Setembro chegou e é uma tradição festejar os santos Cosme e Damião pelo país afora. Na Bahia, se não fosse essa pandemia de coronavírus, estaríamos todas e todos nos oferecendo, de forma bem “entrona”, para ganhar um convite e ir  comer um caruru. Essa palavra tanto define o rito- se reunir para repartir a comida oferecida aos santos – como também é a denominação para um dos pratos que formam essa refeição. Além do caruru, tem arroz, vatapá, galinha de xinxim, inhame, acarajé, abará e outros alimentos. A gente ainda não pode ficar em aglomeração, mas tá dando um jeito de participar, pois quem tem promessa para pagar se vira. Eu mesma já fui beneficiada com duas entregas de caruru via delivery.

São Cosme e São Damião são celebrados no dia 27 pela Igreja Católica como mártires, ou seja, morreram defendendo sua fé no cristianismo. Conta a tradição que trabalhavam como médicos atendendo de graça. Daí porque muitos pedidos para eles são para recuperação da saúde. No Brasil, a partir do encontro com as religiões afro-brasileiras algumas mudanças aconteceram: de adultos os dois irmãos viraram meninos. Também passaram a ser vistos como gêmeos ficando mais próximos das narrativas sobre os ibjeis, vunjis e erês, divindades e encantados celebrados no candomblé e na umbanda. Por isso, em outras regiões do Brasil não tem caruru, mas a distribuição de doce  acontece.

É festa também para gêmeos, pois as divindades do candomblé assim são representadas. Em algumas narrativas os filhos de Xangô e Iansã, na tradição ketu, são dois, mas também podem chegar a nove. E, mesmo na transformada narrativa que invadiu o âmbito do catolicismo , Cosme e Damião ganharam outro irmão: Doum.

Religiões são assim: encontram-se, interagem e absorvem elementos umas das outras não importando os limites impostos pelas ortodoxias. É uma relação que nem sempre o poder e condição de ser o credo oficial de um Estado – ou assim considerado, como ocorreu com o catolicismo no Brasil -, significa ter controle e supremacia sobre as demais. Daí porque não dá para debater sincretismo de forma rasa. Essa atitude de discutir a interação sem considerar suas mais diversas perspectivas, como às vezes ocorre nos ambientes de redes sociais digitais, empobrece os sofisticados  movimentos políticos dos povos africanos e também indígenas que conseguiram visibilizar seus ritos e, muitas vezes na condição de protagonistas. É o que acontece no rito para São Cosme e São Damião, pois, mesmo quem é católico costuma celebrá-los como meninos.

Brincadeira de criança

As festas para os santos Cosme e Damião são cercadas de diversão . Na região da Chapada Diamantina, onde cresci, a ladainha, quando se reza por, no mínimo uma hora, não nos cansava. Ao contrário, era um bom momento porque a gente aproveitava a concentração das mães nas rezas- todas cantadas- e íamos correr picula pela rua ou brincar de roda.

Terminada a ladainha era o momento mais esperado por todo mundo. Crianças comiam primeiro, especialmente as que sentavam na “mesa de sete meninos”. Em algumas casas, menina só participava desse rito se o caruru fosse de mabaços, ou seja, gêmeos não idênticos. Mas mesmo sem participar dessa mesa, criança era servida na frente de adultos. E ainda tinha as cantigas para acompanhar a refeição dos sete meninos: “São Cosme mandou fazer/Duas camisinhas azul/no dia da festa dele/São Cosme quer caruru”. “Você comeu não me deu/Eu também vou comer e não lhe dou”. O ritmo vinha das palmas, mas em algumas casas, se tinha gente chegada ao povo da chula, o acompanhamento contava com viola e pandeiro.

Acabei aprendendo que em Salvador esse rito se chama “barbudia”, assim mesmo, diferente  da grafia empregada pela “norma culta”: balburdia, que tem entre os seus significados o conceito de “algazarra”, que é, exatamente, o que vira sete crianças comendo ao mesmo tempo do que é servido em um alguidar de barro. E tem desafio: conseguir pegar a maior quantidade da carne principal, a galinha de xinxim (uma espécie de molho feito com camarão seco e  azeite de dendê) ou de ensopado, como era mais frequente em Iaçu, a terra da minha infância.

