Foto: Marcelo Costa Braga

Aos 75 anos, a sambista Leci Brandão é uma referência para a resistência negra. Ficou famosa por suas músicas, principalmente a Zé do Caroço, que foi composta durante a ditadura militar e até hoje é um hino em toda roda de samba, mas também pela sua representatividade no âmbito parlamentar. Em 2010 foi eleita pelo PCdoB a segunda deputada estadual negra da história da Assembleia Legislativa de São Paulo, e em 2018 foi referendada mais uma vez para o seu terceiro mandato.

Nascida e criada no subúrbio do Rio, de origem humilde, filha de uma operária de fábrica em Vila Isabel, começou a compor aos 19 anos e foi a primeira mulher a entrar na Ala dos Compositores da Estação Primeira de Mangueira. De lá para cá lançou dezenas de discos, fez parcerias com todos os grandes sambistas nacionais e foi comentarista de carnaval da Rede Globo. Atuou também como atriz na década de 90 na novela Xica da Silva, da TV Manchete, interpretando a revolucionária quilombola Severina.

Leci sempre foi também uma militante natural na defesa da população negra, não tem formação superior. “Eu só tenho a Universidade da vida”, como costuma dizer. Durante o segundo governo Lula foi a representante da sociedade civil no Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPOR) e também integrou o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM). A partir de São Paulo, onde mora há mais de duas décadas, dispõe seu mandato parlamentar na Alesp às mulheres, negros, indígenas, LGBT`s, dentre outros setores desprivilegiados da sociedade brasileira.

Com posicionamento claramente à esquerda no espectro político, ela fala à NINJA sobre a renovação do samba, a conjuntura política nacional e os desafios de uma mulher negra atuar no parlamento. Segundo ela, a tarefa agora é focar nas eleições municipais deste ano e conscientizar a população a votar de modo que suas necessidades se reflitam nas suas representatividades. A sambista também faz duras críticas à mídia que, na sua opinião, contribui para o racismo e não dá o devido valor ao samba nacional.

Você tem uma vasta trajetória no samba há décadas, como vê a geração que está vindo?

Vou me reportar mais a São Paulo porque estou morando lá há mais de vinte anos, e estou no meu terceiro mandato popular que mexe com cultura, educação e essas coisas, movimento negro, mulheres, população indígena, quilombolas, LGBTs. Trato de gente, então é uma coisa muito presente essa questão do samba, ou seja, temos muitas comunidades de samba em São Paulo. Tantas que resolvemos fazer um guia com as rodas, endereços, o que acontece no local, etc. Como é um pessoal que não tem apoio, não existe incentivo, políticas públicas, eles conseguem fazer as suas rodas sem nenhum patrocínio ou auxílio.

Mas fazem uma coisa legal, que é a entrada com alimentos e tudo que recebem é distribuído nas comunidades. É um trabalho social que essas comunidades de samba fazem, paralelamente a isso existe o negócio da economia criativa, que as senhoras que moram perto dessas comunidades fazem bolinho, pastel, etc, e vendem ali e o pessoal tem onde comer enquanto está tocando o samba.

Aqui no Rio tem a Rede Carioca de Rodas de Samba, que gira toda uma economia em volta da roda com gastronomia, vestimentas, artesanato, etc.

Como acontece na Praça Tiradentes. Fiquei muito feliz quando soube pelos meninos da Festa da Raça que essa coisa da roda de samba está se espalhando. Isso é muito bom porque você não tem uma mídia que mostre esse tipo de samba, não dão visibilidade para esse tipo de trabalho riquíssimo. Um trabalho que tem uma legitimidade muito grande, mas infelizmente o que interessa atualmente são outras coisas, outros ritmos, letras e essa rapaziada tem um trabalho autoral muito legal. O que eu acho mais importante nessas comunidades é justamente as pessoas terem a oportunidade de demonstrar seus trabalhos e o povo que está ali vai aprendendo e cantando e isso é muito bom.

Em relação à nova geração do samba, prefiro não citar nomes porque infelizmente sou uma pessoa muito conhecida e de uma credibilidade muito grande, então fico numa situação muito delicada porque tem muita gente boa e é difícil selecionar. Tenho muito cuidado, porque posso citar 99 mas faltou aquele centésimo que fica muito triste e arrasado então prefiro não falar nada. Sei que tem muita gente boa no Rio de Janeiro e em São Paulo, até porque tenho afilhados e posso correr o risco de só citar eles. O que posso dizer é que fico muito feliz de ver que essa turma vai dar continuidade, que está preservando e não vai deixar cair.

Foto: Marcelo Costa Braga

Aquela frase clássica do Nelson Sargento, “agoniza mas não morre”, acho que o samba está um pouco distante de morrer, não?

