A Rede Encantada de Pescadores Artesanais e outros Extrativistas Costeiros Brasileiros

Foto: Luiz Bhering

O trepidar crocante e relaxante do fogão a lenha anunciava uma comida mais que generosa: peixe fresco frito, recém pescado, com arroz, feijão e mandioca. Um luxo! No rancho de pesca, as mulheres, além de colaborar na puxada da rede, organizavam o almoço coletivo. Na maior alegria, os companheiros se reuniam para comer, celebrar e agradecer por mais um dia de fartura, após o cerco à tainha, cena coroada por um cardume de golfinhos. Era maio de 2019, numa belíssima praia deserta ao sul de Santa Catarina, simplesmente encantador.

O cerco à tainha é tradicional em Santa Catarina, onde a pesca artesanal da espécie é protegida como patrimônio histórico, artístico e cultural do estado. A temporada de pesca vai de 1° de maio a 31 de julho. Neste período, são impostas restrições às quaisquer atividades no mar que possam perturbar a presença dos cardumes.

O local é de difícil acesso. Entretanto, este isolamento é só aparente. A comunidade de pescadores artesanais de Ibiraquera, em Imbituba, município de Santa Catarina, está articulada a grande rede nacional de pescadores artesanais e outros extrativistas, a Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas, Povos e Comunidades Tradicionais Extrativistas Costeiras e Marinhas – a Confrem Brasil.

A Reserva Extrativista é o sonho de Chico Mendes que começou na floresta e alcançou a extrativismo costeiro e marinho. A primeira idéia de se criar uma Reserva Extrativista (Resex) no Brasil surgiu em 1985 no I Encontro Nacional dos Seringueiros, que se viam ameaçados em sua sobrevivência pelo desmatamento, criação de grandes pastagens e pela especulação fundiária na Amazônia.

Assim, a Resex é uma Unidade de Conservação prevista em lei federal que visa proteger ao mesmo tempo os territórios e as populações tradicionais que neles sobrevivem a partir de seus recursos naturais.

A riqueza dos povos tradicionais é ao mesmo tempo a sua própria tragédia, como bem falou o geógrafo Carlos Walter Porto Gonçalves. Povos do mar, que vivem no litoral, em locais belíssimos e paradisíacos, são alvo permanente da cobiça imobiliária e sujeitos à expulsão de seus territórios pela gentrificação, sendo atingidos pela pesca industrial predatória, extração de petróleo e gás, grandes projetos de criação de camarão, portos e outros empreendimentos de impacto socioambiental.

Entretanto, estes povos são reconhecidos como os grandes responsáveis pela conservação da biodiversidade do planeta, sendo o seu conhecimento sobre o manejo dos recursos naturais considerado hoje como uma superciência.

Este superconhecimento é estratégico para o futuro da humanidade. Povos originários possuem ampla proteção jurídica internacional, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT (1989) e a Convenção da Diversidade Biológica (1992). Entre seus direitos, estão o direito de controle do território, direito de acesso ao recurso tradicional e direito de determinar o uso, proteção e compensação para seu conhecimento e tradições.

No Brasil, a Constituição Federal e o Decreto Federal 6040/07, que define a política nacional de povos tradicionais, e ainda as legislações estaduais e municipais, completam o arcabouço de proteção.

Foto: Luiz Bhering

Segundo a coordenação nacional da Confrem Brasil, “as comunidades pesqueiras e extrativistas costeiros e marinhos estão localizadas em 17 estados do litoral brasileiro, e prestam relevantes serviços ecossistêmicos e de segurança alimentar à sociedade, representando um modo de vida histórico, com seus laços de pertencimento socioambientais e dinâmicas culturais que transformaram espaços aquáticos e terrestres em seus maretórios, e são destes maretórios que surge a Confrem, criada em 2007.

Esta rede autônoma, emancipada e de grande amplitude territorial, “visou desenvolver estratégias coletivas buscando o fortalecimento e reconhecimento destas comunidades e assim melhor lutar para garantir seus meios de vida e produção sustentável, uma vez que são também destes maretórios que surgem constantes conflitos e ameaças aos direitos dos pescadores, aliado ao desmonte da gestão ambiental e a pressão de políticas para recategorização de unidades de conservação para destinar essas áreas para grandes empreendimentos”.

