Por Profª Graciele*

“Não sou nova,
nem sou antiga,
sou inteira.”

A rotina do trabalhador brasileiro é uma sucessão de correrias, onde visamos desempenhar nossas funções da melhor maneira. Por isso, planejo as atividades semanais nos fins de semana, pois além de exercer um mandato parlamentar permaneço lecionando na rede pública de ensino por entender ser um importante vínculo com a comunidade, buscando conciliar as agendas dos dois trabalhos. Nesse dia, entretanto, isso não foi possível. De forma massiva, militantes de extrema direita divulgaram em aplicativos de mensagem a informação falsa de que a Câmara de Sinop, no dia seguinte, votaria um projeto supostamente de minha autoria. Este objetivaria a retirada de milhares de pessoas que defendiam golpe de Estado nas imediações da BR-163, que atravessa a cidade, bloqueando-a. Indignados, pediam que os ‘patriotas’ comparecessem à sessão de segunda.

Em quase três anos como única vereadora e parlamentar de esquerda de Sinop, já fui infantilizada por colegas na tribuna, perseguida por pessoas na rua, tive meu carro riscado duas vezes, diagnóstico médico (constante em atestado protocolado na Câmara) divulgado por assessor de parlamentar e impedida repentinamente de realizar atos formais como audiências públicas, uma delas no dia em que ela ocorreria no legislativo municipal. Aqui, porém, havia uma diferença, muito pessoal: a convocatória acompanhava uma foto de meu filho. A violência política e de gênero também é assim, quando atuar politicamente fornece meios para atingirem aqueles que amamos.

Os fatos ocorridos no dia 28/11/2022 tiveram repercussão nacional, sobretudo após a ligação que o então presidente-eleito Lula me fez, razão pela qual não me estenderei neles. Na sessão legislativa seguinte, porém, vendo o retorno de alguns “manifestantes”, muitos se negando em serem revistados, voltei ao meu gabinete e tive uma crise de pânico. Temia pela minha segurança e de minha assessoria, dado o contexto de permanente desconsideração da legitimidade do exercício do mandato e da desumanização a qual estava sendo exposta mais uma vez com a permissividade da Câmara Municipal. Relato isso pois a naturalização de práticas políticas abusivas, autorizadoras de sua repetição, é um dos casos descritos por Danielle Gruneich e Iara Cordeiro das violências praticadas contra as mulheres detentoras de mandato no livro “O que é Violência Política contra a Mulher?”

Até́ o momento, a resposta aos fatos daquele infame 28/11/2022 podem ser sintetizadas num dos últimos andamentos das apurações, um pedido de arquivamento do caso. Nele, citam, por exemplo, que as verdadeiras vítimas naquele dia seriam os demais vereadores, tendo sua atuação prejudicada por eu “provocar sucessiva e reiteradamente os manifestantes”, sendo, portanto, uma das causadoras do tumulto. Ademais, ficarei documentada como retrato do que ali se chamou de “pessoas exaltadas, em animosidade elevada” e tendo “tom relativamente alterado”.

Uma vez mais recorro a Danielle e Iara, quando escrevem que, pela naturalização das práticas, é comum a não compreensão ou identificação do que é a violência política contra a mulher e, por isso, “em muitos casos, aqueles que têm o dever de atuar institucionalmente por meio da aplicação efetiva dos instrumentos legais, como os partidos políticos ou os órgãos públicos, tendem a minimizar ou desconsiderar esses tipos de denúncias”. Faria um adendo: que também podem estendê-las, praticando-as.

A história das maiorias minorizadas, com especial foco em nós mulheres negras, é a história do atravessamento de violências constantes e cotidianas, sendo impossível compreender sua amplitude dissociando a interseccionalidade entre gênero, raça e classe. Temos nossos corpos objetificados, criamos filhos sendo mães solo, levando-os nos locais de trabalho – quando aceitam – pela ausência de vagas em creches, submetidas a dupla ou tripla jornada e, se ainda possível nesta realidade, encontramos meios para estudar. É uma luta, sem meio termo, pela sobrevivência.

