Bruno Gagliasso interpreta o delegado Lúcio em Marighella. Foto: Divulgação

Por Felipe Braga, roteirista.

O policial desliga o telefone e se aproxima, vindo do fundo do quadro. No primeiro plano, Branco, interpretado por Luís Carlos Vasconcelos, pendurado no pau de arara, recebe ferido a informação de que a liderança da Ação Libertadora Nacional (ALN) havia caído. Marighella estava morto. Satisfeito, o torturador lhe diz “vocês perderam.” Sereno, Branco responde, “não, vocês perderam.”

Quando o roteiro de Marighella (2021), dirigido por Wagner Moura, começou a ser escrito Dilma Rousseff ainda estava na Presidência. A recepção do filme, pensávamos, seria uma. Pasmem: imaginávamos que o contexto de censura, tortura e infâmia do final dos anos 60 estava tão distante historicamente do público jovem de 2014… que seríamos obrigados a abordar tais temas de maneira quase pedagógica, ilustrando como tudo havia um dia acontecido. Veio o golpe parlamentar de Cunha e Temer em 2016. Continuávamos escrevendo o roteiro — o mesmo roteiro, mas cientes de que a realidade era outra, e que portanto também seria outra a reação do público. Lançado há poucas semanas, e assistido por centenas de milhares de pessoas, Marighella é recebido hoje por espectadores em um Brasil governado por um indivíduo que tem a foto do coronel-torturador Carlos Brilhante Ustra na parede da cozinha.

O longa-metragem pode ser interpretado como introdução a um personagem real que ali aparece apenas de relance, e cuja relevância histórica fica ainda mais evidente na magistral biografia escrita por Mário Magalhães. Ali no filme, da mesma maneira, mal estão representadas as inúmeras reivindicações que cabem com extrema legitimidade neste personagem representativo de tantas lutas sociais. Mas tanto no livro quanto no filme Marighella (interpretado por Seu Jorge) é apresentado como um homem
impulsionado pela ideia de ação — quase impositiva, como se diante de um contexto de opressão e violência não fazer algo fosse impensável. Em entrevistas com guerrilheiros da ALN, durante a fase de pesquisa para o roteiro, nos pegamos por vezes fazendo a pergunta ingênua “mas o que motivou a entrada de vocês na luta contra a ditadura?”. A resposta era sempre categórica: “não nos perguntem por que nós agimos. Perguntem aos outros por que, diante daquele cenário terrível, não fizeram nada.”

Marighella é representado no filme com suas contradições. Imaginávamos que um público plural teria reações também diversas ao protagonista, às vezes se alinhando às suas perspectivas (e ações), em outras nem tanto, não se identificando com sua conduta, não aceitando suas escolhas. Não nos víamos em posição de “defender” o personagem: ele deveria ficar de pé sozinho, exposto ao olhar crítico da audiência, qualquer que fosse sua posição no espectro político. Apesar disso, desejávamos confrontar o espectador, impedindo que ele ficasse em um lugar de conforto, podendo se dizer “isento”.

Em conversas intermináveis sobre o roteiro (com pequenos grupos de leitores) não raramente discussões acaloradas tomavam a sala. Visões divergentes sobre o personagem e suas ações se enfrentavam…. em um debate. Ao sugerir contudo que do outro lado desta arena se encontrava o personagem Lucio, interpretado por Bruno Gagliasso, todos se calavam. No filme, ele com frequência é associado às ideias de “justiça” e de “verdade” — o que para nossa audiência, independente do quão coesa (ou fragmentada e diversa) ela seja internamente, soa sempre abominável. Não importa o quão de acordo se está sobre a figura de Marighella. Esse é o limite. O limite civilizatório. O personagem do policial torturador não pode ser “o outro lado” na arena política porque ele está fora dela, como sua negação. Assim como nosso presidente atual, ele é a excrescência de uma sociedade em crise que perdeu, ainda que apenas temporariamente, a capacidade de encontrar o terreno comum necessário para debater suas próprias questões com humanidade. Os espectadores podem discordar sobre o quão próximos eles se vêem de Marighella e de suas ações. Podem se identificar muito, pouco, ou em nada com o protagonista. Mas em bloco se opõem à farsa que seria legitimar a figura do policia-torturador como agente da justiça e da verdade.

Foram várias as sessões de Marighella país afora em que a resposta “não, vocês perderam,” ressoou pela sala ao fim da projeção, não raramente por membros da platéia oriundos de grupos historicamente oprimidos pelo Estado brasileiro. Na recepção de hoje a Marighella vem embutida uma resposta ao governo atual, à sua infâmia: não importa o quão fortes e impunes se sintam hoje, todos sabem: eles já perderam.

A cultura brasileira não precisa ser “defendida” por milicianos posando para fotos com metralhadoras em riste —- ela será reinventada, inevitavelmente, pela população que se buscou tanto oprimir, e que não abrirá mão de sua vocação em ser futuro.

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Novembro de 2021

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