Espaço deve se tornar referência cultural junto a outras iniciativas artísticas na região central do Rio de Janeiro.

Ciro Fernandes. Foto: Marcelo Costa Braga

Recentemente, o artista plástico Ciro Fernandes inaugurou na Lapa, no Centro do Rio de Janeiro, um ateliê com o seu trabalho. Ele é reconhecido internacionalmente por xilogravura, técnica de imprimir gravuras a partir de uma madeira entalhada, também chamada de matriz, como se fosse um carimbo. São mais de 60 anos dedicados a esse trabalho, mas seu talento não para por aí. Tem diversos quadros pintados com tinta acrílica, dezenas de capas de livros de escritores brasileiros imortais e de discos de grandes músicos, é autor de outros tantos livros e, além de tocar, também fabrica violão, dentre outras habilidades.

Nascido em Uiraúna, no alto sertão paraibano, o artista plástico, aos 81 anos, se aproxima mais do público, após um período de isolamento causado pela pandemia. O ateliê é um novo espaço destinado a muito mais do que vender o seu trabalho, mas também receber as pessoas e ter contato com os amigos e admiradores. Lá estão expostas mais de 50 obras e ferramentas de trabalho, como prensas e matrizes antigas. O seu perfil no Instagram, criado há três anos para divulgar sua arte, já conta com quase 160 mil seguidores. Ciro tem um vasto currículo, ganhou diversos prêmios, realizou dezenas de exposições por todo o Brasil e no exterior, e agora  quer tornar seu ateliê uma referência cultural junto a outras iniciativas artísticas na região central do Rio de Janeiro. As visitas gratuitas podem ser agendadas pelo telefone (21) 99124-6515, com Bruno.

Nesta entrevista, ele conta parte da sua história, como se deu sua chegada ao Rio de Janeiro e crescimento profissional. Fala também sobre algumas das suas obras, seu convívio com grandes escritores e como funciona o mercado da xilogravura. Atualmente está com um projeto de capa musical e um trabalho autoral sobre os orixás, representando as entidades das religiões afro-brasileiras. Embora tenha uma característica regional muito forte na sua arte ao retratar principalmente elementos do Nordeste, sobretudo numa linguagem e estética que dialogam com a literatura de cordel, a diversidade da cultura popular do nosso país está por toda parte nas suas obras e na conversa a seguir.

Como se deu sua aproximação com esse estilo artístico, foi pela família desde jovem, né?

Ciro Fernandes – Nasci numa casa de artistas, a banda de música da cidade era composta de muitas pessoas da família, o maestro era meu tio. A minha mãe fazia renda e pintava quadros, panos e garrafas. Garoto, desenhei as figuras que anunciavam o resultado do jogo do bicho na cidade! A xilogravura aprendi aqui no Rio de Janeiro, porque quando sai de Uiraúna só fazia pintura. Fazer  gravuras foi uma forma de  baratear o custo. E muitas das xilos foram destinadas às capas de cordéis, vendidos na Feira de São Cristóvão.

Você já falou em entrevistas que a xilogravura foi trazida para o Brasil pelos portugueses e ela se adaptou muito bem ao Nordeste. Tem alguma explicação de por que nessa região?

Ciro Fernandes – Espanha e Portugal tinham os menestréis, que “cantavam” histórias numa folhinha A4, que era chamada de folheto, e penduravam para vendê-las. Quando eles trouxeram para o Brasil, não sei por que o negócio vingou no Nordeste. O cordel, para ser vendido, tem que ter crime, um corno, mas não um qualquer, um bem engraçado… Quando chegou aqui no Brasil era também o jornal, uma espécie de noticiário. Tem muitos poetas que são repórteres. Quando morreu Getúlio Vargas, por exemplo, ninguém leu o jornal e sim o cordel. “Qualquer coisa que se havia, era o cordel que se falaria e fazia”, diziam. A técnica do cordel é a mesma adotada na poesia, tanto as estrofes quanto os versos.

Tem vários mestres neste artifício, mas muitos são mais velhos. Você vê uma renovação geracional neste tipo de arte?

Ciro Fernandes – Sempre tem uma nova geração, eu mesmo já ensinei a muitos jovens. A xilogravura é uma coisa de impacto, você olha uma e gosta ou não gosta. Acompanho gente moça que faz da xilo uma expressão artística pessoal e, muitas vezes, sua profissão. Troco mensagens nas redes com novos talentos no Brasil e no exterior. É uma arte muito bonita.

