Texto por Daniele Apone e Barbara Panseri, irmãs, nascidas e criadas por mãe solo na periferia da Zona Leste de São Paulo. Juntas, somam 25 anos de experiência neste tema.

Hoje foi instituído o Dia de Doar Agora, #GivingTuesdayNow, nova data global de doações. A campanha foi antecipada de dezembro para maio, em razão da crise e da mobilização causadas pela pandemia do novo coronavírus em todo o mundo.

O maior sentimento de alegria e esperança desde que a pandemia foi declarada vem do movimento de solidariedade que se espalhou pelo Brasil desde então. Arrecadação e distribuição de cestas básicas, álcool em gel e máscaras, centenas de campanhas e vaquinhas têm circulado pela internet e transferido recursos financeiros daqueles que podem doar para os mais vulneráveis do nosso país.

Não é tarefa fácil mensurar o quanto o brasileiro tem doado nos últimos meses, justamente por termos ainda uma cultura cristã-evangélica arraigada, segundo a qual “o que a mão direita faz a esquerda não precisa ficar sabendo”. Segundo a Pesquisa Doação Brasil, 87% da população acha que se deve doar, mas não se deve falar para ninguém que doa. Em outras palavras, o brasileiro não gosta de contar o quanto doa, para quem doa e por que doa.

Apesar dessa cultura, a pandemia tem nos mostrado o poder da doação e a vontade das pessoas em ajudar. Até o momento, estima-se que mais de R$ 4 bilhões já foram doados para combater a Covid-19, entre doações de pessoas físicas e jurídicas.

As pessoas físicas do Brasil mais privilegiadas estão dando um show de solidariedade e mobilizando-se na tentativa de amenizar as dores daqueles que mais sofrem com o contexto atual. As empresas, pessoas jurídicas nacionais e internacionais, também atingiram seu recorde de doação nesta crise global. Estima-se que o investimento social privado realizado apenas no mês de abril equivale ao total doado no último ano inteiro pelo setor. Apenas o Itaú, maior doador privado até o momento, anunciou a doação de R$ 1,25 bilhão de reais, sendo R$ 1 bilhão em aporte à Fundação Itaú Social. Esse valor corresponde a 4,7% do lucro líquido de R$ 26,258 bilhões anunciado em 2019.

Temos muito que celebrar neste momento, mas podemos aproveitar esse clima de solidariedade tão contagiante que paira pelos ares para irmos além e pressionar para que nosso Congresso aprove mudanças legislativas importantes, como a taxação de grandes heranças (que tende a incentivar o aumento do orçamento destinado às fundações e institutos empresariais). Enquanto isso não acontece, podemos pressionar para tornar maior a cultura de doação no Brasil, reduzindo as desigualdades que envenenam nosso país desde que os portugueses aqui chegaram há 520 anos.

Pessoas físicas e jurídicas podem transferir seus recursos de forma voluntária como caminho para nos tornarmos um país desenvolvido, de modo que de uma vez por todas entendamos que não existe empresa sadia em uma sociedade doente e que “é impossível ser feliz sozinho”.

Felizmente, sabemos que a grande maioria dos nossos amigos e conhecidos estão doando, mas não temos amigos milionários, muito menos bilionários. É muito desafiador ter acesso às doações dos 206 bilionários brasileiros. Dos 10 mais ricos do Brasil, não há nenhuma mulher e não sabemos quanto de suas fortunas eles destinam a doações para institutos ou fundações. Por exemplo, o 1º colocado da lista, Jorge Paulo Lemann, tem uma fortuna declarada de R$ 104,7 bilhões de reais. Ele é copatrocinador da Fundação Lemann, da Fundação Estudar e do Instituto Tênis e estima-se que doe por ano aproximadamente 4% de sua fortuna. Lemann ainda criou o fundo Gera Venture Capital, com R$ 1 bilhão para investir em educação. Já o 2º colocado da lista, Joseph Safra, possui uma fortuna estimada em R$ 95 bilhões e não divulga nada sobre doações. Sua empresa, o Banco Safra, tampouco possui qualquer menção a um possível investimento social privado. A instituição financeira desembolsou R$ 30 milhões ao longo do mês de abril como ajuda para combater o coronavírus no Brasil, com recursos direcionados a estabelecimentos de saúde filantrópicos e Santas Casas.

Vale reforçar que no Brasil a transferência de recursos para projetos de interesse público é voluntária e não obrigatória. Já na Índia, é obrigatória a transferência de 2% do lucro das empresas para ações filantrópicas. No Brasil, a média percentual de doações voluntárias registrada nos últimos 12 anos é de apenas 0,95% do lucro bruto.