De jeito nenhum, está morrendo para quem só fica ligado na emissora de rádio e nas paradas de sucesso ou programas de TV. Porque para quem está na esquina, na praça, no bairro e acompanha esse pessoal está tudo maravilhoso. Fico muito feliz e muito grata porque recentemente aconteceu aquela roda das mulheres [II Encontro Nacional de Mulheres na Roda de Samba- Ano Leci Brandão, no Rio de Janeiro aconteceu na Cinelândia], fiquei muito emocionada porque fui homenageada e não sabia, e teve um momento que tocaram em dezesseis estados do país ao mesmo tempo Zé do caroço. Você vê o Ilú Obá de Min, um bloco afro feminino, de São Paulo, elas vão fazer (fizeram em 22/12) no Sesc Vila Mariana a apresentação de uma roda delas com músicas minhas.

Tem sido expressiva a inserção das mulheres no samba, um fenômeno que abrange muito além de apenas a interpretação musical nas rodas. Qual a sua avaliação sobre esse processo?

É muito legal que agora estejam em evidência muitos grupos femininos, muitas meninas que tocam bem, não só percussão mas também harmonia: o protagonismo da mulher está aí com efervescência. As mulheres acordaram, e vou te dizer mais: acho que a morte da Marielle fez acontecer muita coisa politicamente e socialmente. Foi uma coisa que tocou todo mundo, uma mulher lutadora, guerreira, que foi ousada, corajosa e morreu daquele jeito. Acho que isso mexeu muito com o brio das mulheres, e você vê que pra 2020 vai ter muita mulher candidata a vereadora, já estou sabendo em vários estados. Mulheres negras, que é uma coisa que me fascina muito. Porque como os negros ainda não estão no poder, essa transformação que está ocorrendo futuramente será muito bom para a gente. Teremos um lugar de merecimento e legítimo para poder inclusive brigar pelas demandas das mulheres negras, porque elas ainda lutam muito e são muito prejudicadas e injustiçadas.

Você é uma parlamentar negra, como você vê a representação de vocês no parlamento?

Estou muito feliz, porque na Assembleia Legislativa onde estou chegaram mais duas mulheres negras e eu sei que fui referência para elas. Tanto a Erica Malunguinho como a Mônica Seixas, ambas do PSOL, e elas sempre falaram isso. Nos ajuda porque a convivência ali é muito complicada, até porque pela vitória da Janaína Paschoal, que teve mais de 2 milhões de votos, arrastou quinze pessoas para lá. Ou seja, o PSL é a maior bancada hoje na Alesp. É muito complicado porque a oposição diminuiu, pela questão da política no ano passado ter sido uma eleição muito difícil para nós da esquerda. Então a base do governo, que é do PSDB, e se juntou ao Dória, o BolsoDória que eles falavam, eles realmente são muitos e nós poucos. Mas a gente pelo menos conseguiu uma coisa, que foi deixar para o ano que vem a reforma da previdência que eles queriam fazer agora e a gente conseguiu barrar.

Você participou de um conselho na pasta da igualdade racial no governo Lula, de uma forma geral você acha que o Brasil é um país racista?

É, inclusive mandei botar um cartaz na porta do meu gabinete: o Brasil é racista. É uma coisa muito cruel, você vê, por exemplo, que a polícia tem a cor da pele que ela vai prender ou enquadrar. Sabemos disso, até porque temos um fato real de um oficial que falou para sua tropa: homem pardo ou negro em princípio é suspeito. A maioria da população carcerária é negra, é uma coisa muito complicada. Por isso falei hoje durante o show: ninguém nasceu para ser bandido, você nasce para ser feliz e trabalhar.

Você atribui a que isso, qual foi o equívoco histórico após a abolição da escravidão? A falta de reforma agrária? Qual a questão que está entranhada até hoje na nossa cultura?

Foi uma Lei Áurea mentirosa, dizer que acabou a escravidão ali é uma mentira. Você assina uma lei, mas não dá nenhuma estrutura para ninguém: os negros ficaram sem eira nem beira com uma mão atrás e outra na frente sem nenhuma oportunidade. Com os imigrantes foi diferente, vieram para cá com toda condição, e a negrada ficou como está até hoje morando nas favelas, nos morros, sendo empregados, domésticas, lavadeiras, cozinheiras, etc. Você vai ao shopping vê a população negra tomando conta do banheiro ou limpando as mesas na praça de alimentação, mas não vê uma mulher negra vendendo nas lojas. Eu sei exatamente onde vou encontrar meu povo.

Foto: Marcelo Costa Braga

Caminhando pra agenda positiva com as propostas, como é possível avançar?