Renascimento

Segundo o doutor em antropologia e professor da UFBA, Ordep Serra, o caruru é um rito de purificação. Tanto que alguns devotos, quando o oferecem como cumprimento de promessa, se colocam no centro da mesa dos sete meninos para que, após comer, eles limpem as mãos nas suas vestes, geralmente brancas. O que aparentemente é sujar na verdade é purificar na direção de inversão simbólica.

O professor Ordep Serra, autor de Rumores de Festa, um trabalho sobre as festas de largo baianas onde é muito comum esses diálogos religiosos, sempre destaca a presença  na reverência católica a São Cosme e São Damião de elementos do culto aos  dióscuros gregos, Castor e Pólux,  filhos de Zeus e Leda, uma mortal,  e de Rômulo e Remo, também semideuses e considerados os fundadores de Roma. A devoção a São Cosme e São Damião vem do chamado cristianismo oriental. A tradição os aponta como originários da  Síria. E, no Brasil, por fim, ocorreu o encontro com os cultos das civilizações da África negra. Das culturas de povos originários dos agora Benim e Nigéria herdamos muitos dos elementos que usamos para celebrar os santos gêmeos. Nesses grupos culturais, as mulheres que os parem , assim como eles, são especiais. E, por isso, a celebração para essa infância sagrada e por extensão às outras é cercada de mágica, mas como não poderia ser diferente de forma leve.

Foto: Cleidiana Ramos

É interessante a força dessas devoções mais afastadas das amarras da institucionalidade . Na década de 1970, a Igreja Católica que se reposicionava com algumas mudanças devido ao Concílio Vaticano II resolveu fazer uma reforma na sua liturgia relacionada aos santos. O critério passou a ser a historiografia. Assim se começou a rastrear as biografias em busca de dados muito precisos.  As santas e santos que tinham trajetórias contadas em narrativas com elementos difícieis de comprovar-  São Jorge, por exemplo, que teve como grande feito matar um dragão- entraram na categoria dos que tiveram suas festas tornadas opcionais.  Paróquias e igrejas também deixaram de ser consagradas a elas e eles. 

Mas Cosme e Damião tinham um trunfo. Mesmo com algumas lacunas históricas sobre a sua trajetória em vida, eles foram os santos de devoção de um dos Médici, a poderosa família de Florença, Itália, que financiou muitas das obras do renascimento. Cosme Médici mandou construir em honra dos irmãos uma basílica e outras obras de arte. Além disso, talvez por conta dessa influência ou antiguidade do culto, seus nomes foram incluídos no missal- o livro que orienta a liturgia das missas. E assim eles continuaram no mesmo patamar que outros santos de biografias com dados mais comprovados do ponto de vista historiográfico.

O encontro com as religiões de base africana  foi fundamental, portanto, para transformá-los em meninos o que deu a esse culto uma potencialidade que encanta até quem não tem religião. Seria interessante que a institucionalidade católica refletisse sobre questões como essa não por razões de doutrina, mas de aprendizado humanista. Pode até ser a possibilidade de reencontro com a face mais bela do seu inspirador maior: Jesus Cristo. Em um dos seus muitos ensinamentos e discursos, Jesus mostra uma criança e diz que ali está o modelo para quem deseja se tornar alguém mais justo. E reitera: “Deixai vir a mim as crianças. Delas é o reino dos céus”.

Desencanto

E é por isso que observei com um misto de tristeza e revolta gente que se diz cristã violentando de tantas formas a menina que comoveu metade de um país que ainda é capaz de ter algum  resquício de solidariedade à dor alheia quando depois de ser estuprada desde os seis anos engravidou do seu agressor aos dez. Não queria voltar à questão, pois a vítima necessita agora do “esquecimento” para renascer dos tantos calvários que lhe impuseram, mas ao mesmo tempo é necessário para que estejamos vigliantes contra esses delinquentes que se alimentam das consciências obtusas em nome de um “deus”, que se existir da forma torta como estes o concebem deve ter muita vergonha de seus próprios adoradores.