Nos EUA – o líder no ranking de filantropia organizado pela CAF (Charities Aid Foundation) –, os incentivos para doação são mais amplos e abrangentes do que no Brasil. Lá, em 2018, US$ 427,71 bilhões foram doados às causas sociais, valor muito acima dos R$ 3,25 bilhões doados no Brasil no mesmo ano. A tradição filantrópica estadunidense vem desde meados do século 19, com volumosas doações de grandes empresários. No século 21, o mais conhecido filantropo é o bilionário Bill Gates, fundador da Microsoft. A cultura da filantropia lá está ligada a incentivos fiscais para quem doa. Na lei do país, fazer ações filantrópicas pode levar a abatimentos de até 50% do valor total pago no imposto de renda da pessoa física. No Brasil, o teto é de 6% – dinheiro que é destinado à captação de recursos via leis de incentivos fiscais. Outra diferença aparece nos pesados tributos sobre a herança em território americano, que incentivam os bilionários a manter o dinheiro em fundações filantrópicas e não em suas contas bancárias.

Para os chineses, crise é sinônimo de oportunidade e, como diz nosso dito popular, há males que vêm para o bem. Nesse sentido, como podemos incentivar a cultura de doação no Brasil? Deve ser mantida de forma voluntária? Devemos taxar as grandes heranças? Tornar o investimento social privado obrigatório? Pressionar as empresas a investirem mais em projetos de interesse público? Convencer nossos familiares e amigos a doar pelo menos um percentual dos seus rendimentos para os que mais precisam?

Se a classe média brasileira dedicasse apenas 0,5% de seus gastos a atividades de filantropia, isso geraria US$ 6 bilhões ao ano para causas comuns.

Atualmente, apenas 0,23% do PIB do Brasil é doado. Nos EUA, por exemplo, 1,5% do PIB vai para doações filantrópicas, ou seja, 7 vezes mais. A grande maioria dos brasileiros não sabe em quem confiar sua doação, o que tem se agravado pela constante criminalização do movimento da sociedade civil organizada. Outro dado importante é que 64% das doações se concentram em apenas uma instituição e quase 30% dessas instituições possuem alguma vinculação com igrejas.

Em relação às empresas, vale lembrar que, detrás de um de CNPJ, existem pessoas movendo-se em busca de um propósito comum, de um lucro acumulado a partir da compra desses recursos humanos que será distribuído entre os proprietários das empresas e suas lideranças ou, nos casos das empresas de capital aberto, entre seus acionistas. São essas pessoas que elaboram e tomam a decisão de quanto desse lucro será investido em projetos socioambientais, e como. Esses seres humanos estão cada vez mais conscientes das desigualdades brasileiras e cada vez mais corajosos para apresentar ao alto escalão propostas de investimento em projetos sociais, ambientais e culturais. No entanto, atualmente muitas empresas sequer utilizam o benefício fiscal que possuem para investimento em projetos culturais por desconhecimento, medo ou até mesmo preguiça de realizá-lo.

Vivemos um momento histórico na cultura de doação do Brasil e de todo o mundo. Quem sabe agora, com a ampliação de consciência que muitos estão tendo sobre nossa interdependência, não poderemos iniciar uma forte onda de rompimento com nossa velha EGOnomia, rumo a uma nova ECOnomia, com os princípios da corresponsabilidade, da confiança e parceria e do bom e velho amor ao próximo cristão?

Vamos doar! Que tal começar hoje? Que tal começar por aquela organização que você gosta e confia? Que tal começar por aquela causa que te move?

Para você que já doa, que tal inspirar outras pessoas a doar? Que tal convencer seu chefe a fazer a organização em que você trabalha doar? Que tal pressionar a empresa de que você adquire seus produtos e serviços a doar mais?

Que esse vírus da solidariedade tenha chegado para ficar!

Daniele é pós-graduada em Economia e Gestão para Sustentabilidade pela UFRJ e graduada em Comunicação Social com ênfase em Relações Públicas pela USP. Idealizadora da Entrenós, atua no planejamento e gestão de investimento social de grandes empresas há 16 anos. Entusiasta de metodologias participativas, é facilitadora certificada pelo Gaia Education e tem como propósito de vida a redução das desigualdades sociais. Acredita na atuação em rede para como catalisador para impactos positivos em nossa sociedade.

Barbara é mestra em Administração Pública pela FGV, graduada em Relações Internacionais pela USP e especializada em Design para Sustentabilidade e Advocacy e Políticas Públicas. Trabalhou na Secretaria Municipal de Gestão de São Paulo na gestão Haddad e compõe o Coletivo Faz Diferença? Discussões sobre Desigualdades. Atualmente é pré-candidata à vereadora em São Paulo pelo PDT, Secretária de Projetos do Ecotrabalhismo e membro da Fundação Leonel Brizola – Alberto Pasqualini.

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