessoas estão doidas pra sair pintando.

Feijoada, por Sergio Vidal

Até que ponto a política influi na arte e como você enxerga a atual conjuntura nacional?

Alguns artistas colocam a sua arte à disposição de realizar um trabalho quase que evangélico de pregar um ponto de vista social. Nunca tive essa pretensão, sempre gostei de fazer minha pintura pelo que sinto e interpreto da vida.

Naturalmente, como seres políticos que somos, os acontecimentos da administração de um Estado brasileiro interferem na nossa emoção. Às vezes nos sentimos chateados, felizes, cada um tem as suas preferências, mas fazendo uma relação com a física a gente vê que a vida não é uma coisa linear. Está sempre oscilando, às vezes está ao lado, em cima ou embaixo, essa frequência.

Então sempre que um período da humanidade está com grandes dificuldades de relação, de ética duvidosa, se sucede outro de extrema vigilância, que até nos assusta. Mas se consultarmos a história isso já aconteceu várias vezes, é cíclico. Talvez temos que passar por isso de purgar alguma coisa, que não esteja bem definida.

Não gostaria que fosse da forma que está acontecendo, mas temos que aguardar porque a natureza é muito sábia.

Qualquer coisa fora do natural vai ser colocada para fora, ela mesmo se corrige. Queremos que isso ou uma dor passe logo, mas tem que dar o tempo de plantar, cultivar e colher. Devíamos seguir a proposta do Rui Barbosa, o Brasil espera que cada um cumpra a sua parte. Muitos estão preocupados com direitos, mas poucos estão preocupados com os seus deveres. Então minha proposta é que assumamos essa responsabilidade, porque na medida em que eu mudo o mundo muda.

 

 

Conheça outros colunistas e suas opiniões!

Colunista NINJA

Memória, verdade e justiça

FODA

Qual a relação entre a expressão de gênero e a violência no Carnaval?

Márcio Santilli

Guerras e polarização política bloqueiam avanços na conferência do clima

Colunista NINJA

Vitória de Milei: é preciso compor uma nova canção

Márcio Santilli

Ponto de não retorno

Andréia de Jesus

PEC das drogas aprofunda racismo e violência contra juventude negra

Márcio Santilli

Através do Equador

XEPA

Cozinhar ou não cozinhar: eis a questão?!

Mônica Francisco

O Caso Marielle Franco caminha para revelar à sociedade a face do Estado Miliciano

Colunista NINJA

A ‘água boa’ da qual Mato Grosso e Brasil dependem

Márcio Santilli

Mineradora estrangeira força a barra com o povo indígena Mura

Jade Beatriz

Combater o Cyberbullyng: esforços coletivos

Casa NINJA Amazônia

O Fogo e a Raiz: Mulheres indígenas na linha de frente do resgate das culturas ancestrais

Rede Justiça Criminal

O impacto da nova Lei das saidinhas na vida das mulheres, famílias e comunidades

Movimento Sem Terra

Jornada de Lutas em Defesa da Reforma Agrária do MST levanta coro: “Ocupar, para o Brasil Alimentar!”