Nenhum “deus” da forma como as várias culturas humanas o concebem teria a crueldade de impor uma gravidez a uma criança violada. Zeus, possivelmente mandaria um raio certeiro naquela porta de hospital onde aquela gente impiedosa chamava a pobre menina e quem a amparava em seu imenso sofrimento de assassinos; Iaweh, seguramente mandaria um arcanjo com um espada bem afiada para ter uma conversa com os ditos devotos; e as deusas, ah, essas então teriam muito a disciplinar com a sua sutileza, mas nem por isso menos cortante como a espada de Iansã ou o espelho de Oxum, que reflete o mais profundo dos segredos que os moralistas geralmente querem esconder. Iemanjá, a mãe zelosa, que guarda as crianças a partir do seu nascimento, moveria um tsunami, provavelmente, para arrastar tantos perversos.

Aguardar piedade de uma gente tosca que pratica as mais variadas perversões de violência sob um falso manto de fé, como a gente tem visto, tem poder para acabar com a crença em qualquer melhora no que se chama de humanidade.  Aqueles infelizes hostilizaram não apenas aquela menina, mas as tantas vítimas do passado e do presente, indefesas, em meio ao silêncio e hipocrisia. Esse tipo de comportamento ajuda os predradores que atuam nas sombras dos ambientes onde essas crianças deveriam estar resguardadas, inclusive templos, pois muitos deles se passam por líderes religiosos. Aquelas cenas dos “devotos e gente de bem” dizendo rezar enquanto vociferavam palavras de ódio me  fez lembrar  um trecho do filme  Matrix, quando um dos  guardiões proclama que nós, os humanos, somos piores do que qualquer vírus que surge nesse planeta porque ameaçamos a nossa própria espécie.

Rezo, sob a inspiração da minha fé,  para que aquela menina esteja renascendo. Expor uma criança violada em sua condição da fragilidade e impotência diante das várias faces da crueldade e com o movimento de cálculo político, como suspeitamos de alguns,  é de uma monstruosidade que faz revirar o estômago mais resistente.

Foi difícil,  portanto, ler a mensagem  do presidente da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Walmor Oliveira de Azevedo.  No texto ele equiparou a interrupção da gravidez naquele pequeno corpo a um “crime hediondo que não se justifica diante de todos os recursos existentes e colocados à disposição para garantir a vida das duas crianças”. E escreveu mais: “Lamentável presenciar aqueles que representam a Lei e o Estado com a missão de defender a vida, decidirem pela morte de uma criança de apenas cinco meses”.

A CNBB, por meio do seu presidente equiparou a criminosos as pessoas que  tomaram uma decisão difícil- interrupção de gravidez é um trauma e a decisão sobre ela leva em conta princípios científicos, mas também éticos e morais muito além do âmbito religioso.  Além disso, a rede de  profissionais de saúde  foi o apoio daquela menina. Essa CNBB que aparece como signatária da nota é a mesma que abriga a Pastoral da Criança, uma instituição que há décadas vem batalhando contra a desnutrição e a “morte” em vida de tantos e tantos membros da infância brasileira, inclusive os rebentos de violências como aquelas promovidas pelo próprio Estado que os negligencia.  Esta é a mesma instituição que promove o Grito dos Excluídos no vácuo do desfile exibicionista da força punitiva do Estado-nação no 7 de Setembro.

Esta é a CNBB que realiza as chamadas campanhas da fraternidade, uma ação anual que começou em 1964 e  busca  alertar sobre vários “pecados” na vida pública deste país, como a destruição do meio ambiente (2017); o mau uso dos meios de comunicação (1989); crianças em situação de rua (1987); desigualdade de gênero (1990), dentre outras . A carta do bispo foi muito violenta, a meu ver, diante de um caso que está relacionado a uma questão de doutrina moral da instituição da qual ele é membro e que não considera as outras perspectivas, inclusive as de natureza de saúde física e mental.    

Curioso que a CNBB não se prontifique a falar com essa dureza para um governo que agride tantos dos segmentos que a instituição tem reivindicado a defesa: indígenas, crianças, sem terra e sem teto, por exemplo, protagonistas de suas pastorais que realizam a ação social mais institucionalizada. A CNBB foi uma das vitrines da postura diferente adotada pela Igreja Católica dos países da América Latina a partir do Concílio Vaticano II.  Em 1974, a Conferência Episcopal Latino Americana, reunida em Puebla, México, divulgou a sua então opção preferencial pelos pobres, em documento, e os citou: mulheres, negros, indígenas e foi ampliando a lista para os grupos que viviam sob opressão. Era tempo da Teologia do Cativeiro e da Libertação com expoentes como o então franciscano Leonardo Boff. Os bispos são muito importantes dentro do catolicismo. São eles que tomam as decisões sobre o ensinamento moral ou sobre a doutrina. O papa, inclusive, é um bispo. Tem posição de liderança porque é o titular da diocese-sede do mundo católico.

