Por Bruna Andrade Irineu* / @brunairineu @fervo2k20

Cuidado mútuo e luta coletiva são os caminhos para resistir

Uma travesti é queimada viva em Recife. Um jovem de 22 anos é assassinado com tiros na cabeça em uma barbearia em São Paulo. Adolescente lésbica assassinada com tiros na cabeça no interior de Alagoas. Em Vitória, professora é ameaçada por vereador ao propor atividade escolar sobre mês do orgulho LGBTQIAP+ em escola. Vereadora de Cuiabá é processada por deputado por acusá-lo de homofobia após este mesmo dizer que “ser homossexual é uma opção”. Padre insulta casal de jornalistas gays em interior de Mato Grosso. Parlamentares negras, transexuais e travestis sob ameaça de morte e perseguições políticas. Projetos de lei pedindo proibição de uso de linguagem neutra de gênero nas escolas vem se disseminando país a fora. Recurso orçamentário empenhado, no último ano, para ações da política nacional LGBT no Ministério da Família, Direitos Humanos e Mulheres não foram gastos, conforme dados da plataforma Gênero e Número.

Em meio a uma política de extermínio, existe orgulho? Diante da dor de tantas vidas perdidas, resiste orgulho! 28 de junho, rememora uma batalha, uma revolta, um ato de rebeldia e resistência contra os ataques sistemáticos da polícia nova-iorquina a um bar, no ano de 1969.  Stonewall não é sobre uma manifestação pacífica, mas sobre revoltar-se contra as autoridades policiais em um período de rebelião contra a guerra, racismo, pobreza e normas de gênero.

Ao longo da história, cada país e cidade particulariza suas insurgências LGBTQIAP+ num marco temporal distinto, mas todas com o explícito movimento de transição da humilhação ao orgulho pela diferença, do armário às ruas! O armário nos serve de simbologia para pensar sobre o auto reconhecimento da diversidade sexual e/ou diversidade de gênero pelo qual passamos. No armário a dor, o medo e os riscos não são compartilhados, são sentidos na perversa solidão. Fora do armário o sentimento de dor e de medo ganham contornos mais coletivos junto às redes de apoio que construímos, já os riscos eles tendem a se ampliar. Stonewall não garantiu a implosão das convenções sociais de gênero e sexualidade, por mais pública que uma pessoa LGBTQIAP+ tenha tornado sua identidade, ainda haverá que se nomear sexodiversa e/ou gênerodiversa, em algum espaço novo de sua vida[1]. O segredo revelado no consultório médico, no novo trabalho ou para nova vizinhança é a denúncia de que a norma cis-heterossexual perdura. Mas não sem fissuras, rasgos e desmontes… Stonewall é sobre a potência de rebelar-se, mas também sobre cuidado mútuo, solidariedade, aliança e responsabilidade – sentido de coletividade.

A força do coletivo é gerada pelo sentido de aliança e cuidado, o que provoca naqueles que nos tem como “o Outro” – o ser desprezível e não recomendado – pânico e um profundo empenho em nos destruir porque deixamos de ser um/a para sermos muitas/os. Não atoa os setores que rivalizam com os direitos LGBTQIAP+ possuem em suas ações políticas o objetivo de extermínio da diversidade e da diferença se mobilizando pela “defesa do tradicional e da família” sob acusações de que vamos destrui-la. Os projetos de lei para proibição do uso de pronome neutro nos espaços escolares sob a acusação de que o movimento vem tentando destruir a língua portuguesa são exemplos de pânico moral e má fé destes setores. A moralidade conservadora expressa na atual agenda anti-LGBTQIAP+ encontra acolhida na política econômica neoliberal que abomina o senso de comunidade, solidariedade e cuidado mútuo.