Precisamos estar atentas, pois há um processo de apagamento como estratégia que visa inibir a organização de movimentos coletivos politizados e, mesmo quando já́ existentes e vocais, interrompê-los de forma brusca e violenta, como feito com Marielle. Sem termos vozes, nos tornando sujeitos, quem fala por nós senão aqueles que buscam a manutenção de uma sociedade patriarcal?

O cerne da violência política e de gênero nasce aqui, justamente nos impedimentos das próprias insurgências surgirem e, com elas, nossa autonomia e centralidade.

Poucas certezas tenho, uma delas é a de que sem luta, sem organização, sem engajamento e enfrentamento político democrático aqueles que nos subjugam enquanto meninas e mulheres, suprimindo nossas subjetividades e anseios, permanecerão onde estão: determinados a capturar nossos votos enquanto pessoas e, quando sujeitas políticas, sendo no máximo toleradas. Vislumbro, porém, caminhos.

Sobre a centralidade, passo seguinte da afirmação da autonomia, para mim ela possui dois sentidos, ambos presentes e indissociáveis das perseguições e violências.

Primeiro, nos situa como parte do todo e não à parte dele, no eu. Reivindico no passado o motivo de estar no cargo que ocupo, ciente de que ele deriva da luta de várias companheiras antes de mim, que resistiram às múltiplas opressões enunciando nossas dores e, ao mesmo tempo, aflorando sua criatividade para encontrarmos na militância os caminhos dos seus rompimentos. No presente, sou esse dever de luta, de força, visando o futuro, pois, em todo o Brasil, segue sendo negado a milhares de mulheres, sobretudo às negras, periféricas e trabalhadoras, o acesso aos espaços políticos institucionais e, uma vez conquistando-os, nossa atuação passa a ser inviabilizada, humilhada, silenciada, perseguida e atacada. Porém, quando isso muda, a mesa vira, ou, como diz Angela Davis, “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”.

Noutro sentido, vivendo junto à Amazônia, Cerrado e Pantanal, sou central – somos o centro do mundo, escreve Eliane Brum – quando ocupo um espaço no local que entrelaça várias defesas encampadas hoje pela esquerda. A emergência climática é mais do que real e a crescente força da elite que a causa repercute em todo o território, pois o capital que exaure os recursos hídricos e devasta as matas daqui é o mesmo que, articulado nacionalmente, aprova projetos de Lei como o Marco Temporal.

Justamente pelo medo da força do que vocalizamos é que a violência política contra nós, mulheres progressistas militantes, é gigantesca. Em contraste, o apoio institucional é insuficiente e somos poucas na região, onde o extremismo é enorme. Com isso, vem a dificuldade de atuação a partir de um profundo isolamento político, que abrange atuação perante órgãos públicos, onde nos evitam, conjuntamente a impossibilidade de eventuais tentativas de responsabilização dos ataques sofridos, sendo a assistência jurídica o problema mais evidente para nós que atuamos em cidades de pequeno e médio porte.

Aguardo o momento em que ser reconhecida por pessoas ou autoridades públicas em eventos seja pelos projetos aprovados que propus e não somente por ser “a vereadora de Sinop que foi atacada” na situação x, y ou z.

Este texto é aberto por um trecho do poema “Periférica”, da poetisa mato-grossense Luciene Carvalho, recentemente empossada presidenta da Academia Mato-Grossense de Letras, e primeira mulher negra a assumir a presidência de uma Academia de Letras no Brasil. Finalizo homenageando-a novamente: sejamos inteiras, tudo aquilo que nos negam e que contracorrente nós seremos.

*A vereadora Graci é pedagoga e Mestra em Educação. Militante, feminista, periférica e sindicalista. Em 2020 foi eleita vereadora de Sinop/MT pelo Partido dos Trabalhadores, tornando-se a única mulher a compor o legislativo para a Legislatura 2021-2024.