Por Felipe Tuxá, Doutorando em Antropologia Social no PPGAS/DAN/UnB, professor na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), e Dinamam Tuxá, Coordenador Executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e Doutorando em Direito na Universidade de Brasília

Com menos de uma semana para mais uma eleição municipal assistimos novamente a corrida por votos que podem ser decisivos para o resultado final. Teremos que conviver com as consequências do exercício da cidadania por pelo menos quatro anos, nos quais prefeitos e vereadores atuarão conforme suas prioridades e compromissos políticos.

Os motivos que nos levam a votar neste ou naquele candidato variam e um atributo que muitos acionam no momento da escolha é justamente o da identificação. Nesse sentido, faz-se necessário refletir sobre o que significa participar do jogo político enquanto indígenas, ponderando as responsabilidades e compromissos inerentes à ideia de democracia.

A presença indígena nas disputas eleitorais embora ainda tímida não é tão recente como fomos ensinados a imaginar. Ainda no ano de 1963, Carmelita Cruz, agente de saúde e professora do povo Tuxá, foi eleita vereadora na primeira eleição que ocorreu no município de Rodelas, interior da Bahia. Em 1969, Manoel dos Santos (Seo Coco) do povo Karipuna foi eleito também como vereador em Oiapoque, Amapá. De lá pra cá o número de indígenas que se aventuram na política eleitoral tem aumentado gradativamente com a projeção de líderes no cenário nacional como Mário Juruna eleito deputado federal em 1982, Joênia Wapichana, em 2018, também como deputada federal e, no mesmo ano, com a candidatura de Sônia Guajajara, primeira indígena a disputar uma eleição numa chapa presidencial.

Se essa presença não é tão recente, o mérito certamente é todo de indígenas que apesar das inúmeras evidências de como a política brasileira tem sido historicamente anti-indígena, optaram navegar nas águas turbulentas do sistema eleitoral. A história do Brasil nos mostra que o percurso de reconhecimento dos direitos civis dos povos indígenas foi árduo, sendo estes plenamente conquistados apenas na Constituição Federal de 1988 quando o estado oficialmente rompeu com a política tutelar retirando a clausura da condição jurídica de “relativamente incapazes”. É apenas em 1988 com o artigo 232 da C. F. que os “Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”. Ainda assim, falar em uma cidadania indígena, específica e que esteja de acordo com as organizações sociais desses povos está longe de ser questão resolvida e segue repleta de ambiguidades. O Estatuto do Índio de 1973, por exemplo, apesar de obsoleto em várias questões referentes os direitos indígenas continua promovendo equívocos que evidenciam como a mentalidade brasileira e jurídica parecem pouco interessadas em romper com o valor da tutela e em promover um debate sério sobre os desafios de uma cidadania verdadeiramente indígena.

No ano de 2016, 1.715 candidatos autodeclarados indígenas concorreram nas eleições municipais, enquanto em 2020 esse número passou a ser 2.173 representando um aumento de 27% (1). Parece-nos que o aumento gradativo dessas candidaturas reflete a percepção de algo que, embora pareça óbvio nem sempre é evidente: em uma democracia representativa, representatividade importa. Nesta direção, a campanha e apoio do movimento indígena em torno dessas candidaturas em 2020 tem sido intensa, como podemos perceber no portal Campanha Indigena, mobilizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). A bandeira levantada por muitos é direta e clara “parente vota em parente” em uma alusão às experiências pregressas junto a política dos brancos, feita por eles para eles, nas quais as questões indígenas permanecem no esquecimento.

Em muitos municípios a eleição de vereadores indígenas é algo frequente e ocupar esses espaços no poder legislativo tem sido responsável por inúmeros avanços para a efetivar a presença de nossas agendas nesse espaço de atuação política. Esse cenário é bastante diferente quando falamos do número e sucesso de candidaturas indígenas para prefeito. Apenas 39 dentre os 2173 candidatos de 2020 estão concorrendo ao executivo o que significa dizer que, mais uma vez, a maioria de nós estará exercendo a cidadania sem ter um indígena dentre as nossas opções de voto. Quando isso acontece, qual o melhor jeito avaliar e acompanhar candidatos e suas propostas?

Esse é o caso de Rodelas, município supracitado onde diríamos que pelo menos 1/3 da população é indígena. Temos dois candidatos não-indígenas na disputa, um deles tentando a reeleição, enquanto que o outro já ocupou o cargo de prefeito anteriormente. O município se constituiu em torno do antigo aldeamento indígena do atual povo Tuxá que continua residindo na cidade e, devido à própria historicidade do local, era de se esperar que políticas voltadas para essa parcela da população fossem um importante bandeira de suas campanhas eleitorais. Todavia, em consulta as suas propostas cadastradas no site do Tribunal Supremo Eleitoral (TSE), ambos candidatos não mencionam em nenhum momento os termos “indígenas”, “índios” ou “aldeia”. Em contextos como esse, que se repetem em municípios por todo o país, exercer a cidadania indígena com responsabilidade é extremamente desafiador. A cena é bem conhecida: integrantes das elites locais com seus sobrenomes de famílias tradicionais se alternam nas prefeituras colocando em prática uma política partidária há muito exaurida, atravessando e contrariando os planos coletivos dos povos indígenas. Nesses cenários a pergunta que nos fazemos é: como votar em candidatos que não se pronunciam a respeito das demandas e pautas específicas das comunidades indígenas?