Mas você pinta também muito bem, faz e toca violão, qual é o tipo de arte que mais gosta?

Ciro Fernandes – Eu gosto mesmo é de fazer nada [risos], porque a gente fica mais pensando… Mas gosto muito de pensar em fazer, às vezes um mês. Mas a criação mesmo só penso na hora que pego no lápis e vou para a madeira, e nas outras horas penso nas coisas bonitas, como as mulheres, por exemplo.

Ciro Fernandes. Foto: Marcelo Costa Braga

Você já participou de muitas exposições, como você enxerga o mercado desta arte?

Ciro Fernandes – Quer ver me ver ficar danado é me falar em exposição, porque tem que trabalhar muito, rapaz. Aqui no Rio, para fazer exposição, tem que carregar até quadro nas costas, não dão suporte nenhum. E em galeria não vende, porque a pessoa já entra pensando que é caro. É mais divulgação, e assim mesmo é complicado. E para fora do país é mais desinteressante ainda, porque dá mais trabalho [risos]. Eles gostam muito quando vêm aqui no Brasil de ir lá em casa para comprar uma gravura, o suíço vai muito.

Qual a sua obra que o senhor mais gosta?

Ciro Fernandes – Araguaia. É uma inspiração na Guernica de Picasso, a guerra onde Hitler treinou a sua aviação para a II Guerra Mundial, matando espanhol. Um general perguntou a Picasso  se ele quem tinha feito a arte, e ele respondeu: não, foram vocês. E no Araguaia, a ordem era não trazer presos, e eles faziam terror, penduravam cabeças de gente no helicóptero e rodavam. A arte é a própria política. Fiz Araguaia porque ninguém falava e se falasse poderia até ser preso no tempo da ditadura roxa mesmo.

E como você vê a política de lá pra cá, as consequências desta ditadura?

Ciro Fernandes – Só de não matar mais gente já é uma coisa muito boa, né? Porque faziam coisas horríveis, como a bomba do Riocentro, aquele cara que queria ser presidente e explodir o gasômetro, que podia ter matado centenas de pessoas em toda a cidade.

Você já teve atividade política? Algum patrocínio de órgão público?

Ciro Fernandes – Não, sempre fui independente. Só fiz política quando cheguei a São Paulo. Trabalhava como pintor numa oficina, e disse que sabia e poderia ajudar a pintar as faixas que eles estavam fazendo. Eram materiais de propaganda política, depois que fiz uma faixa comecei a ganhar por metro. Eram faixas para o general [Henrique] Lott e o Jango [João Goulart], então era para os dois lados e a política era fazer a faixa e ganhar o dinheiro. Eram centenas de metros de faixa lá no Vale do Anhangabaú.

Me falavam que em São Paulo se achava dinheiro pelo chão, e chegando lá achei uma nota de R$ 10 no chão, mas não queria pegar a primeira notinha que aparecesse. Chutei ela e nunca mais apareceu outra. Depois escutei que no Rio tinha tapete de mulher nua. Chegando aqui tinha mesmo, e uma mulher riu para mim, mas aí pensei: não vou pegar a primeira que aparece, mas nunca mais apareceu outra [risos]. Tive que buscar Rita no Nordeste, na minha cidade, e a gente veio num caminhão e depois pegamos um ônibus. Não dormimos em hotel não, quando achávamos uma boa sombra dormíamos no chão mesmo. Estamos casados há mais de 50 anos, desde 1964.

Seu filho falou que depois de muita procura conseguiram comprar umas prensas novas, conta um pouco mais sobre a forma de você trabalhar…

Ciro Fernandes – Elas são muito boas! Na verdade são prensas antigas, que o Bruno achou em estado bem ruim e ele mesmo recuperou. Temos uma que utilizamos mais, que imprime tamanhos menores, e tem outra de folha grande. Atualmente estou me dedicando a uma xilogravura de uma mulher em formato de montanha, e a capa de um disco do Conjunto Macaíba, de forró. Trabalho todos os dias, numa rotina de escavar madeira, fazer desenhos e imprimir.

Tem um quadro seu muito bonito que representa a diversidade de todas as regiões do Brasil, como você vê essa riqueza da cultura popular em nosso país?