Educação, manutenção das cotas, cursinhos gratuitos, o governo tem que fazer políticas públicas para ajudar a estruturar quem faz trabalho voluntário nas comunidades. Tem uma juventude fantástica que está fazendo muita coisa legal, tem muito jovem ensinando dança, pintura, incentivando literatura, a rapaziada do hip-hop faz isso muito bem. Esses jovens artistas dialogam muito com a juventude, vão pra dentro das favelas e fazem coisas maravilhosas sem incentivo. Os gestores não conseguem entender esse trabalho maravilhoso que essa galera está fazendo.

Você enquanto sambista obviamente deve ser uma militante da cultura. Como vê tudo que está acontecendo no cenário político?

O governo Lula deu condições dos pobres irem às universidades, foram criadas várias universidades federais, fizeram o Enem, porque você tem que mostrar acesso e uma caminhada de inclusão às pessoas. Todo mundo tem inteligência, mas você precisa dar oportunidade para elas aprenderem a exercitar isso. Se não fica todo mundo nessa história. Você não pode, por exemplo, achar que todo menino que mora na favela tem que tocar tamborim. É legal ele tocar na escola de samba, mas ele pode aprender um violino, piano, pode ser um cientista, só você der oportunidade. Mas nós não damos. Tudo isso inclui educação.

E este governo e os aspectos conjunturais?

Deste governo eu não gosto de falar, porque para mim ele não existe. É ruim, misógino, homofóbico, machista, racista. Não gosto desse governo, não tenho nada a falar. Para você ter uma ideia, quando eles aparecem na TV eu mudo de canal. Eles se acham donos do Brasil, mas quem é dono desse país é o povo brasileiro.

E quais são as perspectivas, o que a esquerda está fazendo em relação a isso?

A gente tem que aproveitar a próxima oportunidade, que será nas eleições municipais. Procurar votar nas pessoas das suas comunidades, em gente que cuida de gente. Pessoas que você tem confiança e conhece, que é ali do seu habitat. Votar em gente como você, que você se reconheça nela. Não votar no cara porque ele é bonitinho, filho de não sei quem, de um empresário, se não fica a mesma coisa. Você vai continuar votando em dono de cidade, votando em quem já tem ou já é, e não está nem um pouquinho preocupado com a sua situação.

Você chegou a falar sobre mídia, e participou de uma novela antigamente. No último IBGE consta que o povo negro é mais da metade da população brasileira, isso é bem representado na televisão e nos grandes meios de comunicação?

Fui convidada pelo diretor da novela à época, ele disse que me via como uma quilombola do século XX e me chamou para fazer uma escrava revolucionária, no caso a Severina. Ela tacava o terror no quilombo, tanto que morre cheia de tiro. Apesar de sermos a maioria, isso não se reflete na televisão. Temos atores e atrizes maravilhosos, entretanto quando os novelistas vão fazer o negócio não tem papel para negro. É por isso que afirmo que o Brasil é racista. Se você é um produtor ou um novelista, por que não lembra das famílias negras? Só pode dar papel para bandido, traficante, etc. O que é isso? Existem famílias que os filhos estão estudando, sabem comer na mesa, se vestir, toda uma população negra que não é mostrada. Estou querendo saber o porquê também.

Fale um pouco mais da sua atuação parlamentar.

Vários projetos de Lei nossos viraram lei e, no entanto, não vejo nenhum jornal falar sobre isso. Será que é porque sou uma parlamentar ruim? Acho que não. Nosso projeto mais recente, por exemplo, toca na questão da religião, você não pode perseguir ninguém administrativamente por este motivo se não terá punições. A religião de matriz africana é muito perseguida, porque é oriunda da população negra. Fizemos o dia estadual do samba, o dia de ogum em São Paulo, de iemanjá, coisas que reafirmam a minha religião. No entanto, nunca vejo meu nome no jornal falando sobre essas coisas. Falam do samba, mas na parte política não vejo uma linha.

Como é na rotina o tratamento dos demais na Assembleia, existe muito preconceito?

No início era aquela coisa: vai pra casa sambista, vai ficar um ano só e olhe lá. Não, estamos no terceiro mandato, tenho mais de 40 leis aprovadas, faço muitas audiências públicas. A medalha Theodosina Ribeiro, que foi a primeira negra deputada em São Paulo nos anos 70, eu fui a segunda em 2010. Você vê como é o negócio, então criamos a medalha premiando dez ou vinte mulheres negras ou não que fazem trabalhos importantes. Entra líder comunitária, médica, advogada, mãe de santo, cantora, um pouco de tudo, uma diversidade danada.

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