O resultado das eleições municipais proporciona implicações que ultrapassam em muito o acesso empregos e a serviços locais. Sabemos que hoje a principal pauta da questão indígena continua sendo a demarcação de nossos territórios tradicionais, entre retomadas e autodemarcações e, embora esses processos corram legalmente na esfera federal, são nos municípios onde os conflitos territoriais se desenrolam, que agricultores e outros setores anti-indígenas da população agem, mobilizando inúmeras estratégias de diferentes tipos para atrasar e contestar o andamento do rito demarcatório. Se tomamos os nossos votos como decisivos para o resultado eleitoral, é da maior importância que possamos barganhar para que os candidatos se posicionem e se comprometam frente aos conflitos territoriais de nossos municípios evidenciando até onde estão dispostos a contribuir para que essas disputas sigam o fluxo dos trâmites judiciais previstos.

Exercer a cidadania indígena em um sistema eleitoral onde a vontade da maioria prevalece leva as minorias étnicas a se verem frente a um jogo político que quase sempre, culmina em sua subrepresentatividade.

Isso se aplica especialmente se consideramos que esse modelo de cidadania individual contraria o sentimento de coletividade que pauta a organização social dos povos indígenas. Não é por acaso que a imposição desse modelo de cidadania que preconiza o indivíduo, foi usada no passado como estratégia de enfraquecimento de nossas comunidades. Nos Estados Unidos, por exemplo, o reconhecimento do título individual sobre terras indígenas foi uma política extremamente eficaz para enfraquecer suas coletividades visando que essas terras pudessem no futuro serem colocadas à venda conforme interesses particulares. No Brasil algo similar foi ensaiado no Governo Militar quando em 1978 o então Ministro do Interior Rangel Reis propôs a aprovação de um Decreto de Emancipação para os povos indígenas. Fazendo o uso de um termo aparentemente positivo no ideário democrático, a “emancipação civil dos índios” nada mais era do que uma tentativa furtiva de negar a esses povos a proteção do estado promovendo a dissolução do caráter coletivo de suas identidades indígenas e dos direitos específicos que lhe são co-extensivos. Uma vez desprovidos dessa proteção nos tornaríamos meros proprietários de lotes o que facilitaria que essas terras fossem alvo de projetos desenvolvimentistas além de serem inseridas no mercado fundiário por perderem o status inalienável das Terras Indígenas.

No âmbito da tomada de decisões, a cidadania pensada a partir do voto individual onde prevalece a vontade da maioria nem sempre é percebido como o melhor caminho para obter resolução onde há divergências de interesses. Em um modelo democrático que privilegia a vontade da maioria a legitimidade dos resultados é obtida a partir da soma da metade mais um, podendo levar a resultados onde a outra metade menos um, permaneceria extremamente insatisfeita. Não por acaso, os povos indígenas tradicionalmente realizam assembleias em conselhos onde discutem e escutam os anciões incansavelmente justamente para que através da persuasão e retórica argumentativa das lideranças possam chegar em um consenso, relegando o voto individual a condição de último recurso. O modelo democrático pautado na vontade da maioria é particularmente danoso para minorias que ano após anos se vem compelidas a votar em candidatos que não as representam por não perceber alternativas viáveis para eleger seus próprios representantes. Quando somamos isso a velha política partidária que visa individualizar o nosso caráter coletivo, temos o cenário ideal para a promoção do caos dentro de nossas comunidades, onde famílias imersas em situações históricas de vulnerabilidade disputam entre si recursos escassos que acreditam obter caso seus candidatos sejam vitoriosos.

Uma alternativa que tem se desenhado nas eleições frente a esse cenário são os mandatos coletivos que tentam subverter a lógica individualista reunindo em um mesmo mandato integrantes de diferentes minorias que somam os seus esforços mobilizando intenções de votos que, quando pensadas a partir de cada candidato não seriam suficientes para que fossem eleitos, mas que somados podem fazer toda diferença. Pautados na participação popular e buscando maior representatividade e inclusão social os mandatos coletivos surgem como uma possibilidade no horizonte para grupos minoritários. Esse é o caso da chapa composta pela indígena Luana Kumaruara, a quilombola Claudiana Lírio, Alessandra Caripuna ativista negra e a indígena Tatiana Picanço em Santarém no Pará.

Nessa direção, votar coletivamente, isto é, votar enquanto povo, é uma poderosa arma de subversão do jogo eleitoral que tem, ano após ano, atravessado e dividido comunidades em torno de candidatos que se mostram pouco comprometidos, quando não contrários, aos povos indígenas. Afirmamos isso por acreditar que quando votamos dessa maneira podemos aumentar o nosso poder de barganha, alçando nossos votos individuais a uma participação decisiva no resultado eleitoral como nos mostraram os indígenas Navajo na eleição presidencial dos Estados Unidos que aconteceu na semana passada. No estado Arizona, crucial para o resultado final da votação, a diferença de votos entre Donald Trump e o seu opositor Joe Biden foi de pouco mais de que 40 mil votos, sendo que dos votos totais, 70 mil vieram dos do povo Navajo que concentrou 98% dos seus votantes em um só candidato (2).

Diante do exposto, conscientes dos desafios e armadilhas do processo eleitoral, o nosso chamado nesse texto é um convite para uma reflexão basilar para o exercício da cidadania indígena: para além de não votar em branco, quando não houver opção, vote coletivamente, vote com o seu povo. E assim, talvez, quando perceberem o poder do voto indígena e a necessidade imprescindível ouvir e dialogar com nossas demandas, teremos os nossos próprios candidatos em todos os cargos eleitorais.

 

(1) – PAULA, Luiz Roberto de; VERDUM, Ricardo. 2020. Mapeamento preliminar das candidaturas autodeclaradas indígenas para os cargos de prefeito, vice e vereador nas eleições municipais de 2020. Resenha & Debate. Nova Série Ano I . Série 1 . Volume 3

(2)  https://navajotimes.com/rezpolitics/election-2020/arizona-flips-navajos-contribute-to-historic-shift/

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