O pesquisador e ativista trans Dean Spade tem defendido a ideia de que a cuidado mútuo (mutual aid) “é um trabalho que fazemos quando providenciamos apoio material para sobreviver aos sistemas existentes, mas direcionados à construção de um movimento[2]”. Spade acredita que o cuidado mútuo é construir uma participação consistente nas lutas sociais por diversidade sexual e de gênero, e não “engajamentos capilares”, pontuais e oportunistas. Envolvendo assim uma construção real de segurança e bem-estar em meio a tantos desastres que estamos vivendo e que ainda viveremos. Isso seria determinante para nos prepararmos enquanto comunidade, com condições inclusive para reconhecer que é o sistema (capitalista) quem produz desigualdades, crise e vulnerabilidades. O cuidado mútuo se opõe radicalmente a ideia de caridade e filantropia que relaciona a pobreza com uma questão moral, onde o erro está no indivíduo – o que torna o trabalho caritativo uma celebração aos ricos, enquanto estes controlam, culpam e punem moralmente os pobres. A caridade e a filantropia mantem profundas relações com a exploração e com tentativas de construir imagens públicas positivas dos ricos e operar com uma falsa sensação de que o sistema parece se importar com as desigualdades ao passo que essa estratégia objetiva conter insurgências sem perspectiva de romper o eixo central de produção destas desigualdades.

Estamos vivendo a maior catástrofe que nossas gerações acompanharam. Neste momento, ultrapassamos 500 mil mortes em decorrência da covid-19, muitas delas de familiares e amigues LGBTQIAP+ nossos. Mortes evitáveis, que o chefe de Estado zombou por diversas vezes. Um governo negacionista, produtor de morte e inimigo de seu próprio povo – tanto por sua negação a ciência, pelas estratégias econômicas mínimas que oferecessem segurança social a população (e não aos bancos e grandes empresas) quanto pelo que vem sendo denunciado na CPI da covid-19 em relação as vacinas que poderiam ter evitado muitas mortes. No contexto de crise, a força da resistência tem se expressado em muitas ações de cuidado mútuo organizadas pela sociedade civil – a experiência da plataforma Fervo2k20 ilustra isso, como outras mundo a fora – e nas crescentes mobilizações pelo #ForaBolsonaro em todo país.

Se as desigualdades expostas com maior veemência na pandemia, são frutos da crise de um sistema individualizante, moralizante e punitivista. E se Stonewall é sobre revolta e coletividade, não há como rimar orgulho, em seu sentido originário, com o receituário neoliberal. Urge recompormos o sentido de cuidado mútuo, solidariedade, aliança e responsabilidade para não nos tornarmos reféns de concepções esvaziadas de comunidade e inclusão. Politizar as conexões entre ativismo e mercado compreendendo seus profundos limites, reconhecendo, portanto, que uma #publi sozinha não faz verão; que visibilidade no dia 28 para alguns, não paga aluguel e comida de todes; e que 1 vaga de emprego em uma grande empresa não retira a comunidade LGBTQIAP+ dos altos índices de informalidade[3].

Resiste orgulho, depois da (e na) dor! Em memória[4] e defesa do fervo. Coletivize-se!

*Bruna Irineu é Feminista Anticapitalista, Pesquisadora e Ativista pelos direitos LGBTQIAP+, Assistente Social e Professora da UFMT. Goiana do interior, criada em Mato Grosso, com passagens por Goiânia-Palmas-Rio. De volta à Cuiabá desde 2018… comendo pequi, lesbianizando e confabulando revoluções. Projeto um mundo melhor no NUEPOM/@nuepom.ufmt e na Plataforma Fervo2k20/@fervo2k20.


 

[1] Eve Sedgwick aborda este tema no clássico texto “Epistemologia do armário”, que se pode encontrar parcialmente traduzido no Cadernos Pagu (Unicamp).

[2] Em www.abeh.net.br é possível acessar a tradução da conferência de Dean Spade no encerramento do X Congresso Internacional da Associação Brasileira de Estudos da Homocultura (ABEH).

[3] A pesquisa Diagnóstico LGBT+ na pandemia do #VoteLGBTI e do NuH/UFMG traz indicadores importantes para este debate.

[4] Me coletivizando construí muitos afetos. Helton Chaves e Fernanda Calderaro, estão entre as pessoas queridas que a luta nos presenteia, com quem pude me orgulhar junto em paradas, reuniões e botecos. São vidas perdidas pela covid-19 e que ficarão cravadas em nossas memórias.

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