A atuação da rede “tem como base estas organizações locais, que levam suas pautas aos debates nacionais, apoiando e capacitando-as para intervenção nas políticas sociais e luta pela sustentabilidade e visibilidade, destacando suas formas de vida e relação com o uso sustentável dos recursos”.

Atualmente são 72 organizações de base, se articulando em 32 Reservas Extrativistas, sendo 28 no nível federal, 01 no estadual e 03 no municipal, 04 Áreas de Proteção Ambiental (APA) e 06 outros maretórios.

A Confrem Brasil se articula também no Movimento das Catadoras de Mangaba do Estado de Sergipe, na Coordenação Nacional das Comunidades Tradicionais Caiçaras, Rede de Mulheres das Comunidades Pesqueiras do Sul da Bahia, Rede de Mulheres dos Manguezais Amazônicos (Maranhão, Piauí, Pará e Amapá), Rede de Mulheres da APA Costa dos Corais, Rede de Mulheres da Resex do Delta do Parnaíba e Articulações de Jovens Protagonistas da Pesca Artesanal. Possui uma coordenação nacional e as estaduais, secretarias temáticas (Mulheres, Juventude, Direitos Humanos, Cultura, Produção e Meio Ambiente, Monitoramento, Formação e Capacitação) e assessorias.

Para a Confrem Brasil, são grandes as dificuldades para manter viva uma rede desta dimensão e importância para os maretórios. Seus representantes locais participam dos conselhos gestores das APAs e Resexs, e desenvolvem projetos com Organizações Não Governamentais, academia e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

Em tempos de pandemia do coranavírus, a rede é uma das coordenadoras do “Grupo Observatório dos Impactos do Coronavírus nas Comunidades Pesqueiras”, em conjunto com o Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil (MPP), Articulação Nacional das Pescadoras (ANP), Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP) e Coordenação Nacional das Comunidades Tradicionais Caiçaras. A iniciativa reúne pescadores e pescadoras artesanais, pesquisadores, profissionais da área da saúde e ativistas de quase todas as regiões do país, a fim de monitorar e coletar dados do avanço da pandemia da Covid-19 nas comunidades desde março de 2020.

Outra grande preocupação foi lançamento do polêmico programa “Adote um Parque” (Decreto Federal 10.623 de 23 de fevereiro de 2021), elaborado e implementado de forma unilateral, sem observar o direito à consulta prévia, livre e informada na Convenção 169 da OIT do qual o Brasil é signatário, e sem cumprimento da Lei Federal 9.985/2000 que dispõe sobre o  Sistema Nacional de Unidades de Conservação, e do Decreto 6.040/07, o que configura violação dos direitos das populações tradicionais residentes em seus territórios e maretórios.

Com o decreto, o estado brasileiro repassa a iniciativa privada a “adoção” dos territórios das comunidades tradicionais, sem consulta e sem a participação destas. No dia primeiro de março foi publicada a lista de unidades de conservação a serem incluídas na primeira etapa do programa (Portaria n° 73 do Ministério do Meio Ambiente – MMA).

Esta “privatização” de territórios de uso coletivo abre espaço para apropriação indevida pelos “adotantes”, já que as limitações ao uso poderão ser frágeis.

A Confrem Brasil se posiciona: “é o estado brasileiro através do MMA, repassando a iniciativa privada a adoção dos nossos territórios, sem nenhuma participação nossa.  É nosso lugar de vida, nossa casa, lugar de produção, de reprodução cultural, social e religiosa, onde somos os principais responsáveis pela conservação e uso sustentável dos recursos naturais”.

Como disse uma representante comunitária do Pará, “a sociedade precisa entender que o nosso tempo é diferente, o nosso tempo é o tempo maré”, chamando a atenção para o caráter diferenciado e ao mesmo tempo invisível destas culturas seculares que foram as protagonistas da formação do povo brasileiro, e que precisam ser protegidas com urgência.

 

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