por Claudia Di Moura*

Na minha visita mais recente à Aldeia Juerana, em Porto Seguro, no extremo Sul da Bahia, vivi a experiência de ter sido abraçada pelo fogo. Um fogo simbólico, amoroso, construtivo, mas também manifesto em chamas vivas em torno das quais se reunia uma família numerosa ao redor das sábias palavras de sua liderança política, a cacica Yamani Pataxó. Esta, uma mulher indígena em exercício de poder em um mundo machista, o que por si só configura uma revolução. Naquela comunidade, ninguém escuta de pé as falas de sua anciã. Há sempre uma reverência. Afetuosa, fluida, mas tão aguda e inelutável quanto o próprio fogo.

Esse fogo é o que esperamos materializar no forno de beneficiamento da mandioca, a raiz sagrada do Brasil, na Casa de Farinha da Aldeia Juerana. As paredes estão de pé, a casa em si foi erguida na base da solidariedade. Mas falta ainda acender a chama que moverá o resgate dessa comida ancestral. Ali, sob o comando de Yamani Pataxó e de sua filha Kandara, serão produzidos os inúmeros derivados da iguaria, que gerarão autonomia e sustentabilidade para uma comunidade vulnerável e constantemente ameaçada pelos assédios de turistas e do crime organizado que rodeiam a aldeia autointitulada afro-indígena, por sua origem miscigenada no amor e no aquilombamento.

Tive o privilégio de ter colaborado no desenvolvimento dessa que será não apenas uma fonte de sustento e renda para a população local, mas também um ímã que preserva a integridade dos jovens pataxó, ao afastá-los das investidas violentas do homem branco. Em parceria com a Rede Globo, através do programa “Minha mãe cozinha melhor que a sua”, pude arrecadar o aporte necessário para o início da revitalização da estrutura de beneficiamento.

Mas não podemos parar por aí. É importante que todos se debrucem sobre a causa da Aldeia Juerana, possibilitando que a Casa de Farinha, essa usina de força originária, entre em funcionamento e se expanda num futuro próximo na direção de uma cozinha comunitária. A invisibilidade dessa agenda ainda não foi revertida, a missão de agregar novos parceiros a essa iniciativa não está concluída, e meu vínculo emocional com sua população me traz a este artigo, no intuito de mover tantos olhares quanto possível para essa aldeia que ainda busca maneiras de resistir em uma sociedade colonialista que restringe suas oportunidades de crescimento.

Ao fim da visita, e com vistas para o futuro da aldeia, pergunto a Yamani qual sua visão de esperança. E ela me diz que está naquela juventude tão diversa, mas tão unida, tão cobiçada pelas forças opressoras, porém carregando consigo a tocha de um levante. Um levante pacífico cozido na palavra e no saber. Um levante instrumentalizado pela política de cotas universitárias, que tem criado uma geração articulada com o conhecimento acadêmico, sem perder a raiz de seus costumes e da sua tradição oral.

E enche meu coração ver que nós, afro-indígenas, resistiremos e seguiremos queimando nossa centelha de amor e astúcia contra o fogo cruel do preconceito, do ódio e do genocídio.

Foto: arquivo pessoal

 

*Claudia Di Moura é uma atriz afro-indigêna e ativista. Como atriz, busca levar para o mercado audiovisual e para o teatro as múltiplas lutas pelos direitos das mulheres, do povo negro e dos povos originários.

Conheça outros colunistas e suas opiniões!

Colunista NINJA

Memória, verdade e justiça

FODA

Qual a relação entre a expressão de gênero e a violência no Carnaval?

Márcio Santilli

Guerras e polarização política bloqueiam avanços na conferência do clima

Colunista NINJA

Vitória de Milei: é preciso compor uma nova canção

Márcio Santilli

Ponto de não retorno

Renata Souza

Abril Verde: mês dedicado a luta contra o racismo religioso

Jorgetânia Ferreira

Carta a Mani – sobre Davi, amor e patriarcado

Moara Saboia

Na defesa das estatais: A Luta pela Soberania Popular em Minas Gerais

Dríade Aguiar

'Rivais' mostra que tênis a três é bom

Andréia de Jesus

PEC das drogas aprofunda racismo e violência contra juventude negra

Colunista NINJA

50 anos da Revolução dos Cravos: Portugal sai às ruas em defesa da democracia

Colunista NINJA

Não há paz para mulheres negras na política

André Menezes

“O que me move são as utopias”, diz a multiartista Elisa Lucinda

Ivana Bentes

O gosto do vivo e as vidas marrons no filme “A paixão segundo G.H.”

Márcio Santilli

Agência nacional de resolução fundiária