Reflexão

É triste que ao lamentar a morte de uma “criança de cinco meses”, o presidente da CNBB tenha soado mais comovido do que ao falar daquele pequeno corpo feminino violado. Naquela mensagem dura e fria faltou algo do calor da piedade para a vítima de um drama que assusta qualquer mulher. Por mais sensível e solidário que seja, um homem forjado nesta cultura patriarcal ocidental não vai conceber o temor de ter sua intimidade violada. E um que vive o celibato por conta da sua condição de clérigo possivelmente menos ainda.  Mesmo com a chaga dos escândalos de abuso sexual em suas estruturas, a Igreja Católica, em questões que envolve gênero, costuma soar mais próxima daqueles dispostos a apedrejar a mulher acusada de adultério do que do Jesus que os provocou dizendo que atirasse a primeira pedra quem não tivesse pecado, em uma das passagens mais conhecidas do evangelho.

Foto: Cleidiana Ramos

Nos documentos e narrativas da tradição católica, a face feminina da humanidade parece ser vista como ao alcance da graça apenas se for despida de qualquer traço que lembre sexualidade exercida com liberdade e consenso. E a partir daí faz-se uma confusão terrível a ponto de considerar a reprodução como algo tão crucial que precisa ser defendida mesmo que ocorra em meio a uma situação de violência brutal.

O problema parece ser mulheres exercendo sua sexualidade com poder de decisão. A virgindade é reiterada em várias narrativas. Maria, que a Igreja aponta como modelo de mãe, é apresentada em um dogma ( ou seja, o que não pode ser contestado) como virgem antes, durante e depois do parto. As santas são todas virgens. As que se tornaram mártires morreram para defender essa condição. Santa Rita, uma das exceções, só alcançou a honra dos altares depois que foi  para um convento ao se tornar viúva.

Daí  a importância das vozes dissonantes dentro da própria Igreja, como as Católicas pelo Direito de Decidir. Alguém necessita dizer que a condição humana é muito mais complexa do que um apanhado de bulas papais e interpretações de passagens bíblicas das experiências ocorridas há mais de dois mil anos e em outros contextos. 

Talvez fosse um ato importante para a Igreja Católica questionar-se como percebe as suas crianças, especialmente as submetidas à violência sexual. Se perdem a inocência em meio a algo tão hediondo como um estupro devem se tornar mães à força?  Melhor isso que matar “uma vida de cinco meses?”, como disse o bispo em um juízo de valor que assusta. Se não era essa intenção de dom Walmor, uma pessoa muito cordata que conheci e entrevistei algumas vezes quando foi bispo auxiliar da Arquidiocese de Salvador, com um conhecimento vasto sobre doutrina e interpretação de textos sagrados na sua condição de doutor em Bíblia, foi o que deixou em aberto para ser entendido. Aliás ele sabe bem, por condições do seu ofício, que textos são obras abertas à interpretações diversas. Eu, nesse momento tenho plena consciência sobre as muitas possibilidades que recaem sobre o que estou escrevendo aqui. 

O apego às doutrinas e a obrigação de dar conta ao que elas a sustentam muitas vezes pode tirar a humanidade do que deveria ser conforto em uma situação limite como amparar vítimas dos muitos tipos de violências. Daí que, por isso, talvez seja bem  mais leve a visão de infância que cerca São Cosme e São Damião dada pela devoção liberta das amarras da ortodoxia. Esta perspectiva foi  capaz de até transformar dois santos adultos e sisudos em crianças risonhas, capazes até de “dançar” como a gente canta em meio à “barbudia” dos sete meninos: “vadeia Cosme, vadeia”.  Que nossas crianças conheçam as faces mais leves e misericordiosas dos vários sagrados. De preferência aqueles que não as querem vítimas do peso de se resignar a um sacrifício que as dilacera em nome da preservação de uma doutrina preciosa demais para ser questionada.