Por Eloisa Artuso

Feriado do Dia do Trabalhador e da Trabalhadora e eu estou o quê? Trabalhando. Trabalhando por escolha, até porque, para mim, é uma boa escolha: escrever. Mas escrever é trabalho. Então, fiquei com vontade de trazer algumas rápidas reflexões sobre duas questões: o papel do trabalho “visível” na sociedade capitalista, produtivista e consumista em que vivemos e o papel do trabalho invisível nessa mesma sociedade onde nosso valor é determinado por nossa produtividade.

Você, designer, me entende, não é? Porque isso inclui as práticas e os discursos, muitas vezes difundidos nas diversas áreas do design e da indústria criativa – quem nunca trabalhou infinitas horas extras ouvindo seu chefe dizer: “mas você ama o que faz!”? E inclui também todas as outras esferas de nossas vidas, principalmente se formos mulheres. E o descanso fica aonde na era da produtividade?

Estava ouvindo esse podcast hoje que propôs analisar o descanso e o custo de não conseguirmos descansar “em um mundo onde nosso valor é determinado por nossa produtividade”, enquanto se espera que “cada minuto da nossa vida seja capturado, otimizado e apropriado como um recurso financeiro” e, assim, “consolida-se uma espécie de descaso com o descanso.” Isso significa que estamos à serviço do capital e, com isso, o próprio descanso pode virar uma moeda de troca: você tem burnout e você descansa para novamente se tornar tão útil e produtivo quanto antes.

“Como você será inútil para o capitalismo hoje?” é o que pergunta a artista e ativista americana, Tricia Hersey, fundadora do The Nap Ministry (ou Ministério da Soneca, em português), que aponta o descanso como um instrumento de justiça social e racial e, acima de tudo, um ato radical de resistência e descolonização – particularmente para pessoas negras, cujo descanso foi e continua sendo interrompido pela supremacia branca. “Descanso é resistência” é o grito de guerra da Tricia, para mostrar que seu descanso, como mulher negra, sofrendo de exaustão geracional e trauma racial é uma recusa política e uma revolta social.

Para ela, descansar e reduzir a velocidade é uma forma de salvar sua própria vida e resistir aos sistemas que dizem para ela fazer sempre mais e, acima de tudo, lembrar que seus ancestrais tiveram seu espaço de sonho roubado. Não se trata de travesseiros fofos, lençóis caros ou qualquer outro truque fútil e consumista. Mas de uma profunda separação da supremacia branca e do capitalismo. Dois sistemas violentos. O descanso recua e interrompe um sistema que vê os corpos humanos como uma ferramenta para produção e trabalho. O capitalismo está levando o mundo inteiro à exaustão e a uma profunda desconexão com nossos corpos e mentes. Para Tricia, é uma contra-narrativa: porque já não somos mais seres humanos divinos neste sistema e sim máquinas.

Fazemos parte dessa engrenagem que nunca cessa, que nos coloca em um ritmo constante de trabalho, sem fim, esmagando nosso tempo, nossos sonhos e nosso direito ao descanso. Somos reféns da produtividade que transforma tudo em mercadoria (pessoas, ideias, ideais, natureza), sugerindo que só temos valor quando estamos produzindo, de forma a continuarmos alimentando essa roda opressora, construída sobre um pilar patriarcal, sexista, racista e classista.

E se o nosso valor é determinado por nossa produtividade, como é que fica quando a “produtividade” é invisível? Isso me leva para a segunda questão: como o capitalismo explora o corpo e a mão de obra feminina e, com isso, perpetua relações desiguais de poder ao negar o caráter essencial do trabalho reprodutivo – e a não remunerá-lo, estimulando e normalizando diversas formas de violência, discriminação e racismo? Sejam elas do campo ou da cidade, as mulheres ainda carregam o peso do trabalho doméstico não remunerado. O papel de cuidadora do lar e dos filhos também impõe sobre as mulheres barreiras ainda maiores para a saída do ciclo de exploração.

Há décadas, pensadoras como Silvia Federici e Angela Davis criticam as sociedades capitalistas ao apontar a forma como falham em reconhecer ou apoiar o que é chamado de “trabalho reprodutivo”. Isso não se refere somente a ter filhos e criá-los, mas a todo o trabalho relativo à manutenção da vida, ou seja, manter a nós mesmas e aos outros ao nosso redor bem alimentados, seguros, limpos, cuidados e prosperando. Trabalho este, que é essencial e deve ser feito continuamente, mas que a economia não reconhece e nem remunera. O tempo gasto nas tarefas domésticas no Brasil chega a mais de 11% do PIB (Produto Interno Bruto), mais que o dobro do que o setor da agropecuária produz.

Em seu livro Calibã e a Bruxa, Silvia Federici mostra a história das mulheres e da acumulação primitiva na construção de uma nova ordem patriarcal, que tornava as mulheres servas da força de trabalho masculina, como de fundamental importância para o desenvolvimento do capitalismo. De acordo com a autora, “a diferença de poder entre mulheres e homens e o ocultamento do trabalho não remunerado das mulheres por trás do disfarce da inferioridade natural permitiram ao capitalismo ampliar imensamente ‘a parte não remunerada do dia de trabalho’ e usar o salário (masculino) para acumular trabalho feminino”.

O Laboratório Think Olga, aponta que o trabalho de cuidado não pago feito por mulheres representa uma economia 24 vezes maior do que a do Vale do Silício, uma contribuição de pelo menos 10,8 trilhões de dólares por ano à economia global, de acordo com a Oxfam. Mulheres e meninas ao redor do mundo dedicam 12,5 bilhões de horas, todos os dias, ao trabalho de cuidado não remunerado.

Com tudo isso, será que conseguiremos, um dia, estabelecer um processo de desprogramação do ciclo produção-consumo que guia nossas vidas e ser inúteis para o capitalismo? Será que conseguiremos aprender com a nossa história e, principalmente, aprender a recontá-la enquanto desmantelamos as posições de poder e os privilégios que estruturaram a força do capital? Precisamos trabalhar para isso.

Eloisa Artuso é pesquisadora, designer estratégica e educadora com foco em justiça socioambiental na intersecção entre clima, gênero e moda. É cofundadora do Instituto Febre e do Fashion Revolution Brasil e professora de design sustentável no IED-SP. @eloartuso / eloisaartuso.com 

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