Por Clayton Nobre

Aquele momento em que, no papel de opressor, você jura estar sendo vítima. Acontece com muitos, inclusive pode já ter acontecido com você sem saber disso. O medo de ser chamado de opressor foi tema de diversos vídeos promovidos pelo youtuber Murilo, do Canal Muro Pequeno. É um canal com mais de 60 mil inscritos que faz parte destes novos observatórios digitais que as redes ajudaram a promover, estimulando o debate de temas diversos, incluindo os de sexualidades e sociabilidades como o do Muro Pequeno.

Nesta semana Murilo fez um vídeo em resposta a outro youtuber gay, Luba, indagando sobre o preconceito que ele diz ter sofrido quando o julgaram ao criticar o termo “padrãozinho” como forma de menosprezar pessoas brancas. Intitulado Preconceito, confiram, o vídeo de Luba é uma ode contra todo tipo de discriminação, incluindo no mesmo rol o preconceito “branco” que classificaria todos os héteros como homofóbicos no uso de termos como “sai hetero”. Procura puxar a mesma linha de raciocínio de que não precisamos ser mulheres para ser feministas, ou negros para combater o racismo, ou LGBTs para combater a LGBTfobia.

A crítica é velha, mas é uma das mais crescentes feitas aos movimentos de valorização das identidades e que acabam por ampliar a sua marginalização. É uma mistura de joio e trigo que faz com que qualquer negro que alerte o lugar de privilégio dos brancos seja também classificado como preconceituoso. Contudo, pelo contrário, esta é a própria forma de combate ao racismo considerando o reconhecimento de nossos próprios privilégios uma das maiores barreiras. Imagine, portanto, a dificuldade de pessoas LGBT terem tal reconhecimento nos espaços em que costumeiramente nos colocam como vítimas.

É um pouco dessa generalização do preconceito que por vezes se mascara nas afirmações de que “somos todos vítimas” ou “nosso inimigo é um só”, que impele os mais ignorantes a generalizar também o locus do privilégio. Murilo indaga: “quantas pessoas são agredidas na rua por serem vistas como padrãozinho?” Percebam como Luba precisa construir toda a estética do oprimido, “não é um vídeo normal”, ele mesmo diz, sempre em tom melancólico em suas justificativas, o silêncio (quase ressoava uma música de novela), os olhos praticamente mareados.

Basicamente, esta é a estratégia de Murilo em sua crítica, apontando a faixa social em que Luba se insere, sendo homem branco e dentro dos “padrões de beleza” que em várias batalhas estamos ajudando a desconstruir. É a tônica pedagógica que muitos consideram agressivas em certos momentos e tem a eficácia fundamental da pílula vermelha de Matrix, quebrando o preconceito em sua raiz: nos situar, alertar para o lugar de onde viemos, o nosso lugar de fala, a minha diferença com o outro, nossos valores, nossa cultura, nossa história.

Certa vez estávamos na Batekoo em Brasília, a festa é de jovens negros, e no alto da bancada do palco um deles grita: “aqui branco não sobe”, logo após ter descido dali um dos brancos que lá dançava. Não o chamaram de racista, muito embora muitos assim entendessem, mas tratava-se lucidamente da preservação de uma valorização estética construída por aquele espaço (a Universidade de Brasília) que em outras circunstâncias é ocupado majoritariamente por pessoas brancas.

Situar o lugar do outro, sua condição, acaba por tornar-se política afirmativa dos mais marginalizados que só conquistaram espaço por essa compreensão ampla de nossos privilégios. Vejam, nem mesmo o pedestal da crítica ao racismo os próprios negros conseguem alcançar com naturalidade como convém. O exemplo da princesa Isabel (“não precisa ser branca para combater o racismo”) é um exemplo notório desse tipo de invisibilização dos grandes personagens negros de nossa história. É curioso como Luba diz reconhecer esse equívoco quando apontou a infeliz citação que já havia feito a tal heroína branca.

O vídeo de Luba ainda nos impele a explorar uma série de argumentos e os principais, Muro Pequeno o fez com o didatismo característico destes canais. Primeiro, avança na ideia de que é preciso apontar as posições de privilégio como forma de conscientização dos sujeitos e seus discursos. “Tudo o que a gente fala vai ressoar os impactos e reflexos das posições sociais que a gente ocupa”, afirma. Especialmente entre as pessoas privilegiadas, é mais natural que reproduzamos justamente a estrutura que nos beneficia. Apontar essa posições sociais (sai hétero, branco não sobe) é a própria forma de tirar da invisibilidade os privilégios dos privilegiados.

Na sequência, Murilo aponta a banalização do preconceito que tanto Luba quanto a sociedade em rede como um todo procura construir. Mais que banalizar o preconceito, banaliza-se o sofrimento e coloca-se em pé de igualdade todas as formas de opressão que por vezes mascara aquelas que de fato marcam as injustiças sociais mais graves e violentas da sociedade. Todos os pormenores de 17 min das argumentações de Murilo podem ser vistas aqui! Muro Pequeno se soma a uma série de opiniões já reproduzidas nas redes sobre o tema que, sabemos, só se farão ouvidas a quem dedicar um mínimo interesse pela leitura e pelo debate. Esperamos que Luba seja um deles.