Ciro Fernandes – A cultura popular é uma coisa linda. O candomblé na Bahia, por exemplo, é um negócio maravilhoso. O Caribé tem um museu que expôs os orixás, aqui não tem nenhuma peça. Estou pensando em trabalhar nesses santos agora, já fiz o São Jorge, que é o Ogum. Fiz a sereia, que é a rainha das águas, Iemanjá. Tem um amigo meu africano que está me ensinando o que os orixás fazem, é uma coisa linda essa religião negra porque cuida só do outro. Um é caçador, outro pescador, muitos cuidam da comida, talvez seja por isso que a comida da Bahia seja tão boa. É a primeira vez que estou estudando esse tema para este projeto. Porque a religião católica é muito de vingança, no candomblé está tudo bem e não existe santo para você fazer promessas. Aquela oferenda na esquina, os católicos chamam de macumba, que é para fazer mal, no Nordeste chamam de feitiço. Uma crendice popular diz que eram para  os escravos que fugiam. Os que ficavam sabiam que eles iam passar por ali e já deixavam comida para eles: uma galinha, arroz, feijão e uma garrafa de cachaça. Era para fazer o bem. É uma lenda que acho bonita.

Ciro Fernandes. Foto: Marcelo Costa Braga

O senhor falou que não gosta de galeria, mas nos dias de hoje se usa muito a rede social para divulgar os trabalhos. Qual a sua opinião sobre as novas tecnologias e a internet?

Ciro Fernandes – Isso veio para arrasar! É bom demais! E agora está fazendo a inteligência artificial, e não precisa nem da gente ter mais inteligência [risos]. Minhas vendas melhoraram com a internet. A gente chega em lugares que nunca ouviu falar e encontra todo tipo de gente que se emociona com a minha arte e compra as impressões. Para nós, artistas, é uma ferramenta libertadora, que rompe fronteiras de lugar e de tempo.

E na questão do direito autoral com a internet?

Ciro Fernandes – Eu numero as minhas obras, cada edição pode ter 100, 10 exemplares. A matriz é a mesma, mas eu numero a tiragem da gravura. É um código de gravadores desde a antiguidade, porque vem desde muito tempo. A Divina Comédia [livro do italiano Dante Alighieri, do século XIV] tem xilogravura, o chinês já fazia gravura no chão.

E quem faz parte dessa nova geração boa que você comentou?

Ciro Fernandes – Na feira de São Cristóvão às vezes tem, como o Erivaldo [Silva], que é filho de poeta de cordel e quando era criança ia lá em casa e ensinei a ele. Mas ele passou também pelas mãos de Sandra Santos, mulher do violinista, e Turíbio Santos, que ensinou a ele no Museu de Arte Moderna.

E qual o papel da arte para a sociedade e o que ela significa para você?

Ciro Fernandes – É uma coisa que existe desde que a humanidade existe, não é à toa que nas grutas têm as artes, os bichos, caçadores, que existem até hoje. Não tem uma parede sem riscado. A minha, lá de casa, era toda riscada do meio para baixo pelas crianças. O ser humano sempre precisou se manifestar. Gosto muito de arte, de ler, leio Dostoievski, Machado de Assis, Graciliano Ramos e muitos outros.

Falando em leitura, existem muitas capas de livros suas de grandes escritores…

Ciro Fernandes – Gilberto Freyre, Orígenes Lessa, que foi meu colega de criação, Rachel de Queiroz e muitos outros. Gilberto Freyre, quando vinha aqui no Rio, mandava José Olympio [dono da editora] me chamar para almoçar com ele no restaurante da editora. Certa vez ele me perguntou quantos livros tinha lido dele, eu tinha todos, mas nunca tinha lido nenhum: então está ótimo porque assim digo como quero a capa, ele respondeu.

E esses quadros aqui tão bonitos, o senhor tem pintado?

Ciro Fernandes – Na pintura é o seguinte, às vezes faço uma gravura e dela uma pintura, e às vezes o contrário. Os dois processos. Da madeira gosto do cheiro e das texturas, das telas as possibilidades mais leves. Os cordelistas iam muito lá em casa para pintar e eles me pagavam com um gole de cachaça e ainda achavam que estava saindo caro [risos].

Tem uma ali com o rótulo seu, chamada Philosophia, da onde ela é?

Ciro Fernandes – Ela fazia concorrência com a São Francisco, mas acho que não vingou não. Imagine o cara chegando no bar e falando: me vê uma philosophia! [risos]

 

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